Um dos momentos mais esperados da música em São Paulo é o Festival SESC de Música de Câmara. Neste ano, só pude ver, em 9 de junho, A História do Soldado, peça de 1918 com música de Stravinsky e texto de Charles-Ferdinand Ramuz, que foi tocada por La Sociedad Boliviana de Música de Cámara, regida por Leonard Evers, e encenada por Leonardo Ventura. O texto, apresentado em português, foi adaptado pelo escritor boliviano Gabriel Mamani Magne.
Chamei de peça, mas o que é A História do Soldado? O Kobbé a incluiu em seu dicionário de ópera, embora não tenha canto. O espetáculo original, certamente sui generis, envolve um narrador, atores, bailarinos e um conjunto de câmara.
No SESC, não houve balé e Leonardo Ventura assumiu todas as partes faladas, inclusive o proto-rap que o Diabo deve emitir pouco antes do fim. A adaptação foi muito interessante. Gabriel Mamani Magne transpôs a história de Ramuz para a Bolívia e o Brasil.
Em verdade, não houve mera transposição, mas metamorfose: o espetáculo começa antes de os músicos entrarem em cena com Ventura trabalhando com uma máquina de costura, sacos de retalhos em volta, e o som toca notícias da Bolívia, especialmente questões sobre o câmbio, tão importante para imigrantes. As projeções no fundo são imagens daquele país.
O imigrante trabalhava em São Paulo, numa tecelagem; nessa cidade, casos de trabalho em condições análogas à escravidão encontram-se justamente com estrangeiros, muitas vezes em situação irregular no país, e nesse campo de atividade. Leonardo Ventura teve a ideia de enredar-se nos fios da tecelagem, em um efeito visual marcante.
No fim da música, voltávamos à máquina de costura e aos retalhos e às notícias em áudio sobre a Bolívia. O Diabo vencia, confundindo-se com a dinâmica do capital que obriga os imigrantes a deixarem seus países e muitas vezes os mergulha em condições degradantes de trabalho.
Na história de Ramuz, o soldado é iludido pelo diabo e fica três anos fora de casa. Neste espetáculo, o imigrante ficou dez anos (em vez de dez dias) e por isso não é mais reconhecido quando volta: tudo mudou na sua terra natal e sua noiva casou-se.
Chegou a ser dito que a escolha de Ramuz provaria a falta de gosto de Stravinsky para a literatura; Celso Loureiro Chaves, nas notas que fez à publicação separada do verbete do Grove sobre Stravinsky (escrito por Eric W. White e Jeremy Noble), menciona a "evidente disparidade" entre o texto e a música. No entanto, a brilhante adaptação de Mamani Magne confere mais concretude à história e a melhora sensivelmente.
A execução musical foi feliz nos momentos de dança, como no tango, mas não tanto nos de maior violência, com exceção do solo final da brilhante percussionista, Paola Machicado Torres, que representou a vitória final do Diabo. O maestro e colaborador de Stravinsky Robert Craft, em seu diário, contou que Genet dissera a ambos que a voz do compositor lembrava os instrumentos de percussão n'A História do Soldado, o que era uma boa observação. Na ópera "The Rake's Progress", Stravinsky transformaria em música outra vitória do Diabo.
O espetáculo paulista/boliviano, aparentemente tão pouco ortodoxo, fugiu ao espirito do original? O adaptador, no texto do programa, falou de sua experiência pessoal como boliviano que mora no Brasil; ele quis abordá-la porque "Quando li a obra pela primeira vez, só pensei numa pessoa que está cansada de andar e quer volver para a sua terra". "Volver", e não a palavra "voltar"; de certa forma, ao menos no vocabulário, ele não deixou seu país.
Este Festival SESC trouxe muitos músicos bolivianos, o que seria outro motivo para a adaptação. Creio, porém, que, a mudança para a questão do imigrante, embora na América Latina, realmente aproxima o espetáculo de Stravinsky, inclusive em termos biográficos: o compositor russo migrou depois da Revolução de 1917 e teve de morar em diversos países. Em 1918, ele já tinha percebido que não poderia voltar depois de os bolcheviques terem tomado o poder. Ele estava exilado na Suíça. Em 1920, mudou-se para a França, onde ficaria alguns anos. Com a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos.
A questão do exílio, na verdade, está no centro dessa peça, mas só fui capaz de percebê-la quando vi este espetáculo em São Paulo. Ele teve a capacidade de aproximar-se de Stravinsky por meio de um deslocamento: transpondo-a para a América Latina, percebi o que sempre esteve lá na obra concebida na Suíça. Trata-se do efeito próprio da poesia: deslocamento de palavras e imagens para ver melhor o que sempre esteve presente, ou passou a estar sempre presente depois de ter sido visto.
Na poesia, o exílio pode tornar-se lugar de encontro; esse foi impacto da renovada História do Soldado no Festival SESC de Música de Câmara.
P.S.: Eu quase tinha acabado de escrever esta nota quando aconteceu a tentativa de golpe de Estado na Bolívia, felizmente malogrado. Cito a reação de Mamani Magne: "Cada vez que un militar habla de patria cae sangre. Zúñiga habló de patria y dios, la ecuación letal. Hay que cuidar la democracia porque hay que cuidar vidas. No olvidemos que las balas nunca llegan a las cabezas, sino a los más vulnerables".
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