Tive a ideia de escrever esta nota porque, em 19 de junho de 2024, aniversário de oitenta anos de Chico Buarque, o jornalista Evandro Éboli publicou no Twitter um documento da Censura sobre a peça Roda Viva, em que o censor Mario F. Russomano indagava se "Francisco Buarque de Holanda" seria "débil mental".
A imbecilidade da questão sobre um dos artistas mais brilhantes da história do Brasil refletia bem o rebaixado estado mental da ditadura militar.
O documento, explicou Éboli, estava exposto no Arquivo Nacional em um banner que o então ocupante da presidência da república, o militar Jair Bolsonaro (outra "página infeliz de nossa história"), negacionista nos planos da ciência e da história, mandou retirar:
As expressões "de baixo calão" que ofenderam os censores tinham sido contribuições de Zé Celso, o saudoso indisciplinador de mentes e corpos, que dirigia a peça. Exatamente por causa das mudanças no texto, a Censura havia decidido voltar a examinar o espetáculo; neste despacho de 25 de janeiro de 1968, o Censor Federal Augusto da Costa explica que "nas seguintes apresentações para o público, as marcações foram acrescidas de novas ideias que ocorreram ao seu diretor no afã de procurar um aprimoramento para o espetáculo, que deram ao mesmo nova dimensão quanto a restrição de idade", sugerindo o limite de 18 anos:
A peça sofreu ataques dos grupos da extrema-direita (Marília Pêra foi espancada grávida em São Paulo pelos fascistas do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, que invadiram o teatro de Ruth Escobar) e acabou sendo proibida. A peça Calabar: o elogio da traição, de 1973, que escreveu com Ruy Guerra, também seria censurada. Em 2018, meio século depois, Zé Celso remontou Roda viva no Teatro Oficina.
Chico Buarque foi censurado como compositor e dramaturgo, o que é amplamente conhecido. Sabe-se também do exílio de precaução que ele viveu na Itália de 1969 a 1970. Depois de voltar ao Brasil, ele continuava a ser vigiado, inclusive no exterior. Nesta edição de 1973 do Boletim Comunismo Internacional, um documento reservado do SNI, sua viagem à Argentina foi enquadrada como "campanha contra o Brasil no exterior". Passo agora a reproduzir documentos que estão no Fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo:
Ele teria dito que "as circunstâncias atuais fazem com que toda a música seja política [...]; toda a música está cumprindo uma função política, na medida em que é utilizada de acordo com planos bem claros." Era a época do chamado "circuito universitário" de apresentação de artistas:
Ele disse preferir essas apresentações à televisão. No entanto, os estudantes também eram um grupo suspeito para a ditadura. Por isso, os agentes da repressão acompanhavam-no. Vejam como o delegado Romeu Tuma (um dos 377 autores de graves violações de direitos humanos segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade) escrevia em código os nomes de Chico Buarque e do MPB-4, querendo saber se tinha havido agitação estudantil e propaganda subversiva nesta apresentação de outubro de 1972:
Não tinha ocorrido nenhuma agitação desse tipo. No entanto, ele era um artista visado: "você não gosta de mim, mas sua filha gosta", ele escreveria no ano seguinte sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide, criado para escapar da marcação cerrada da censura. O Centro de Informações do Exército (CIE) caracterizava o artista em termos de "proselitismo desagregador", "mantendo os estudantes em permanente expectativa política":
Vejam que foram incluídos nessa categoria de artistas incômodos à ditadura Alaíde Costa, Capinan, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Jards Macalé, Marília Medalha, Milton Nascimento, MPB-4, Nara Leão, Sérgio Ricardo, Trio Mocotó, Vinicius de Moraes e Ziraldo. Bela lista.
Na soi-disant abertura, ele continuava a ser censurado, claro, assim como outros artistas. Em 1977, ocorreu a censura dessa apresentação dele com Bibi Ferreira, Edu Lobo, Milton Nascimento e MPB-4, todos considerados pelas autoridades como "artistas tradicionalmente contestadores ao regime". A apresentação teve de ser adiada e o local, mudado.
Trata-se de um informe de 12 de julho de 1977 da Coordenação de Informações e Operações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Já haviam sido vendidos três mil e trezentos ingressos.
Apesar disso, a ditadura militar chegou a usar sua música sem autorização: "A banda", um de seus primeiros sucessos, com sua letra inofensiva para o regime, foi capturada para incentivar o alistamento militar, o que provocou o protesto do músico. Esta é a notícia que saiu no boletim de março de 1972 do boletim de março de 1972 do "Frente Brasileño de Informaciones", o irônico FBI dos exilados (só no exterior as denúncias deles podiam ser ouvidas, em razão da censura no Brasil), editado no Chile:
Lembro disso porque, meio século depois, na campanha eleitoral de 2022, o membro da família Bolsonaro que os paulistas se acostumaram a eleger como deputado federal se apropriou de "Roda viva", nada menos, para suas redes sociais, em postagem que pretendia que o Brasil estaria sob censura porque bolsonaristas estavam sendo processados!
Chico Buarque, um conhecido apoiador de Lula, processou o político. A magistrada Monica Ribeiro Teixeira inscreveu seu nome na longa história de conflito do Judiciário com os artistas brasileiros indeferindo o pedido sob o insólito pretexto de que não havia prova de que a canção de 1967 era de sua autoria.
Vejam o compositor com o MPB-4 defendendo a canção no Festival da Record: https://www.youtube.com/watch?v=3ALZNNUQdYM. Ela ficou em terceiro lugar, depois de "Ponteio", de Edu Lobo e Capinan, a vencedora, e "Domingo no parque", de Gilberto Gil. Em quarto, "Alegria, alegria", de Caetano Veloso. Que ano para a música popular brasileira! Se o Judiciário tivesse memória... O próprio direito à memória encontra dificuldades no campo judicial, problema que já abordei aqui e alhures algumas vezes.
Proposta nova ação contra o deputado federal, o juiz Fernando Rocha Lovisi mandou que a postagem fosse retirada. Era dezembro de 2022, aquele filho do ainda ocupante da presidência já estava reeleito. O estrago que a postagem podia causar, no sentido de ganhos eleitoreiros para o violador dos direitos do compositor, já estava feito, porém.
Curiosamente, em agosto de 2023, o Judiciário reconheceu o abuso mas não determinou indenização para Chico Buarque, embora ele tivesse ganhado indenização em outro processo, contra o Bolsonaro que é senador pelo Rio de Janeiro, que usou sua imagem em postagem em redes sociais.
A ação judicial deve durar alguns anos e não deixa de mostrar que nem tanto mudou no estado mental de nossas autoridades, o que a volta explícita dos militares ao poder, ensejada pelo golpe de 2016, pareceu tristemente comprovar: eles continuaram os mesmos.
Felizmente, pode-se constatar algo semelhante em Chico Buarque: ao contrário de alguns de seus colegas, ele permaneceu fiel a si mesmo ao longo das décadas e nunca "estancou" ou "deixou de cumprir".
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