No dia 11 de dezembro de 2025, foi dada a público a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Leite, Peres Crispim e outros vs. Brasil, que é de 4 de julho do mesmo ano. Esse atraso na divulgação causa estranheza: seria necessário verificar que pressões políticas o suscitaram. A própria Corte não o explicou no seu não muito sucinto comunicado à imprensa.
Aqui está a decisão em português: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/pt_br/vid/1086497927. Trata-se do terceiro caso deste tribunal da Organização dos Estados Americanos (OEA) em que o Brasíl foi réu em razão de crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar. Os casos anteriores foram da Guerrilha do Araguaia (Gomes Lund e outros vs. Brasil) e de Vladimir Herzog (Herzog e outros vs. Brasil), de 2010 e 2018, respectivamente.
Lembro aqui, pois já vi alguns militantes enganando-se a respeito, que a primeria decisão da Corte em relação ao Brasil não foi nenhuma delas, mas o Caso Ximenes Lopes vs. Brasil, de 2006. Damião Ximenes Lopes era um paciente psiquiátrico que foi assassinado na Casa de Repouso Guararapes, no Ceará. A impunidade desse crime levou à condenação do Brasil.
Impunidade também é o que determinou a condenação no caso Leite, Peres Crispim e outros vs. Brasil. A história é muito conhecida: Eduardo Leite, apelidado "Bacuri" (a Corte não quis integrar o apelido ao nome do caso), era um jovem de 25 anos que, na época de seu assassinato, militava na Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele foi sequestrado por agentes do DOPS-SP em 1970 no Rio de Janeiro e sofreu tortura por 109 dias em diversos locais, inclusive em um centro clandestino do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no bairro de São Conrado, na cidade do Rio de Janeiro. Como, se fosse libertado, seu estado físico denunciaria o caráter criminoso do regime, foi executado extrajudicialmente.
Sua companheira, Denise Peres Crispim, foi torturada quando estava grávida da filha de ambos, Eduarda Ditta Crispim Leite, que nasceu órfã.
O embaixador dos EUA havia sido sequestrado em 1969 para que fosse trocado por presos políticos. Bacuri participara do sequestro de outro diplomata, o cônsul do Japão, Nobuo Okoshi, em 1970, com a mesma finalidade, a de salvar companheiros capturados e torturados. Cito este trecho do prontuário de Eduardo Leite no DEOPS-SP:
O documento está no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Okoshi foi libertado e disse que foi bem tratado, com direito até a feijoada. Essa era a ética dos guerrilheiros no Brasil. Não foi o que ocorreu com Bacuri, quando sequestrado pelos agentes da repressão, que tinham os crimes de lesa-humanidade como código de conduta. Cito aqui um trecho do volume III do relatório da Comissão Nacional da Verdade:
Tratava-se de mais uma das versões falsas que a ditadura criava para esconder seus crimes e boa parte da imprensa divulgava. Não vou deixar aqui a foto dele morto, mas apenas a portaria de 8 de dezembro de 1970 do delegado de polícia do Guarujá: uma fraca peça de ficção:
O documento está no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
O caso de Eduardo Leite foi objeto de diversas denúncias na época, inclusive de presos políticos, como o "Bagulhão", e foi levado para o então Tribunal Bertrand Russell que, em 1974, julgou Brasil, Chile, Uruguai e Bolívia por violações de direitos humanos. O testemunho de Denise Peres Crispim foi levado ao Tribunal, que explicou como foi torturada grávida e falou do caso de Bacuri:
Não conheço nenhum outro caso como este: muitos companheiros no Brasil foram torturados até a morte, mas não deste modo e ninguém resistiu tanto tempo. Foi uma tortura científica; torturar para destruir fisicamente, mas não permitir que morra totalmente, para que o torturado mantenha um restinho de vida. Viam-se feridas antigas, podres, sangue coagulado; um olho estava perfurado: ao lado da cabeça o crânio estava afundado: os dentes estavam todos quebrados. O corpo apresentava cinco furos de balas. Tenho a impressão que não morreu pelas balas. Não havia um lugar no corpo que não fosse massacrado, mas um olho estava em boas condições. Foi aquele olho que me permitiu a identificação. Ajudaram-me a identificá-lo também umas cicatrizes profundas que havia numa mão por causa de um acidente de carro.
Cito das atas publicadas pela Editora da UFPB em 2014 (Brasil, violação de direitos humanos - Tribunal Bertrand Russell II) com organização de Giuseppe Tosi e Lúcia de Fátima Guerra Ferreira.
A condenação do Estado brasileiro neste processo internacional eram favas contadas, pois a Corte Interamericana, ao contrário de boa parte do sistema político e do Estado brasileiros, segue o Direito e, portanto, decide de forma contrária aos crimes contra a humanidade.
Uma novidade deste caso é que, além da companheira, Denise Crispim e Eduarda Ditta Crispim Leite, foi também parte da denúncia ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos Leonardo Ditta, marido de Denise e pai adotivo de Eduarda. Também para ele foi prevista uma indenização.
Isso se deve ao fato de a Corte ter levado em consideração o "projeto de vida" das vítimas, atingido pela violência da ditadura. Isso é destacado pela matéria do Holofote: https://www.holofotenoticias.com.br/politica/corte-interamericana-de-dh-da-oea-condena-brasil-por-impunidade-em-tortura-e-morte-de-bacuri-pela-ditadura-militar.
A Corte, deve-se relembrar, não julgou a tortura e a execução extrajudicial diretamente, mas o impacto na integridade pessoal das vítimas por falta de acesso à justiça e violação do direito à verdade judicial. A recusa do Estado em investigar os fatos fez com que a família tivesse, ela mesma, de realizar esse trabalho - essa foi a realidade dos familiares de mortos e desaparecidos políticos.
No entanto, em relação à inclusão de seu pai na certidão de nascimento de Eduarda, a Corte não condenou o Brasil porque ela considerou que o país já tinha cumprido seu dever em 2009, compensando a familiar por meio da Comissão de Anistia (esse é o "princípio da subsidiariedade": o Sistema Interamericano somente age se o Estado deixa de fazê-lo, ou se prove que ele não o faria).
Entre as determinações da Corte, está a de que o Estado busque os remanescentes de Eduardo Leite, que desapareceram após o sepultamento. Cito a decisão:
Esta continua ser uma das maiores dívidas do Estado brasileiro no campo da justiça de transição: encontrar os desaparecidos, além de investigar os fatos e punir os responsáveis.
Para terminar, noto que a Corte Interamericana, a pedido da família, não cometeu o erro que a Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" fizeram: Bacuri não se chamava Eduardo Collen Leite, mas Eduardo Leite; "Collen" era um dos nomes de seu pai.

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