O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 2 de novembro de 2025

Nuno Rau, a Prosa da cidade e a memória dos estilhaços

Prosa da cidade (São Paulo: Patuá, 2025) é um interessante livro que trata, à primeira vista, do Rio de Janeiro, mas também da poesia e do corpo em tempos de crise e descarte do urbano, do poético e dos corpos daqueles a quem, se o chão desaparecer, só lhes restará "agarrar-se pelo pescoço à corda das certezas". 

O interessante projeto gráfico de Alessandro Romio inverte a posição da orelha, escrita por Afonso Henriques Netto. O livro ainda conta com quarta capa de Mar Becker e um ensaio de Leonardo Almeida Filho, além de uma "(quase) advertência" do autor no início e um pedido aos leitores no final a respeito das obras retratadas nas fotos.



No entanto, ainda há o que falar sobre Prosa da cidade. Em primeiro lugar, quero concordar com o autor e discordar da recensão de Eduardo Sinquevisque, que considera que as fotos do livro são poemas. Trata-se, em vez disso, de um livro de poemas com fotos do próprio poeta, mas não de algo como a edição original de Paranoia, com poemas de Roberto Piva e fotos de Wesley Duke Lee. Nela, poesia e fotografia estão em relação intersemiótica e ambos são autores do fotolivro; os poemas e as fotos, ademais, têm a força e a autonomia para serem publicados separadamente.

Prova-o o desastre da edição nova do Piva pela Companhia das Letras (sigo aqui a recensão de Fabio Weintraub, "Um coração que não para de crescer"): ela escolheu, e fora de ordem, somente algumas das fotografias: tratou-as como mera ilustração, banalizando a proposta original. Mais valia ter publicado apenas os poemas, como fez a editora Globo no início deste século. O IMS, lembro, respeitou-a quando publicou neste século Paranoia.

As fotos de Nuno Rau não têm o mesmo propósito (de qualquer forma, a qualidade da impressão não permitira aquela relação intersemiótica: teríamos que ter as condições gráficas de um livro de arte): elas estão lá com um papel de arqueologia da escrita: aquelas paisagens urbanas são parte do que animou esta poética.

Em segundo lugar, o título: de vez em quando, um livro de poemas recebe a palavra prosa no título: Prosas seguidas de odes minimas, de José Paulo Paes, de José Paulo Paes, e Prosa, de Eduardo Sterzi, são exemplos das últimas décadas da poesia brasileira.

João Alexandre Barbosa, na apresentação do livro de Sterzi, compreendeu que título era uma referência à Estética de Hegel: o confronto entre a idade da poesia dos antigos e a idade da prosa dos modernos; daí, segundo Erich Heller, também citadom a marginalidade do poeta na Era Moderna. Sterzi, nas suas notas de autor, aposta que teremos lido nessa sua estreia "aquilo que é vulgar, trivial,/ positivo ou material". Essa proposta, evidentemente, não é nova, mas moderna.

Parece-me que Prosa da cidade aposta nisto, no vulgar, no trivial, que é o que ele busca dizer; para isso, ele não se detém no Rio de Janeiro (Mar Becker, na contracapa, chega a dizer que este Rio é também "todas as cidades do mundo"). O objetivo não se limita a fixar paisagens nem momentos pitorescos da cidade. Trata-se da aposta de que é urbano o espaço criado pela escrita, por ser público e aberto às dissemelhanças. O primeiro poema, "Paisagem de cidades imaginárias", da seção "Marco zero" (revela-se que é um livro de arquiteto), destaca essa questão:


e você aí nessa cidade-fantasma
com o braço erguido
em frente ao muro, no espaço
do instante em que o grafite
incompreensível que sua mão
projeta é toda a sua
vida.


No ensaio que cumpre o papel de posfácio, Leonardo Almeida Filho destaca as várias referências ao Modernismo brasileiro (por exemplo, entre as cidades listadas no poema que citei, está Pasárgada), porém essa não me parece ser uma novidade, ou o que há de mais interessante no livro: a "pós-política literária", mera paródia de Drummond inserida após esse texto, confirma que o essencial do livro aconteceu em outro lugar.

Um terceiro ponto que gostaria de destacar é o verso de Nuno Rau: em geral, os poemas foram escritos em verso branco e livre, com um uso de enjambement que se combina ao procedimento de começar sentenças com maiúscula no interior do verso sem nenhum ponto final que as preceda. Transcrevo, como exemplo, o final de "um artefato acende os edifícios da praça quando explode":


tudo parece explodir Não: não parece Tudo
explode e voam estilhaços que são lâminas no céu
das suas certezas Sim, agora você já pode se perder
de si pela cidade - essa antologia
infinita, sem fronteiras
nem bunkers

Ocorre aí uma pausa, mas não a do ponto final: às vezes, elas parecem sugerir que a frase anterior continua, mas sem ser ouvida. Em outros momentos, elas parecem introduzir novas vozes e quebrar o caráter em geral monológico dos poemas. Acentua-se, dessa forma, também o caráter fragmentário do discurso.

Este poema, da seção "uma cidade, as cidades todas", e o primeiro parecem delimitar o campo do livro, entre o grafito que constrói o urbano e a cidade que cria antologias das coisas por explodi-las. Um dos poemas traz a visão de um anjo arrastando-se na cidade, "aqueles tijolos de um vermelho antigo sangram no bairro industrial". Esta é a cidade:


[...] Entre
despejos, catástrofes e flores febris, a asa
é um aleijão, inútil
como um poema que cicatriza
na pele da memória enquanto
anoitece, [...]

Já estamos no quarto e último ponto: a memória, que aparece aqui na dimensão da ferida (lembrança do corpo) e dos fragmentos (lembrança da matéria em geral), na sua dialética com a morte e o esquecimento. Das coisas e da história sobram os vestígios: "a história narrada no vazio vertical/ de quem foi triturada pelos dentes rudes/ das britadeiras e contabilizada em vagões/ lentos como lotes de vestígios [...]" no belo "uma pedreira".

Essa energia de destruição e desagregação decorre do capital. Este livro é abertamente anticapitalista e, no irônico "neolib", trata da repressão e dos massacres de hoje, feitos em nome da ordem vigente: 


pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
dos garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.

a noite alcança a cidade maravilhosa.


Nuno Rau explicita a posição de classe do eu lírico desse poema: é daqueles que desejam a prisão ou a morte desses meninos (noto, por sinal, que a recente chacina no Alemão e na Penha confirma a atualidade da questão). 

Cidade maravilhosa, provavelmente devo explicar, é um velho epíteto do Rio de Janeiro, que recebe, com sua douta classe média, outro poema especialmente dedicado: "nênia para a classe média brasileira":


Copacabana não tem mais nenhuma livraria. [...] Há trinta anos eram quatro ou cinco, sem contar um ou dois sebos. O bairro de classe média mais adensado do Brasil não tem nenhuma livraria. [...] Seis igrejas católicas, duas igrejas messiânicas, duas igrejas batistas, três sinagogas e nenhuma livraria. Quatorze escolas municipais, onze escolas estaduais e vinte e cinco escolas particulares pontuam ruas e praças, mas nenhuma livraria. [...]

 

Nênia, evidentemente. Devo dizer que, na última vez em que fui a Copacabana, encontrei duas livrarias, inclusive o ótimo sebo Mar de Histórias, mas, de qualquer forma, o número seria ridiculamente pequeno para o tamanho do bairro e não daria conta de um quarteirão da calle Corrientes em Buenos Aires. 

O poema menciona templos das chamadas religiões do Livro, que congregam fiéis que... não leem. E a educação? Rau nem menciona o campus da Universidade Estácio de Sá: o chamado ensino superior não logrou entrar no poema.

Nesse poema, a destruição da cultura do livro é um tema, não uma forma. Mas a fragmentação e o estilhaçamento podem ter esse papel, quando o poeta é habilidoso. Vemos isso acontecer nas anamorfoses da seção com o simpático título "chapa quente". Elas já haviam sido publicadas com outro projeto gráfico: https://www.instagram.com/p/CIyVPNYnV4K/?img_index=2

Sandro Ornellas destacou os sonetos dessa seção como o ponto mais forte de Prosa da cidade. Penso, porém, que o procedimento de despedaçá-los em fragmentos seja o que lhes concda, paradoxalmente, sua força.

Uma poesia que se alimenta de sua própria destruição. Naturalmente, o tema da morte pulsa na Prosa da cidade, como na curiosa oração ao suicídio de "paradise park prayer": "se o chão desaparecer agarrar-se pelo pescoço à corda das certezas". É o trecho que citei no começo desta nota. A palavra suicídio não aparece, salvo como "centro oculto" ou resposta de um poema como "o que você faria se não tivesse medo?":


até o centro oculto, ali
onde o segredo pode
ser o não haver nada

Ou esta paisagem: "do oitavo andar à frente/ [...]/ desejava o salto até perder de vez/ o que fosse", de "vista sobre a cidade sem horizonte". Ou este mergulho adiado: "[...] das conversas que você trava/ com o mar, todas falando da morte [...]" ("respire fundo e conte até dez").

O que me conduz a um curioso poema, um dos primeiros, em que o verbo suicidar aparece em nota: "uns tragos com j. de souza". O título parece indicar um momento alegre num bar, no entanto o poema começa desta forma: "Vou para um mundo negro/ feito um cego". A sequência de versos não esclarece realmente do que se trata, e os tragos alcoólicos nunca aparecem até o verso final, em caixa alta: "PRIVADO DA MEMÓRIA ESTOU FELIZ".

A perplexidade do leitor não dura muito, pois o poema é composto dos versos livres e uma nota de rodapé, que é uma citação direta de matéria do jornal The Intercept brasileiro sobre um dos antigos centros de tortura, execução extrajudicial e desaparecimento de corpos da ditadura militar: o DOPS do Rio de Janeiro. Escrevi há poucos dias que esse local continua ainda tão, digamos, simbólico para as autoridades brasileiras que Bernard Duhaime, relator da ONU, foi impedido em abril de 2025 de visitá-lo.

A sociedade civil quer devidamente torná-lo um local de memória. O Estado quer trancá-lo no esquecimento e viola seus compromissos internacionais para tentar manter a desmemória. 

A nota do poema de Nuno Rau cita o assassinato de José de Souza, um homem negro, ferroviário e sindicalista, que teria se atirado da janela do DOPS, "suicidando-se" segundo a versão oficial da ditadura, depois de ter sido sequestrado pelos agentes da repressão dias depois do golpe de 1964. 

Seu caso foi denunciado já nos anos 1960 por Marcio Moreira Alves no livro de 1966 Torturas e torturados:




Marcio Moreira Alves seria cassado poucos anos depois, com o AI-5, e teve de deixar o país. O outro sindicalista mencionado chama-se, na verdade, Antogildo Pascoal Viana. José de Souza foi incluído, décadas depois, no Dossiê Ditadura da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; este é o começo da seção sobre o sindicalista:



Naturalmente, o caso de José de Souza  foi analisado no volume III do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (Antogildo também está relacionado nas duas obras). A nota no poema de Nuno Rau não cita essas referências, mas corretamente lembra que, em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte.

O poema, assim, relembra o "J. de Souza" sem deixar, paradoxalmente, de usar procedimentos de desmemória, pois o texto principal, digamos assim, nada menciona, louva o esquecimento e o que ocorreu é empurrado... para a nota. 

A estratégia de incorporar esses procedimentos é de uma grande astúcia poética, bem mais original do que um diálogo imaginário com o sindicalista morto no DOPS. A astúcia também possui caráter político, por chamar atenção para a força social do esquecimento - o que alguns chamam de uma persistente amnésia coletiva a respeito dos crimes de lesa-humanidade (usei essa expressão em meu Ilícito absoluto). É interessante que Nuno Rau o faça com uma citação literal de matéria jornalística: o ready-made, neste caso, é um contraponto a fake news.

Para enfatizar o caráter político deste livro, o autor deixa para perto do final a "queima de arquivo (epílogo)": 


[...] combustível
fóssil da memória
que abre
a brecha
no lacre dos
calendários por
onde os estilhaços
passam
até atingir
e incinerar
depois da implosão
a carne do seu
pensamento, [...]


Nuno Rau sela o livro com a fragmentação da matéria e da memória, que ele buscou encenar nesta poética insurgente.


sábado, 25 de outubro de 2025

Adrenalina e o coração com fios de Filipa Leal

Li Adrenalina (Assírio & Alvim, 2024), de Filipa Leal e, apesar de reconhecer o humor das obras anteriores ("Quando cheguei ao carro, estava multada.", p. 69), e as mesmas características do verso, percebi diferenças deste novo desde a estrutura. Ele não tem o tipo de unidade de Fósforos e metal sobre imitação de ser humano, de 2019, produto de uma concepção muito interessante de livro, que incorporava a própria crítica a seu texto. 



Adrenalina realiza outra configuração de livro: boa parte de sua unidade vem do trabalho com imagens recorrentes, como o unicórnio que ela encontra em um guardanapo ("Meu guardanapo de papel") e na canção de Silvio Rodríguez ("Biblioteca Gabriel García Márquez"), em que ele é azul, a mesma cor do guardanapo; a própria poeta é pintada de azul por Isabel Lhano ("Amigos coloridos"), que é a cor da guitarra que origina miticamente a música ("A mulher da guitarra azul"). 

A trama de imagens tem várias recorrências, que estabelecem ligações inesperadas: a casa é do amor ("O amor é uma casa interrompida", mas também "uma casa cheia/ de janelas sobrepostas"), é da Rosa (que "fica lá dentro, a espiar sua própria casa") e há outras casas, que pertencem às avós - e ao menos na de Avó Dores treina-se para se acostumar à morte, que, parece, tanbém constitui a casa aberta pela porta em que "Georgia O'Keeffe entrou e não saiu." ("A porta de Georgia O'Keeffe").

Ressalto esse tema porque me parece estar no centro da obra, anunciado já no título, que somente compreendi no meio do livro, ao ler "Se calhar tenho café no coração". Esse poema conta uma experiência de quase morte depois de injeções de adrenalina:


Ligaram-no, eu vi, mas não chegou a ser preciso
usar o desfibrilhador para a reanimação
porque o meu coração sem fios
era, afinal, capaz de suportar um milhão de barris de café.

Esse tema ecoa em vários poemas, como, além dos que já mencionei, "Avó Isabel" e seu inquietante final: "E não era de polícias que eu tinha medo". 

Os poemas sobre pandemia buscam tratar da questão em sentido mais coletivo, o que é mais raro nesta poética. O melhor, parece-me, "Os mascarados anos 20", assim termina:


E acabámos, acabámos aos milhões.
 
Os que sobreviveram acabaram, foda-se,
a tomar sol em comprimidos.

Também neste livro de 2024 de Filipa Leal (Fósforo e metais, por exemplo, abria-se com uma epígrafe de Adélia Prado) aparecem referências ao Brasil: do rapaz anônimo que trabalha no mercado a Chico Buarque, Drummond, Leminski. No final de tudo, surge uma homenagem a Clarice Lispector com a repetição do procedimento de listar diversos títulos, que a escritora brasileira usou em A hora da estrela, o último livro que ela conseguiu lançar - e é marcado pela morte também nesse sentido biográfico.

Nesse procedimento, pois, também temos uma alusão à morte em Adrenalina? Em primeiro plano, ele faz diretamente alusão em Adrenalina à passagem do tempo. Por isso, quero citar um poema que parece ecoar Cecília Meireles. O célebre "Retrato", do livro Viagem, começa com "Eu não tinha este rosto de hoje" e conclui-se com este quarteto:


Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Em "Os espelhos", de Adrenalina, não sem humor, a perspectiva é invertida:



Quando, muito raramente, de xis em xis anos,
olho para um espelho, reparo que
os espelhos
são coisas que mudam muito com o tempo.


Destaco também o poema seguinte, "Os dias sem surpresa", que cita nominalmente Drummond, porém termina como Manuel Bandeira à espera da "indesejada das gentes":


Aos 40 anos, tudo que desejo sao estes dias
sem surpresa: chegar ao céu, sentar-me,
efectuar o pagamento no acto da entrega.

A autora entrega como último poema "Recado para Paulo Leminski", em que avisa, lamentando não poder ter-se dedicado totalmente à poesia, seu sonho de infância: "Crescer é ser interrompido." Curiosa forma de terminar um livro de poesia, lembrar do princípio da realidade!

A morte é uma interrupção e a poeta sutilmente não menciona esse substantivo aqui, tampouco no belo poema de nascimento "Quarto 332", muitas páginas antes. Embora o livro ainda tente prolongar-se na miríade de títulos no fim e, dessa forma, eles funcionem como lápides (ao contrário do que fez Clarice Lispector), pode-se indagar do que realmente foi terminado.

A trajetória de Leminski foi interrompida cedo (e outros de sua geração, Ana Cristina Cesar e Cacaso, viveram ainda menos do que ele). No entanto, postumamente, sua obra cresceu muito perante o público; ademais, chegou até a este livro do outro lado do Atlântico. 

Mandar um recado para o poeta morto atesta essa vida dos poemas, que é a de gerar novos discursos, novos desejos, fios entre autores (o médico no poema da adrenalina errou ao dizer que ela não os tinha no coração) e novos golpes na arte marcial (Leminski, o judoca) que é a poesia; eles exigem muito do coração e, evidentemente, da adrenalina.

No Brasil, infelizmente Filipa Leal ainda só tem publicado A cidade líquida, iniciativa da editora Moinhos em 2022. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Desarquivando o Brasil CCXIV: Tenório Jr., cujo corpo ainda foi não encontrado e o relatório de Bernard Duhaime sobre o Brasil

Ditaduras não fazem apenas militantes políticos como vítimas. Em princípio, qualquer um pode sucumbir num quadro de ataque sistemático à população civil e, portanto, de impunidade garantida dos agentes da repressão. O grande músico Tenório Júnior foi um exemplo disso: desapareceu em 18 de março de 1976, quando estava em turnê com Vinicius de Moraes na Argentina. Ele não tinha atuação política alguma, nem no Brasil nem na Argentina.

Depois de torturas, ele foi executado extrajudicialmente e sofreu desaparecimento forçado. Seu caso foi analisado no Dossiê Ditadura da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, foi reconhecido pela Lei dos Desaparecidos (Lei federal n. 9140 de 1995) e foi incluído no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, referenciado como um exemplo de vítima da cooperação entre as ditaduras do continente, a chamada Operação Condor:



O Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), cruzando dados de corpos que foram encontrados na rua e enterrados como desconhecidos (NN), descobriu que um deles era o do músico brasileiro, por causa das digitais. O anúncio ocorreu em 13 de setembro de 2025. A análise papislocópica é um método primário de identificação, pois as digitais são únicas: com elas, não é necessário aplicar outro método de identificação. 

No entanto, com isso, descobriu-se apenas para qual cemitério seu corpo foi levado, o de Benavídez. Onde precisamente o corpo foi sepultado, não se sabe. O EAAF explicou: "Si bien su cuerpo no fue recuperado". O Ministério das Relações Exteriores brasileiro foi mais claro a respeito do que boa parte da imprensa, explicando que foram identificadas "as digitais" do músico: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/identificacao-de-tenorio-junior

Escrevo esta nota no mês seguinte porque vi que um importante músico brasileiro entendeu que os ossos foram encontrados. Infelizmente, não: só foi descoberto em qual cemitério o corpo de Tenório Jr. foi escondido. A depender de como estão os documentos do cemitério, das obras que nele foram realizadas, e das reinumações, é possível que nunca sejam identificados seus remanescentes ósseos.

Em 15 de abril de 2025, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Pulo (CAAF-Unfesp) anunciou a identificação de dois desaparecidos: Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva. Eu trabalhava lá nessa feliz ocasião. Nesses dois casos, a situação era muito diferente: o CAAF tinha os remanecentes ósseos, que vieram da Vala de Perus (a vala clandestina onde a ditadura militar escondeu mais de mil corpos no Cemitério Dom Bosco em São Paulo).

Isso me leva à outra questão: o relatório sobre a visita ao Brasil de 30 de março a 7 abril de 2025 feita por Bernard Duhaime, o jurista internacionalista canadense que está no cargo de Relator Especial da ONU para Promoção de Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição.

Não achei que a divulgação do relatório em 10 de setembro de 2025 tenha recebido a devida cobertura jornalística; a melhor matéria que vi foi a do Cimi, que corretamente destacou a crítica do Relator a lei inconstitucional e pró-genocído do marco temporal: https://cimi.org.br/2025/09/impunidade-a-crimes-da-ditadura-pavimentou-lei-do-marco-temporal-aponta-relator-da-onu/ 

Através desta ligação, poder-se-ia, teoricamente, ler o relatório em um dos idiomas oficiais da ONU: https://docs.un.org/A/HRC/60/32/Add.1. No entanto, só o resumo foi traduzido: o texto principal, no momento em que escrevo esta nota, está em inglês "em todos os idiomas", digamos.

Quero destacar estes dois parágrafos, que tratam do processo de busca dos desaparecidos e da Vala de Perus:


19. Other entities involved in the search for victims of the regime are the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology and the Perus Working Group. Following the discovery in 1990 of a dictatorship-era clandestine mass grave containing 1,049 sets of bones at the Dom Bosco Cemetery in Perus, the exhumed remains were stored sequentially in the State University of Campinas, the Federal University of Minas Gerais and the Legal Medical Institute of the State of São Paulo. Demands from families of victims and a public civic action filed by the Federal Public Prosecutor’s Office in 2009 in response to reports about poor storage conditions and delays in the identification work led to the transfer of responsibilities to the newly created Perus Working Group and the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology of the Federal University of São Paulo in 2014. The forensic work is carried out by the Centre and led by the Working Group, with the support of the Special Commission on Political Deaths and Disappearances. The Working Group developed protocols and methodologies that combine DNA tests, biological anthropology and archaeology to identify remains. Since 2017, the International Commission on Missing Persons has assisted the Working Group with the identification process. Three victims of the regime were identified in 1991, 1992 and 2005, and two more in 2018. One week after the end of the country visit, the Perus Working Group confirmed the identification of two more victims.

20. The Special Rapporteur was impressed by the competence and commitment of the multidisciplinary expert team during his visit to the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology, noting, however, that the scarce availability of financial resources, infrastructure, specialized equipment and blood samples from relatives of victims (owing to insufficient collection campaigns) affected its daily work, and therefore requires urgent government support. The Special Rapporteur was informed that the Perus Working Group was dissolved in 2019, but subsequently reestablished under the current administration, and that the Centre suffered setbacks during the same period.


A descrição está correta, e o Relator ainda fez notar que os remanescentes ósseos de mais dois desaparecidos foram identificados na semana seguinte à visita internacional. Vejam também que ele ficou "impressionado pela competência e compromisso da equipe multidisciplinar de especialistas" do CAAF-Unifesp, notando, porém a "disponibilidade escassa de recursos financeiros" e a necessidade "urgente de apoio do governo". Ele também relatou as dificuldades que o trabalho de identificação dos mortos e desaparecidos sofreu durante o governo de Bolsonaro. De fato, o CAAF ficou quase paralisado.

Esse trabalho já é tecnicamente difícil; politicamente, até tratar dele não é fácil, o que inclui os... relatores especiais da ONU: ainda em abril, Duhaime divulgou observações preliminares sobre a visita, em que lamentou que o Alto Comando das Forças Armadas e o Ministério da Defesa não tivessem se encontrado com ele. 

No relatório, informou que foi proibido de visitar o prédio do antigo DOI-Codi de São Paulo, reiterando que ele deve se tornar um lugar de memória (parágrafo 54), e também não pôde entrar nas instalações do ex-DOPS do Rio de Janeiro (parágrafo 2 - o Brasil violou os termos de referência para a visita do Relator). Juliana Dal Piva tinha noticiado no ICL o vergonhoso comportamento das autoridades brasileiras no Rio.

No parágrafo 21, Duhaime registrou que remanescentes ósseos que podem ser de guerrilheiros do Araguaia estão parados há mais de dez anos na Universidade de Brasília sem que o trabalho de identificação seja feito. 

Ainda há muito para fazer, portanto, em matéria da busca e da identificação dos desaparecidos, e persiste, mesmo após o fim da ditadura, do governo de Bolsonaro, da condenação criminal de Bolsonaro e de militares aliados, muita resistência contra essa medida fundamental de memória, verdade e justiça (fundamentos da justiça de transição).

Ela é importante para as familias diretamente envolvidas, mas também para toda a socidade, pois se trata da dimensão coletiva do direito à memória e à verdade. Um povo tem o direito de saber sua própria história, e ela pode ser lida nesses ossos - basta identificá-los. 


domingo, 5 de outubro de 2025

Golpe da dosimetria, ou a dosimetria do golpe

Esta dosimetria que se planeja no Congresso Nacional para os criminosos que atentaram contra democracia brasileira significa uma continuação do golpe por via do Legislativo.

Por conta da tentativa de golpe de Estado por Jair Bolsonaro e seus aliados, tem-se lembrado bastante de momentos funestos de anistia na história brasileira, como a que Juscelino Kubitschek granjeou aos golpistas de seu tempo, retribuída, anos depois, com sua cassação e a provável execução extrajudicial durante a ditadura militar, que os pesquisadores do GT JK apuraram e a Comissão Nacional da Verdade não quis investigar.

Por essa razão, a anistia que se discute hoje, bem como o projeto casuísta de "dosimetria" (uma anistia em cápsulas), por vezes é comparada à lei de 1979. No entanto, esta foi algo bem diferente: afinal, não era destinada a golpistas, mas a quem se opôs a um governo de fato imposto por um golpe de Estado: trata-se, basicamente, da situação oposta.

O projeto de 1979 foi a resposta da ditadura ao movimento social que surgiu em 1975 a partir do Movimento Feminino pela Anistia. Foi algo bem casuístico, como explicou a historiadora Janaína Teles, e não o resultado de um acordo com a sociedade. A Lei 6.683/1979 libertou muitos dos oposicionistas que estavam na cadeia, mas não todos, e permitiu a volta de muitos que estavam no estrangeiro ao Brasil.

O Judiciário brasileiro estendeu, inconstitucionalmente, os efeitos dessa Lei de Anistia para os agentes da repressão. O julgamento em 2010 pelo STF da ação que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito desse tema, a ADPF 156, foi favorável aos autores de crimes de lesa-humanidade, mas não deu a palavra final sobre o assunto.

Primeiro, porque a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil), no fim de 2019, decidiu que a extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos autores de graves violações de direitos humanos (uma autoanistia) não era válida diante do Direito Interamericano dos Direitos Humanos.

Segundo, porque o julgamento do STF não transitou em julgado: há mais de quinze anos o recurso contra a decisão dormita no tribunal, agora nas gavetas de Dias Toffoli, que havia atuado como Advogado-Geral da União quando a ação foi proposta, bem como a ADPF 320, que o Psol propôs também a respeito da Lei de Anistia, e foi apensada à 156.

A situação me faz lembrar do caso de Carlos Alberto Brilhante Ustra: o Judiciário brasileiro reconheceu que ele praticou tortura contra César Augusto Teles, Criméia Alice Schmidt de Almeida e Maria Amélia de Almeida Teles. Contei a história desse processo pioneiro em um livro, Ilícito absoluto

No entanto, tratou-se de uma ação cível meramente declaratória.  O militar morreu em 15 de outubro de 2015 sem ter sofrido nenhuma condenação criminal porque o Poder Judiciário brasileiro estendeu, repito, a anistia para os autores de crimes de lesa-humanidade 

Sem condenação criminal nenhuma, foi beneficiado pelo, digamos, negacionismo judicial que alimentou o negacionismo histórico: afinal, como não aconteceram investigações e punições, os autores viram-se respaldados para afirmarem que os crimes nunca existiram. A negação da justica reforça a negação da memória e da verdade.

Com esse respaldo, foram criadas redes da direita militar que contou com várias publicações e blogues. Carlos Alberto Brilhante Ustra alimentou e fomentou essas redes.

Esse trabalho de agitação e propaganda ajudou Jair Bolsonaro a ganhar prestígio nos meios militares. No Ilícito absoluto, mostrei que  o casal apoiava esse militar agora inelegível e condenado por golpe de Estado desde pelo menos a primeira década do século. Isto ocorreu pelo menos desde 2005:



Esse apoio foi fundamental e Jair Bolsonaro soube mostrar-se grato: a homenagem no nefasto voto pelo impeachment em 2016 foi uma das ocasiões. Diversas vezes ele, que jamais foi conhecido por ser um leitor, fez propaganda do segundo livro assinado por Brilhante Ustra. Além disso, convidou a viúva, com quem se encontrou algumas vezes, para participar de seu governo ( Fábio Victor, em Poder camuflado, tratou desse tema).

Não à toa, símbolos, nomes, rostos (entre eles, o de Brilhante Ustra, que foi convertido até em camiseta da extrema-direita) da ditadura militar foram resgatados e ressignificados pelo governo de Jair Bolsonaro, sempre se equilibrando na dissonância cognitiva de celebrar golpes e crimes, negando, porém, que eles tivessem essa natureza.

Carlos Alberto Brilhante Ustra pôde realizar  esse trabalho de agitação e propaganda que beneficiou Bolsonaro justamente porque ficou impune, apesar de o DOI-Codi de São Paulo, que ele chefiou, ter sido, nos dizeres da sentença de Gustavo Santini Teodoro no caso da família Almeida Teles, uma "casa de horrores" onde se cometiam "ilícitos absolutos".

Uma nova anistia hoje não geraria efeitos semelhantes? Não se revelaria um ovo de serpente, engendrando o nascimento de nova candidatura, mesmo que de um velho ou decrépito nome, da extrema-direita nacional? 

Ademais, apoiar a diminuição das penas dos crimes contra a democracia não seria o sinal explícito de um apreço diminuto ao regime democrático?

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Sobre Alberto Pucheu, "Mais poético do que o poético"

Escrevi esta resenha em 2016 para um sítio que, aparentemente, não existe mais. Enquanto não escrevo novamente sobre o autor, deixo-a aqui. 


Mais poético do que o poético...


Pádua Fernandes



... que bem pode ser um dos sentidos do título Mais cotidiano que o cotidiano, do último livro de poesia de Alberto Pucheu, publicado pela Azougue em 2013, uma vez que todos os seus livros, ao menos desde sua segunda estreia, em 1993, buscaram utilizar poeticamente materiais da linguagem cotidiana. Não deveríamos esperar menos do autor que, em Escritos da indiscernibilidade, havia dito que “a linguagem, por fundamento e definição, é poética, mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”, trecho destacado por Renato Rezende em resenha na qual escreveu que Pucheu “expande os limites do poético”1.

É certo que essa expansão integrava o projeto do modernismo no Brasil, como escreveu Miguel Saches Neto na apresentação do livro de 2013, e (acrescento) pode ser identificada em autores do século XIX. Resta ver como Pucheu a realiza, e que tipo de novidade sua literatura continua a trazer.

Entendo que essa expansão pode-se dar, nesta obra, por meio: a) do eu lírico multiplicado e/ou alheio (especialmente pelo que chama de “arranjos”); b) do desguarnecimento de fronteiras (para usar uma expressão cara ao poeta) entre poesia e outros discursos, operação que é, em si, poética; c) da dissolução do eu na natureza e no corpo; d) da busca do inarticulado.

Essas quatro linhas da poesia de Pucheu, que se cruzam e se recombinam, já apareciam com graus variados em livros anteriores. Mais cotidiano que o cotidiano mantém os arranjos, poemas que o autor afirma serem totalmente composto por recortes de discursos alheios e que aparecem com esse nome desde A vida é assim, justamente na parte homônima deste último livro.

Originalmente, a seção desta obra de 2001 fazia significativa referência a sua segunda coletânea (e estreia oficial), a plaquete Na cidade aberta, mas a referência foi suprimida na reunião de quase todos os seus primeiros livros de poesia, A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Deve-se lembrar que A cidade aberta tinha como epígrafe exatamente um “poema colhido na boca de um transeunte na marina da Glória”2 e terminava com poemas produzidos a partir de falas recolhidas na cidade, método já antigo na poesia de Pucheu.

Também suprimido na poesia reunida foi o significativo posfácio a A vida é assim escrito pelo grande poeta português Alberto Pimenta, que bem viu nessa poesia “um memento da liquidação lenta do eu, ‘tornado consciente do arrepio da própria limitação e finitude’ (Adorno)”3.

O uso de frases alheias, retiradas do cotidiano das ruas, dos meios de transporte poderia ser uma forma de o poeta, a partir de seus materiais, apresentar a vida tal como ela é, se isso fosse possível, e de dizer, pelo seu próprio modo de produção, que “a vida é assim”. De certa forma, é viável fazê-lo, mas apenas por meio de uma invenção, e nisso temos a poesia.

Na publicação anterior ao livro do poema que se tornou, em A vida é assim, o “Arranjo para mensagens eletrônicas” (que seria um arranjo de frases da correspondência eletrônica passiva do poeta), temos um curioso adendo que não foi incluído no livro de 2001, tampouco na poesia reunida:


Caros amigos, resolvi fazer um poema, quero dizer, um arranjo, com fragmentos de mensagens eletrônicas recebidas por mim nesses últimos dias. Uma das coisas que mais me provocam é experimentar o quanto de «não-poético», de cotidiano, de ordinário, a poesia consegue suportar. Talvez se lembrem de «na cidade aberta nº 3» e de «Poema para a maior audiência do país». O primeiro, com vozes de vendedores ambulantes que circulavam no trem e com o aviso de seus destino e horário de partida. O outro, uma disposição de frases que foram ditas no programa do Ratinho por diversas pessoas [...] Essa escrita, composta apenas com frases alheias, vem me perseguindo desde o começo. Descubro, com ela, uma possibilidade da qual só sou capaz enquanto arranjador, afrouxando, assim a unidade do eu lírico, a subjetividade daquele que escreve e a força do princípio conjuntivo. [...]4


Essa parte do texto possui um caráter demasiadamente explicativo, o que deve ter levado a sua não publicação no livro. No entanto, é interessante lê-la pelo que o poeta escolheu falar dos próprios procedimentos, e pelo que ela revela a contrapelo do autor. Temos aí uma tensão entre ser ninguém (“quem escreve jamais deixará de ser ninguém”5, escrevera em Escritos da frequentação, de 1995) e entre uma superafirmação da subjetividade do poeta arranjador, que, afinal, manipula os discursos alheios. A autoria, no entanto, sempre está posta: na escolha da matéria, na seleção dos elementos e na sua disposição.

Creio que se pode aplicar à poesia de Pucheu o que o ensaísta Pucheu explica da poesia de Leonardo Gandolfi:


[...] em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada6.


Apesar da tentação homonímia, sem dúvida a noção de arranjo musical é pobre para pensar a questão; ele é mais do que um arranjador. Poder-se-ia inicialmente pensar que temos aí mais o poeta como regente do que como compositor, e que o regente, de qualquer forma, cria sua própria interpretação do material dado. No entanto, a subjetividade envolvida na criação dos arranjos de Pucheu é muito maior do que aquela que um maestro pode dar a uma composição alheia, pois o material com que o maestro lida já era considerado musical, porém as frases que escolhe não eram necessariamente poesia antes de ele lhe dar o seu tratamento de “arranjador” – que é, na verdade, um tipo de poeta e, por isso, mostra-se análogo ao compositor.

É certo que na tendência forte a uma intertextualidade explícita com textos poéticos na poesia brasileira desde os anos 1990 temos, certas vezes, algo parecido com esse procedimento do arranjo. No entanto, esses outros poetas com um emprego forte da intertextualidade, em geral, estão presos ao gênero literário e raramente vão para as falas das ruas; preferem, muitas vezes, discursos mais nobres, mais consagrados, sem se guiar por falas de outra extração, mais cotidiana, sem atender à divisa que Pucheu escrevera em Ecometria do silêncio: “se inclassificável, é poesia7. Ele é capaz de citar ao mesmo tempo Aristóteles e vendedores de bananada, mais ou menos como, na primeira metade do século passado, Varèse podia colocar sirenes no meio do discurso musical.

Em Mais cotidiano que o cotidiano, o “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento (antivoz)” combina as falas de dois autores de atos de terrorismo não estatal, Wellington Menezes de Oliveira, do Rio de Janeiro, e Anders Behring Breivik, da Suécia, tentando construir um discurso contínuo fascista independente das fronteiras. O “Arranjo para tornar o mundo cada diz menos violento (pós-voz)” é uma sequência dos nomes das vítimas de ambos.

Nesses arranjos, opera-se um desguarnecimento da poesia com outros discursos, o que é feito também pelo ready made “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento, II”, que transcreve a fala do comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro após a violenta repressão das autoridades estaduais contra as manifestações populares em julho de 2013. Nesse caso, os procedimentos desta poética são menos os de artesania textual do que os de arte conceitual, de performance.

Também apresenta uma poética de performance o poema atribuído a outrem (um amigo de longos anos que foi por ele supervisionado no pós-doutorado, o poeta Caio Meira), “Perfil parcial de um procedimento, escrito por Caio Meira”. Ele trata nada menos do que da suposta vida do poeta Alberto Pucheu e de como ele teria concebido a técnica dos arranjos antes de teóricos como Marjorie Perloff se ocuparem de poéticas desse tipo. No entanto, trata-se do texto menos bem sucedido do livro: embora, de fato, tenha êxito em parecer de outra pessoa, o estilo e a frase não oferecem nem de longe o horizonte de pensamento dos outros textos de Pucheu.

A frase de Pucheu, meio verso, meio prosa, como vemos desde Ecometria do silêncio, de 1999, apresenta, em regra, uma argumentação sem sobressaltos, uma voz baixa, contínua, como se ele quisesse tornar indistintos o pensamento e a respiração. Essa característica rítmica tem relação, creio, com a questão do inarticulado, outra das linhas desta poesia. Não que ela ignore sobressaltos ou um acorde final surpreendente; veja-se no poema que publicou em O Globo sobre a posse de Lula na presidência da república, recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano: “Poema para ser lido na posse do presidente (antevoz)” vai realizando uma reflexão enquanto o eu lírico anda na rua, pelas calçadas, cruzando com os corpos, tratando desses corpos:


[...] São corpos dúbios,

quando dançam o funk sob a mira

dos AR-15, quando fogem dos tiros

saltando atleticamente por telhados,

caixas d’água, correndo por becos,

quando se explodem na terra ou no ar

contra o concreto de um edifício

ou quando se jogam das alturas

do mesmo edifício. São corpos funcionais,

como nas caixas lotadas dos supermercados,

dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto

do sol, dentro da cozinha da minha casa,

ao meu ouvido, na central de telemarketing.

São corpos... São corpos que, em algum momento,

esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua,

nada mais. [...]8


Ele já havia escrito que, “em longas caminhadas,/ quem enxerga são as pernas.”9; neste importante poema da literatura brasileira contemporânea (goste-se ou não do homenageado), o eu lírico mostra-se consciente de sua posição de classe, o que nem sempre os comentaristas da obra de Pucheu percebem10. Esses corpos são feitos de vazios, de faltas, e acabam simbolizados em “a poesia/ do dedo que falta na mão do presidente.” A mutilação se deve a algo mais cotidiano do que o cotidiano no Brasil, os acidentes do trabalho, que se multiplicam amparados em outra falta: não têm efetividade alguma as previsões penais sobre segurança do trabalho, em razão da (in)eficácia do direito burguês, diferida segundo a classe social. Essas faltas se materializam na mão daquele presidente, que foi alvo de deboche de setores que lhe fizeram oposição e que, nesse gesto mais do que mesquinho (debochar de uma mutilação que, na verdade, é uma marca de classe social), mostraram também seu desprezo pela situação do trabalho no país.

É uma das ocasiões em que a opção pelo cotidiano gera o poético em alta intensidade. Creio que, num registro cômico, é o mesmo que ocorre em “Transcrição ipsis litteris de uma fala em uma banca”, um momento de autoficção em que ao menos esta passagem é metapoética:


[...] estou vendo o Fábio ali na última fileira que me chama de Professor, o Domingos, aqui do lado, me chama muitas vezes de amado, a minha namorada me chama de Betô, de Querido e de outros nomes que não vêm ao caso. Eu acato todos esses nomes. Neste momento, eu lhe digo que eu falo com esses nomes todos, mas falo também com o que há entre um e outro desses nomes. São todos apelidos e eu respondo a todos. Eu respondo a todo e qualquer chamado11.


O poeta é o que deseja acolher todos os nomes, ele deseja ser a própria cidade aberta, embora a própria cidade apresente diversos fechamentos.

Um momento em que ocorre o contrário, um fechamento e uma fuga à cidade, são as raras ocasiões em que Pucheu resolve brincar de Borges, avizinhando-se do beletrismo. “Édipo e o enigma” tem mesmo um fecho banal: “E se nós todos formos simplesmente/ os que nunca sabemos o que somos?”12.

Uma estratégia para essa abertura está em outra linha desta poesia, a dissolução do eu na natureza e no corpo que com ela se funde. Já se encontrava em Ecometria do silêncio uma intenção como esta: “só encontro o movimento do que me cala: o amarelo do peixe no aquário do shopping, a musculatura operária, o cérebro no impacto do soco, a punção do trocarte e o momento seguinte ao acidente consumado”13.

Os poemas sobre boxe cumpriram essa função certa época em que os jornalistas noticiaram, por um breve momento, que poetas podiam lutar boxe. O belo “Minhas Amizades de Hoje são Feitas como Antigamente”, recolhido na poesia reunida, não revela, no entanto, nenhuma ruptura na poética de Pucheu, o que ele trouxe de novo foi um motivo (no sentido de motivo musical), não novas estruturas:


[...] O menor vacilo

custa alguns dentes, um filete de sangue no nariz,

uma dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso.

Pouco falam do que pensam ou sentem.

O conhecimento que um tem do outro é passado

pelos poros, pelos suores que se misturam

a cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo

se esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio,

pela velocidade dos jabs e dos tapas defensivos

tirando o punho do caminho da face, pela porrada

do explodir da luva nos músculos compactos e protetores.

É dessa maneira que hoje faço meus amigos14.


O corpo, quase mudo, fala por meio dos golpes, e nesse jogo pode ser deformado. Em Mais cotidiano que o cotidiano, o boxe não é mais o motivo; temos, em vez dele, o jet-ski, o tow-in e o surfe, com suas ameaças de dissolução dos corpos, na primeira seção do livro, intitulada justamente “Tow-in”. Ela termina com um “Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta”.

O título do último poema da seção muda tudo o que foi lido. O poema é composto, segundo a nota, por falas de surfistas: “Sem a ajuda da outra pessoa a algumas centenas de metros, o surfe de onde gigante é suicídio. [...] O surfe com reboque fez o impossível ser surfável. [...] No tow-in, você deixa seu parceiro escolher a onda. Era um monstro gigante atrás de meu parceiro e ele era apenas um grão de areia diante dessa boca enorme.”15.

É interessante que da fala de esportistas não rivais, e sim parceiros, o poeta anuncie uma relação entre crítico e poeta. Talvez, no entanto, ela seja direta demais. Se a poesia é essa natureza ameaçadora, entre crítico e poeta, quem reboca quem? A poesia é um esporte radical que pode engolir os dois? Ou é a crítica quem naufraga nesse arranjo, que bem pode virar um compadrio de grupos literários?

Pucheu entende a crítica de caráter poético e criador, tentando a indiscernibilidade entre o crítico e o teórico. Ademais, ele precisa da empatia com a obra para escrever sobre ela; escreve sobre os poetas de que gosta, e não dos outros – algo mais comum na crítica de artes plásticas. Pode-se desconfiar, porém, de que a última parte do poema não ficou à tona, após as quatro primeiras, parecidas demais. Prefiro-a como foi publicada em 2011 na Babel Poética, em duas partes, precedida de “O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e o contemporâneo”, que é abertamente um texto sobre a crítica de poesia. Nele, Pucheu refere-se rapidamente a avaliações da poesia contemporânea feitas por João Adolfo Hansen, Silviano Santiago, Alcir Pécora, Iumna Maria Simon, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima e outros, qualificando-as de “momentos com pretensões de medalhões eruditos”16. O contraste entre as duas seções torna o conjunto mais interessante, e a imagem do tow-in, bem mais surpreendente.

No tocante à busca do inarticulado, que se articula à dissolução do eu, ela é mais anunciada como desejo do que realizada; no poema “Em outras palavras”, lemos que “talvez, o melhor que ele conseguisse fazer fosse um murmúrio indecifrável de todas as frases soando juntas, homogeneamente monótonas, ao mundo de cada palavra que não quisesse se sobrepor às suas vizinhas.”17. Trata-se de uma difícil proposta de poética, mais facilmente realizável na música.

Essa linha de força da poesia de Pucheu chega mesmo a se opor ao que os defensores de animais chamam de especismo. Em “Iaque”, que evoca o conhecido “Poema em vão (ou Poema Ungulado)” de A fronteira desguarnecida, lemos que “Há dias em que gostaria de falar de mim com a sensação de um iaque ao atravessar um despenhadeiro do Himalaia. Há dias em que eu gostaria de não me reconhecer em nada língua em que falo.”18.

No “Poema em vão”, não havia esse desejo de identificação com outras espécies animais (neste caso, com os rinocerontes): “O que dele me aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. [...] Nunca escutei sua voz, que do silêncio anuncia estrondos.”19. O livro seguinte, nesse sentido, representou um avanço, com o “Poema ungulado, nº 2” : “[...] um guindaste se apropria do meu sexo, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.”20.

Mais adiante, no “Poema ungulado, nº 3”, Pucheu logrou inventar a identificação desse inarticulado com a origem do discurso: “O rinoceronte, um vírus em nossas quatro coronárias,/ ainda nos unia. Desta vez, em mim,/ era um estranho corpo impalpável,/ contra o qual, carne a não-carne, eu lutava, mesmo sabendo/ que iria perder. Digo: perder-me em mim mesmo [...]”21.

Este último poema é de amor, tema que parece suscitar o inarticulado como metáfora para os jogos do corpo, inclusive os sexuais. Mais cotidiano que o cotidiano menciona uma “sintaxe esburacada” do amor, e o inarticulado nos uivos concorrentes: os que os corpos emitem e os que cercam os corpos, em “O livro de hoje do amor”:


[...] se é tão difícil

separar os corpos agora, para que,

então, não escutar os uivos dos corpos

de modo que eles possam se sobrepor aos outros uivos

que, por fora dos corpos, insistem em se fazer escutados?22


Esse inarticulado adquire uma dimensão social no marcante poema “Luiz Carlos Marques da Silva”, que havia sido publicado em 2011 antes de ser recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano. O título é o nome de um senhor em situação de rua cuja história foi contada em figurinhas, entre outras de pessoas em situação análoga, por Rubens Pileggi no projeto Nowhereman. No poema, não ouvimos propriamente o que conta Marques da Silva; ouvimos primordialmente o lugar de onde o outro fala, o fundo do poço – a descrição desse lugar de onde o outro fala é a própria mensagem, até a ironia final:


[...] ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contrabandeado para esse evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poço, do qual jamais saía, ele me falava23.


Aqui, tornar-se aberto para a cidade significa “aprender a se camuflar de fumaça, asfalto, lixo”24, e até aceitar ter sua fala contrabandeada pelos artistas de classe mais alta do que a dele, o que inclui o próprio Pucheu.

Mais cotidiano que o cotidiano reafirma a trajetória única de Pucheu na poesia brasileira; sua continua a provocar o espanto, isto é, a convocar o poético, lembrando que o seu contrário, para este autor, não é a prosa, mas “o próprio poético, quando, previamente estabelecido, mesmo cansado, quer se reproduzir”25.

1 REZENDE, Renato. Dois poetas vigorosos de nosso tempo. O Globo. Caderno Prosa e Verso, 31 jul. 2004.

2 PUCHEU, Alberto. Na Cidade Aberta. Rio de Janeiro: UERJ, 1993, p VI.

3 PIMENTA, Alberto. ...Assim é também a poesia. In: PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 58.

4 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000, n. 1, p. 85.

5 PUCHEU, Alberto. Escritos da frequentação. Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995, p. 16.

6 PUCHEU, Alberto. Apoesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014, p. 112.

7 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 41.

8 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 33.

9 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 11.

10 Pode-se lembrar de Mariana Ianelli, que celebra afetivamente uma “literaturavida” na obra de Pucheu, “libertando-se do pessimismo por uma resistência maior, um princípio de alegria”, sem pensar nas condições políticas e sociais dessa resistência e desse princípio, no entanto problematizadas por esta mesma poesia (IANELLI, Mariana. Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2013, p. 32).

11 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 54.

12 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 83.

13 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 11.

14 PUCHEU, Alberto. A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p. 235-236.

15 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 19-20.

16 PUCHEU, Alberto. O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e com o contemporâneo. Babel Poética. Santos, ano II, n. 6, ago./set. 2011, p. 23.

17 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 44.

18 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 47.

19 PUCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 34.

20 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 16.

21 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 29.

22 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 94.

23 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 40.

24 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 39.

25 PUCHEU, Alberto. Escritos da indiscernibilidade. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, p. 24.