O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Heine, riso e revolução

A primeira referência que vi a Heinrich Heine foi um soneto de Cruz e Sousa, que fala de rir como só Heinrich Heine sabia rir. Na verdade, ele escreve "Henri", que foi o nome francês dele, que havia nascido Harry.
As mudanças do nome representam as errâncias do escritor judeu e alemão. Nos estados alemães, era um cidadão de terceira classe. Com a invasão de Napoleão - que levava o Código Civil francês para os lugares que invadia - os judeus gozaram um momento de igualdade civil, mas a queda do conquistador francês fez o status quo discriminatório voltar. Heine batizou-se (e mudou o nome de Harry para Heinrich), o que, segundo o próprio, não só foi ineficaz para mudar sua situação entre os cristãos, como serviu para que fosse odiado também pelos judeus.
Ele não foi uma exceção, porém. Outros judeus, ainda no século XX, batizaram-se devido às barreiras legais e culturais que os Estados cristãos lhes opunham (que, às vezes, chegavam ao massacre). Gustav Mahler foi outro exemplo famoso: um judeu não podia reger na Ópera de Viena. Isso não lhes retira a vinculação cultural com o judaísmo, no entanto (achar o contrário e considerar aqueles grandes autores como cristãos seria insistir e legitimar aquela política discriminatória contra os judeus, roubando-lhes alguns de seus principais nomes).
É claro que, na Alemanha, não havia espaço para o gênio contestador de Heine. Quem não lembra de Weber afirmando que, se você era judeu, era inútil imaginar que conseguiria um lugar na universidade alemã? Um século antes, Heine não conseguiu. Ademais, todo movimento da Jovem Alemanha, contrário ao Antigo Regime, foi perseguido - e o escritor foi um dos alvos preferidos dos censores germânicos.
Ele se mudou para a França depois da queda de Carlos X (que tentou reintroduzir o Absolutismo) e, lá, teve outra mudança "onomástica": tornou-se Henri Heine, nome por que os franceses o conhecem e que está incrito em sua lápide. A vitória da revolução na França e sua derrota na Alemanha foram decisivas para o seu exílio francês, que se prolongou até a morte.
Os músicos (Schumann e Schubert principalmente) deram-me a conhecê-lo mais do que os outros poetas. Ouçam o dramático poema do Duplo (Der Doppelgänger) com a música de Schubert, que descobriu o poeta no fim da curta vida do músico (morreu em 1828, um ano depois de Beethoven). E também o ciclo Dichterliebe, "amores do poeta", na música de Schumann.
Ouvia ontem na Rádio MEC FM, no programa Som de Letra (produzido por Livio Tragtenberg), André Vallias, organizador e tradutor de Heine hein? Poeta dos contrários. Foi publicado neste ano pela Perspectiva; o livro é muito melhor do que o título, que seria mais adequado a um poeta visual. Enquanto isso, eu mesmo seguia tentando traduzir alguns trechos de Französische Zustände (Situações francesas). Tive, assim, a ideia de escrever esta nota.
Primeiro, lembro do livro de Vallias: trata-se de um marco na história da poesia traduzida no Brasil. Nunca foram traduzidos tantos poemas de Heine de uma vez só para a língua portuguesa - e uma parcela muito bem escolhida da prosa também foi incluída. Talvez haja alguma tradução melhor de um ou outro poema - e esse é o caso do Navio negreiro, que recebeu uma versão impressionante de Priscila Figueiredo e Luiz Repa no livro Navios negreiros (editora SM), que traz Heine e aquele poeta brasileiro que nele se inspirou, Castro Alves - mas o que Vallias fez foi notável. Vejam a resenha de André Dick.
Segundo, o gênio de Heine. Não tenho nada mesmo de relevante a dizer sobre ele, apenas posso admirá-lo. Talvez sua condição de estrangeiro em toda parte - mesmo entre os judeus, seguramente entre os alemães, também entre os franceses - teve algo que ver com o seu olhar crítico. Esse olhar heiniano (e não "heineano"; da mesma forma, é lockiano, e não "lockeano") podia ser extremamente sarcástico; Cruz e Sousa bem o notou: "Rir! mas com o rir demolidor e quente/ duma profunda e trágica ironia/ [...] Antes chorar que rir de modo triste.../ Pois que o difícil do rir bem consiste/ só em saber como Henri Heine rir!...".
Calado diante do gênio, posso apenas compartilhar algumas frases do que estou traduzindo:

Em vão graceja o clero: dê a César o que é de César. Nossa resposta é: durante mil e oitocentos anos nós sempre demos demais a César; o que restou é nosso agora.

Diz-se nas fábulas: os degraus mais altos de uma escada falaram arrogantemente outrora para os mais baixos: « Não acreditem que vocês são iguais a nós, vocês ficam na lama enquanto nós livremente erguemo-nos sobre vocês, a hierarquia dos degraus foi estabelecida pela natureza, ela foi pelo tempo sacralizada, é legítima »; porém, um filósofo que passava e ouviu essa fala aristocrática riu e virou a escada de cima para baixo.

Duas passagens frontalmente contrárias ao Antigo Regime.

Os povos possuem tempo bastante, eles são eternos; apenas os reis são mortais
.
Na verdade, também os povos não são eternos. Heine exagera para diminuir os reis, embora ele mesmo fosse monarquista. Ele afirmava que, enquanto a França era republicana, a Alemanha era monarquista em sua essência, e que somente depois de muito tempo após sua morte é que se poderia ver uma república na Alemanha. De fato, ela só chegou no século XX, com a derrota na Primeira Guerra Mundial.

[...]jamais os alemães desistiram de uma ideia sem terem ido até as suas últimas consequências.

O século XX daria razão a Heine, bem como à ideia dele de que a Alemanha faria com que a Revolução Francesa parecesse pacífica.

Todas as constituições, mesmo as melhores, não nos podem ajudar enquanto a nobreza inteira não for arrancada até a última raiz.

De fato. O princípio monárquico sobreviveu ainda muito tempo no solo germânico e foi parar no pensamento de Carl Schmitt e certos de seus discípulos à direita e à esquerda.

[...]o povo rejubilou-se e, como em 14 de julho o tempo estava muito favorável, ele iniciou a obra de sua libertação, e quem visitou, em 14 de julho de 1790, a praça onde a velha, rabugenta, desagradável Bastilha ficava, lá encontrou, em vez dela, um edifício arejado e alegre com a risonha inscrição: Ici on danse.

Lindo, não? Que escritor!

Onde as leis vivem na consciência do povo, o governo não pode destruí-las por meio de uma ordenação repentina.

Sim, trata-se da produção social do direito - a norma jurídica não é criada apenas pelo Estado.
Heine estudou direito, embora ele também tenha escrito (muito modestamente) que se tratava da área de conhecimento que ele menos sabia! Mas ele não ignorava essa produção social da norma, isto é, não acreditava que a sociedade fosse inerte e incapaz de traçar seus próprios destinos. Sem isso, não há revolução.

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