O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Algo como um poema: cartilha do poeta que não aprendeu a escrever...

Este meu escrito, publicado na antiga revista Cacto (São Paulo, vol. 3, primavera de 2003), editada por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo, foi dedicado ao poeta (e meu amigo) Ricardo Rizzo.



Cartilha do poeta que não aprendeu a escrever para não ser influenciado pelo alfabeto


I

quer a página branca:
segura o sexo sobre o poema

quer a página branca:
o sexo começa a ler o poema

e assim aprende a ler o negro
enquanto escreve o branco

e, úmido do branco, o poema
ganha a tinta para escrever o nome de Deus


II

o espaço começa a soletrar,
mas é um mau aluno
e põe ruidosamente os lados esquerdos ao lado de outros lados esquerdos

o espaço está a alfabetizar-se,
porém falta muito à escola
e desenha todas as profundidades no nível da pele

o espaço foi posto de castigo
mais uma vez fugiu da sala de aula
e em todos os recintos plantou a fuga

o espaço, enfim, permanece analfabeto

este é o lugar da língua


III

a religiosa começou a gritar no trem lotado,
nenhum dos dois saía do lugar

mais um religioso começou a gritar no trem lotado,
nenhum deles tinha caminhos exceto a reta

outro religioso começou a gritar no trem lotado,
calos vocais também se emocionam, como os suores e os copos de plástico

quando mais religiosos começaram a gritar no trem lotado,
levavam bombas, Deus fala com línguas de fogo

enfim, os religiosos que começaram a gritar no trem lotado
continuaram a gritar no trem lotado, todos muito emocionados

o que gritavam? não se entendia, não entendiam, ocupados em
expulsar altares solteiros de casa, pisotear mães de outros deuses, votar em [dinheiro sujo, lavar traficantes e se cobrir de muitos panos

quando o trem, de tão parado, bateu em si mesmo.

cada ferro retorcido guardou uma lembrança do que foi humano

e o mineral manchado de sangue e pele e pelos parecia mais humano do que [uma escultura

(era uma escultura, assim como o homem)

e aquele ferro que cortou gargantas

foi o único passageiro que pronunciou o nome de Deus


IV

onde a língua vive?
onde tem uma casa?
nas bocas que dizem?
no golpe que cala?

onde a língua mata?
nos dentes que riem?
no canto da faca
se ouvem cicatrizes?

ela mata e vive,
a língua bilíngue,
e escolhe as moradas

que a todos exilem:
a voz, porque cala,
e o mundo, que fala


V

o poeta acordou após a polução:
"acordar o sêmen, eis a função social da poesia"
refletiu; e deitou mais um pouco.

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