O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Campos cosmopolitas da tradução

30 livros em um mês

Dia 24: Série de livros favorita.

Este tópico foi um dos que conservei da lista do "Desafio 30 livros"; eu não tinha, no entanto, a ideia do que indicar nele. Pensei na Recherche e desisti de incluí-la aqui: por experiência própria, tive de reconhecer que ela é um livro só, não uma série. Com efeito, o único volume que se pode ler isoladamente é o primeiro - porém, se perde muitíssimo limitando-se ao Swann.
Na minha experiência de leitor, uma série muito importante para mim foi uma sequência de livros de traduções (e aqui faço minha pequena homenagem aos tradutores brasileiros) que Augusto de Campos fez combinando vários autores. Na minha leitura, estes livros constituíram uma série de poesia que programava, segundo certas exigências poéticas e éticas (com Pound ao fundo), autores de épocas muito diversas que, com a mediação do tradutor e ensaísta, passaram a conversar entre si: Verso reverso controverso, O anticrítico, Mais provençais, Linguaviagem. Em alguns casos, a conversa já estava lá, como o poema de Borges para Keats, traduzido em Linguaviagem.
Todos foram publicados em edições bilíngues, o que é fundamental para poesia - e documentam a grande versatilidade de Augusto de Campos, capaz de traduzir a partir de diversos idiomas.
A primeira edição de Verso reverso controverso é de 1978, mas o conheci na segunda, que foi ampliada dez anos depois. O livro origina-se de artigos e traduções que ele vinha publicando desde 1964 e consegue reunir coerentemente (o que é ousado e notável) Marcabru e Rimbaud, Pound e Donne, George Herbert e Marino, Corbière e Arnaut Daniel...
No final, temos cantadores nordestinos - e, assim, um livro de grandes traduções termina com versos em português! Augusto de Campos não tem pruridos elitistas e reconhece a grande poesia não só nos "poetas urbanos", mas também nestes cantos: "Faço o Eixo da terra dar estalo,/ Faço a morte ter medo de morrer."
O organizador e tradutor escolhe outro canto nordestino, que lida com a imagem dos dados, a peleja entre Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Como ele incluiu no livro poema de Arnaut Daniel com imagem semelhante, temos algo como se Mallarmé, neste paideuma, fosse Deus, e sua palavra, Un coup des dés, flutuasse atemporalmente sobre a poesia ocidental...
No livro, há um recorte de natureza temática, pois são privilegiados versos licenciosos, indecorosos, ou de um realismo cru. Com os trovadores, são mencionadas as cantigas de escárnio e maldizer (com um elogio à coletânea de Natália Correia). Uma intervenção poética contra o moralismo.
O livro era graficamente muito bem cuidado - parece que a editora Perspectiva não o alterou, felizmente. A capa, de Lizárraga, apresenta um trecho de partitura de um dos trovadores incluídos do livro, o grande Bernart de Ventadorn: a belíssima canção "Quant vey la lauzeta mover" ("Ao ver a ave leve mover", na tradução de Augusto de Campos).
É de 1986 O anticrítico, editado pela Companhia das Letras, que reúne Donne e Gertrude Stein, Cage e Dante, Emily Dickinson e Lewis Carroll, Verlaine e Huidobro... Augusto de Campos, no entanto, tenta introduzir os poetas com poemas seus que, em geral, são apenas didáticos e empalidecem diante dos poemas traduzidos. Para quem não acreditar, transcrevo esta estrofe de "América Latina: Contra-boom da poesia":

de oswald à poesia concreta
de joão cabral e joão gilberto
da pc à tropicália
criou-se uma outra linha experimental
antropófago-construtivista
que não tem paralelo
na poesia espanhola

O livro não é capaz, também, de apresentar uma figura de "anticrítico" (seria aquele que escreve poemas fracos de louvor aos poetas que admira?) contrária à do que fala em "critiquês", até porque ele não chega de fato a analisar o que é esse jargão; parece que o problema dele é com os universitários, mas seria muito ingênuo achar que há (ou havia) uma postura homogênea nesse meio. E é inconsistente reclamar da Academia escrevendo poemas comprometidos pelo didaticismo...
Augusto de Campos, na breve apresentação de duas páginas, só deixa claro que é contra a maledicência, o que é bastante vago. Intelectualmente, o livro é muito mais fraco do que Verso reverso controverso, porém as traduções justificam-no plenamente. Vejam a solução que ele dá para o começo da Comédia, que Eduardo Sterzi já elogiou algumas vezes:

No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

Alguém deveria contratar a Comédia inteira por ele, a peso de ouro, que é o que valeria o livro.
O trabalho de tradução dos poetas provençais teve sequência em Mais provençais, de 1987, dedicado a dois autores: Raimbaut d'Aurenga e Arnaut Daniel. O livro abre-se com traduções de trechos de Pound e de Dante que se referem àqueles dois autores. No caso de Dante, justamente o Canto XXVI do Purgatório, que é uma de minhas seções favoritas do poema; pena que ele deixe de lado o efeito da irrupção da língua provençal com a fala de Arnaut Daniel.
Ana Cristina Cesar, em artigo que foi recolhido em Crítica e tradução, publicado pelo Instituto Moreira Salles e pela Ática, põe nas alturas uma primeira edição desse livro pela Noa noa em 1983 - o título da resenha é "Bonito demais": "Augusto é tradutor admirável, que sabe combinar a competência do scholar à consciência da tradução como ato (também) político. Sua prática dá o que pensar: ele é, dos poetas-tradutores, o que mais explicita suas opções de tradutor como militância." E cita Verso reverso controverso como exemplo anterior da militância poético-tradutória de Augusto de Campos.
Sobre esse livro, ela havia escrito um interessante ensaio comparando-o com uma edição das traduções de Manuel Bandeira, que tinha uma política tradutória muitíssimo diferente - e mais tradicional, claro. Ana Cristina Cesar, embora preferisse a engenhosidade de Augusto de Campos à personalidade de Bandeira, fez reparos à aplicação de procedimentos do Concretismo às traduções dos poemas medievais, e acho que ela estava correta.
Em 1987, Augusto de Campos lançou Linguaviagem (pela Companhia das Letras) que, na "Breve introdução" é chamado de "parente próximo" de Verso reverso controverso, O anticrítico e de Paul Valéry: a serpente e o pensar. De fato.
O âmbito do livro é menos ambicioso do que o de Verso reverso controverso, contando com Valéry, Mallarmé, Blok, Borges, Yeats e Keats. A tradução de A jovem parca ocupa a boa parte do livro (e também a "Herodias" de Mallarmé), mas o que mais me encantava eram os poemas de Keats e de Yeats, em traduções em geral superiores às de Péricles Eugênio da Silva Ramos, que dedicou, porém, um livro inteiro a cada um dos dois.
Augusto de Campos assinou, sozinho ou com outros (notadamente outros concretistas), vários outros livros notáveis de tradução de poesia - entre eles, a Poesia russa moderna. Os quatro que mencionei nesta nota, contudo, parecem-me formar uma série distinta na obra tradutória desse autor.
São também trabalhos imprescindíveis para o leitor de poesia em português e marcos no Brasil deste ofício politicamente cosmopolita que é o da tradução. Afinal, os tradutores é que são os verdadeiros embaixadores, visto que possibilitam o diálogo entre os povos.

6 comentários:

  1. Obrigado. Esses trabalhos de Augusto de Campos são um esplendor. E há outros... Um livro que me acompanhou no final da graduação foi o Maiakóvski traduzido pelo trio Boris Schnaiderman e irmãos Campos (edição da Perspectiva), que provavelmente é a melhor encarnação desse poeta na língua portuguesa:

    Não há mais tolos boquiabertos,
    esperando a palavra do "mestre".
    Dai-nos, camaradas, um arte nova
    - nova -
    que arranque a República da escória.

    Abraços, Pádua

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  2. Li até o final esperando uma palavrinha sobre o Maiakóvski... que conheci no segundo grau e me acompanha até hoje!
    Duro este ofício, não. Porque o tradutor tem que fazer opções muito concretamente, que mudam a "cara" do texto, e ao mesmo tempo, tentar se aproximar ao máximo da intenção do original. O que muitas vezes só acontece quando se transmuta partes que na língua de chegada ficariam incompreensíveis caso traduzidas literalmente. Árduo, delicado e incompreendido ofício.

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  3. Obrigado. Maikóvski entrou na nota. Antes desse livro, porém, tivemos a "Poesia russa moderna", que é outro grande trabalho - lançado durante a ditadura militar, era também um gesto político!

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  4. Sim, o coment é depois de ter visto a nota! =)

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