O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 16 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Música, Cecília e Augusto

30 livros em um mês

Dia 28: Um livro que você cita de cor.

São tantos, que é difícil escolher. Alguns deles (Rimbaud e Pessoa) já apareceram nestes trinta dias de leituras, que viraram quase quarenta (não consegui manter o ritmo de uma nota por dia).
Como são muitos, creio que é legítimo escolher os primeiros na minha experiência de leitura. Eu lia Cecília Meireles na edição da Obra poética de 1958, pela José Aguilar, que meus pais tinham em casa, e Augusto dos Anjos, em uma edição do Eu e outras poesias um pouco menor do que as atuais. Hoje, temos a edição da Ática com os comentários de Sérgio Alcides.
A edição da José Aguilar era linda, muito diferente da que lançou a Nova Aguilar. Em 2001, foi publicada pela Nova Fronteira, com organização de Antonio Carlos Secchin, a primeira edição realmente completa da poesia, com os dois primeiros livros da autora, mas hoje também está esgotada.
O livro de 1958 incluía os desenhos de Cecília - que hoje estão publicados em Batuque, samba e macumba pela Martins.
Essa edição não tinha, evidentemente, os últimos poemas e o vasto material inédito que ela deixou ao morrer - tão nova - em 1964. Consegui, depois (faz tempo), achar em sebo esses poemas (inclusive o livro Solombra) nas edições organizadas por Darcy Damasceno.
Dela, porém, não saberia destacar um livro: desde Viagem, ela muda muito pouco. Romanceiro da Inconfidência é diferente pela matéria, mas a poética, nós a reconhecemos prontamente. Mar absoluto e outros poemas talvez seja o mais diverso nesse aspecto. Já Solombra se destaca pela adoção de uma mesma forma para todos poemas. E Vaga música? Retrato natural? Canções?
Entre os inéditos, há coisas desiguais, que ela provavelmente não teria publicado. Mas neles encontramos versos como "Mas eu amo o eterno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno."; "Ah! do que se disse nada mais se diga!/ Vai-se a tua Amada - vai-se a tua Amiga!"// Ah! do que era tanto, não resta mais nada.../ Mas houve essa Amiga! mas houve essa Amada!"; "Mas essa estrela,/ Rua da Estrela,/ com que o teu nome/ me deslumbrara,/ essa eu não via./ Talvez chegava/ pela alta noite?/ De madrugada?"; "Vão saindo da tua cabeça as campinas sangrentas./ Como a cauda dos cometas, vão para longe/ as perspectivas de corpos caídos e mãos abertas."
Tantos desses poemas tematizam a morte. Ela justificava essa temática com sua experiência pessoal. Creio até que foi a morte dos chamados inconfidentes o que a motivou para escrever o Romanceiro, livro em que os fantasmas literalmente falam.
O som predominante na obra acaba sendo o da elegia. A música na poesia de Cecília - ela, entre outros mil talentos, também era musicista - é tão forte que somos tomados por seu ritmo, que atinge diretamente a sensibilidade, antes mesmo de podermos apreender-lhe o sentido. E assim, sem notar, aprendemos de cor seus poemas.
O ritmo é explicitamente sentido nesta poesia ("Tem sangue eterno a asa ritmada"). Um exemplo disso é "Ária", de Retrato natural, um prodígio técnico com forte carga emocional: "Quem nos vai recordar/ na noite profunda?/ Pensamento tão gasto,/ amor sem milagre/ na profunda noite./ Os amigos se extinguem."
E nem citei os poemas que sei de cor...
Música de caráter bem diverso é a de Augusto dos Anjos. É curioso notar que os dois poetas são sucesso de público - e foi a fidelidade dos leitores que salvou a poesia de Augusto do esquecimento, já que nem mesmo os modernistas, em um primeiro momento, deram-lhe atenção. Talvez a musicalidade de ambos, que atinge o coração antes mesmo do entendimento, tenha criado essa empatia.
A de Augusto dos Anjos é mais violenta do que a de Cecília, mas tão característica que o leitor pode entender o sentido do poema sem compreender todas as palavras - o que é notável, pois ele usava muito léxico científico, e palavras não normalmente associadas à poesia, ainda mais no início do século XX, tempos de principado parnasiano no Brasil. Imaginem a coragem de começar um soneto desta forma: "Eu, filho, do carbono e do amoníaco."; escrever um decassílabo somente com duas palavras, e estas: "Profundissimamente hipocondríaco" (versos do soneto "Psicologia de um Vencido", que sei de cor).
Cientificismo? Não é tão simples, pois a astrologia e os misticismos entram nesse caldeirão poético e lexicográfico, além de filosofia - especialmente Schopenhauer. Augusto dos Anjos sempre me soou como um desbravador que tentava incorporar novos continentes à poesia: "Sofro, desde a epigênesis da infância,/ A influência má dos signos do Zodíaco!"
Um desses continentes é a pobreza. Essa poesia tão pessimista em tantos momentos nasce de uma experiência brasileira: "Sol brasileiro! Queima-me os destroços!", lemos na última estrofe do poema longo "Gemidos de arte". No quadro universalista de dor pintado pelo poeta, temos "É o dinheiro coberto de azinhavre/ Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!"
A consciência e a autocrítica no tocante à dominação de classe aparece em poemas muito anteriores a Drummond rever a oligarquia mineira. O soneto "Ricordanza della mia Gioventù" compara o furto de moedas do patrão com o "furto" (para o Código Penal burguês, não se poderia caracterizar assim...) do leite que a ama-de-leite poderia ter destinado à própria filha, mas tem de ser dividido com o filho do patrão...
Nesse poema, está ausente o léxico científico; não é necessário. Porém, para traçar o quadro geral de "Os doentes", Augusto dos Anjos convoca todos os seus recursos para ultrapassá-los: "Tentava compreender com as conceptivas/ Funções do encéfalo as substâncias vivas/ Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...// E via em mim, coberto de desgraças,/ O resultado de bilhões de raças/ Que há muitos anos desapareceram!"
Ele de forma alguma está interessado em simplesmente repetir ensinamentos científicos e filosóficos, e sim submete esses recursos a uma síntese pessoal (não por acaso o livro chama-se, atrevidamente, Eu) e poética - a poesia tem uma dignidade nesta obra impressionante, de traçar uma imagem não só do humano, mas como do universo - em vários momentos, ele rompe com o antropocentrismo e tenta fazer a matéria e outros animais falarem, numa espantosa solidariedade com todos os seres.
Não é de estranhar que poetas com ambição artística mais restrita e literatura mais palatável e cordial tenham rejeitado essa obra. Lembro de Mário Quintana, afirmando que Augusto dos Anjos era Baudelaire em último estado de decomposição...
Na IV seção de "Os doentes" temos o extermínio dos indígenas, assunto sempre atual, ainda mais com o governo de Dilma Rousseff e a possibilidade de genocídio com a eventual construção de Belo Monte:

A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!

[...]

A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!

[...]

Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!

Uma crítica contundente ao progresso. Ele também é um poeta da morte, de vários tipos de morte, inclusive o genocídio e seus sons tonitruantes, que a história brasileira já conhece - de cor.

2 comentários:

  1. As flores do mal, Baudelaire.
    Eu queria falar Ulysses, mas só decorei o começo e o final :)

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  2. Já vale, tendo decorado o começo & o final.
    Não fiz justiça a Baudelaire neste ciclo de leituras. Mas, dele, citaria os Pequenos Poemas em Prosa, por causa do Enivrez-vous.

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