O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Desbloqueando a cidade VII: Churrasco na Cracolândia...




Ocorreu, em 14 de janeiro de 2012, o churrasco na Cracolândia, sobre que escrevi há poucos dias. Cheguei na esquina da Helvétia com a Dino Bueno depois das 17 horas, com Fabio Weintraub, quando a barreira móvel que a polícia havia montado entre o churrasco e os moradores da região não mais estava de pé. Chovia intermitentemente, mas não de forma a comprometer o evento.
Só estive em uma das reuniões da organização, mas foi o suficiente para ver que havia pessoas de lugares muito diversas envolvidas, inclusive em situação de rua, e isso refletiu-se no evento. Um poeta amigo meu não quis ir, alegando que o churrasco não tinha sentido nenhum naquela região, ao contrário do que ocorreu em Higienópolis por causa da pretendida estação de metrô. No entanto, o que vi foi que a população local comeu - e refeição sempre pode ser a oportunidade de um congraçamento.
Vi pessoas em estado visivelmente alterado, principalmente uma mulher muito magra e visivelmente doente em um solilóquio sobre a necessidade do crack. Entre essas pessoas, houve pequenos conflitos que a comissão de apoio solucionou.



Estiveram presentes membros de sindicatos, do movimento antimanicomial, pessoas da Unesp (não do Direito), da PUC-SP, do MST, de vários coletivos, o padre Júlio Lancelotti, pessoas até mesmo de partidos políticos - todos de esquerda, por alguma razão que me escapa no momento. Tsavkko, que recentemente escreveu sobre a última audiência pública sobre a região, também lá estava com sua noiva.
No ano passado foram comemorados, muito discretamente, os dez anos do Estatuto da Cidade (lei federal n. 10257/2001). Li críticas sobre os problemas de eficácia social do Estatuto, que é, de fato, pouco aplicado no tocante à garantia democrática do direito à cidade.
Esse problema, porém, não é só do Estatuto, mas de todo o Direito, que somente logra tornar-se realidade se tornado ação pelos cidadãos. Com mobilizações como esta, o Estatuto pode efetivar-se. Deve-se esperar mais dessa produção social do direito do que de um ativismo que se limite às ações judiciais, tendo em vista que os membros do Judiciário, além de geralmente marcarem-se pela ignorância do urbanismo (as faculdades de direito, em regra, ignoram o direito urbanístico em suas grades curriculares), tantas vezes são animados por severos preconceitos de classe, o que já foi demonstrado cientificamente no Brasil.
Monografia de Ivan Ribeiro, "Robin Hood vs. King John" analisou estatisticamente como os juízes brasileiros tendem a beneficiar os poderosos. Sem aquela produção social, eles (juízes e poderosos, que por vezes se congregam em eventos sociais e seminários custeados por grandes empresas) continuarão assim.
No final do evento, que contou com um marcha contra a tortura, o megafone foi usado por pessoas da organização e por quem quisesse falar. Pessoas que se apresentaram como dependentes químicos fizeram-no, reivindicando direitos sociais, o que é um exemplo de como direitos civis (como liberdade de expressão) articulam-se com outros direitos humanos. Quem não tem voz, não poderá reclamar.
No dia 25, haverá um grande debate sobre a Cracolândia, a Luz e a especulação imobiliária, mas os detalhes não foram confirmados. Trata-se de mais uma intervenção necessária na esfera pública, para que a palavra não seja confiscada pelas bombas.
Abaixo, podem-se ver mais fotos que tirei no evento.




Pode-se ver uma sincera homenagem, escrita em português muito singelo, ao prefeito nas paredes da arquitetura local.




Os policiais estavam presentes, em bases comunitárias, mas não só dessa forma. Um carro policial passava muito lentamente pelas ruas, filmando todo o evento e as pessoas que dele participavam.





Em certo momento, a marcha irrompeu pela Helvétia junto com um arco-íris - essa manifestação plural da atmosfera foi saudada com palmas. Na marcha, exclamava-se: "Pela vida, pela paz, tortura nunca mais!"




















Em uma das camisetas mais bem humoradas, manifesta-se o boom imobiliário de São Paulo a concret(iz)ar a cidade.
Abaixo, incluí imagens do prédio em que viviam os usuários de crack, antes abarrotado de lixo, agora menos, com a destruição mais posta a nu. Está interditado. Vejam outra homenagem a Kassab na frente do imóvel. Um dos seus ex-moradores, quando chegou o momento final do evento, em que o megafone serviu para manifestações do pessoal da organização e de pessoas que se apresentaram como dependentes químicos (todos denunciaram a ação da polícia e pediram saúde e cultura), disse que apanhou muito na desocupação e que seu filho treme ao ver um policial.















Sebastião Nicomedes, o escritor, ator e militante (ele tem um blogue, Diário do Tião, que tem um de seus temas principais a população em situação de rua - à qual ele mesmo pertenceu), participou do evento, desde sua preparação, e fez um discurso forte contra a violência policial e o descaso oficial sofrido pelos moradores da região. Na foto, ele está com megafone dirigindo-se à multidão.
Um dos participantes que discursou subiu enrolado na bandeira - de fato, o Brasil em jogo neste projeto de segregação que os governos querem realizar na Luz.
Na última foto, ainda na Helvétia, um exemplo da arquitetura praticamente só casca, só pele, do lugar. Esta pele cobre São Paulo.



P.S. Tsavkko fotografou e fez alguns pequenos filmes do evento: http://www.tsavkko.com.br/2012/01/cracolandia-uma-experiencia-unica-em.html#more

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