O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 9 de junho de 2012

Chacal, a poesia e o duplo

Creio que há poetas melhores do que Chacal, porém não sei de ninguém que seja mais poeta do que ele. É certo que viveu também de música, principalmente produção de rock, e de outros ofícios artísticos. Não obstante esses outros afazeres, ele é um exemplo de alguém que se dedicou a escrever, publicar, produzir, encenar poesia, e abrir espaço para os versos de outros.
Raríssimo caso de poeta não ressentido com o mundo acadêmico, já o vi dizer mais de uma vez que não vê problema em ser criticado ou em ser pouco estudado naquele meio. Lembro de um jantar em que um mau poeta-músico reclamou do pequeno número de teses sobre si mesmo; chegou ao ponto de queixar-se de uma resenha favorável de certa professora, por não ter conseguido entender o texto - embora percebesse que era positiva!
Faço notar que a resenha era perfeitamente inteligível, o mau poeta-músico é que tinha problemas de leitura. Reclamou, em seguida, que a universidade deveria abandonar os consagrados e apoiar os escritores novos. Chacal, muito elegante, ouviu tudo e respondeu calmamente que não achava que esse fosse o papel da universidade...
Em Uma história à margem (Rio de Janeiro: 7 Letras), que já tenho mas ainda não li, Chacal propõs-se a escrever um romance autobiográfico. É esse livro que está sendo levado aos palcos, no exercício perigoso de retratar-se duplamente, pois não só Chacal escreveu sobre si, como interpreta a si mesmo em cena.
Vi o espetáculo ontem no SESC Copacabana. Chacal é dirigido por Alex Cassal, que assina com ele a dramaturgia. O poeta é o único artista no palco, mas quem decide pela poesia não pode ter medo... E Chacal, que tanto se apresentou em público, e tanto fez no CEP 20.000, está mais do que à altura desses riscos. Poesia também é risco, por sinal, como lembraria Augusto de Campos, que é citado no espetáculo, embora Charles Peixoto e Waly Salomão, companheiros de geração (e, muitas vezes, de estética, ao contrário dos concretistas, cujo projeto é muito diferente), estejam - como deveria ser - bem mais presentes.
A encenação é tão simples quanto eficaz: bananas, a barba de Allen Ginsberg, alguns lps, folhas, um megafone, batom, um pano azul que serve de ondas e de parangolé são alguns dos poucos elementos com que Chacal retrata as décadas de 1970 a 1990 (principalmente), de que ele foi um dos personagens. Os mimeógrafos, o Circo Voador, o CEP 20.000 estão presentes, assim como a praia, as drogas, as prisões. Trata-se menos de uma poesia que se quer fazer vida do que uma vida que se entende como poesia.
Chacal fala, declama, pula, dança e canta (principalmente samba) e não há instante que sugira que o poeta e performer esteja a fazer pose. Nota-se que ele não quer se institucionalizar, o que seria fatal para sua poética e sua utopia.
Mesmo quando a poesia não é tão boa assim, presa a trocadilhos sonoros (Ginsberg, invocado mais de uma vez, foi capaz de livros muito diferentes - e muito bons - como o Uivo, o Kaddish e América; não há essa variedade nem mesmo em Drops de abril), o corpo de Chacal habita-a e torna-a credível como texto teatral.
Dois dos graves acidentes que sofreu, e que poderiam tê-lo matado, são retratados sem autocomiseração alguma no espetáculo. Vejo nisso a questão do duplo: Chacal é, entre outras coisas, um sobrevivente, e sua trajetória fez-me pensar que a poesia  tem uma vida tão acidentada quanto a dele, e ela também resiste na alegria de fazer.

2 comentários:

  1. Deu vontade de ver o espetáculo... e o final do texto é muito bom. E verdadeiro. Adorei, eu que não escrevo uma linha de poesia, mas me encanto com a capacidade alheia de fazê-lo.

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  2. Obrigado. Também me encanto com a capcidade alheia de realizar a poesia, e acho que isso é uma forma de ser poeta.
    Não sei, porém, para onde a peça vai, agora que terminou essa temporada.

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