Existe, porém, um "ensino jurídico" típico no Brasil? É possível que sim (porém certamente com variações de ordem regional e institucional significativas), mas faltam pesquisas a respeito. Na minha restrita experiência como aluno e como professor nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, e é apenas a partir dessa experiência que falo, creio que ele não se desviou muito deste retrato traçado por Kafka, e que já citei mil vezes: mastigar serragem já mastigada antes por milhares de bocas.
Essa visão do estudo da dogmática jurídica foi animada, em minha experiência, por pelo menos três fatores:
a) Indiferença ou até um "secreto ódio à realidade" (lembro de Sérgio Buarque de Holanda). Embora o direito seja um produto social, de diversas fontes, e, em princípio, exista para gerar efeitos na sociedade, há quem deseje ignorar essa necessidade intrínseca a um verdadeiro ensino jurídico. Já escrevi neste blogue que passei a graduação sem nenhum estudo sobre movimentos sociais. Assim, é possível que, ainda hoje, haja graduandos que passem pelo estudo do direito constitucional sem saber, por exemplo, dos movimentos de reforma urbana. Que passem pelo código civil ignorando o papel das feministas. E saber disso faz toda a diferença - não apenas para entender melhor o direito (e aplicá-lo melhor, com atenção às demandas sociais), mas também como necessário antídoto ao encastelamento e à arrogância típicos das elites jurídicas. Em estudantes de origem social mais pobre, já vi se desenvolver um ódio às próprias raízes, o que é um fenômeno triste de traição de classe.
A partir dessas bases duvidosas, mas tão firmemente ancoradas no bacharelismo, é possível que até mesmo juristas inteligentes queiram escrever sobre direito internacional e sobre a ONU sem perceber que seria importante saber como ela funciona...
É certo que estudar outros campos do conhecimento poderia despertar uma curiosidade pela realidade que despertasse para outros horizontes além dos manuais de direito. No entanto, há um segundo fator para dificultar a retirada dos antolhos geralmente postos nos graduandos em direito (que geralmente os aceitam alegremente, devo lembrar).
b) Ignorância militante sobre outros campos do conhecimento. Falo em "militância" em razão das resistências, na academia e fora dela, para mudar o estado do obscurantismo nas diversas áreas do direito. Estudantes de graduação mais sagazes podem perceber que o que eles aprendem, por exemplo, em sociologia (se é que tem a chance de estudar essa disciplina), não tem repercussão nas lições dadas pelo professor de direito civil. Talvez tenha que assistir a lições de direito ambiental de um mestre que desconheça noções básicas de ecologia. Cursos de direito constitucional em que a ciência política foi exilada. Aulas de direito internacional público totalmente incontaminadas do conhecimento de qualquer coisa que cheire a relações internacionais. Luminares do direito penal que só se atualizaram até Lombroso etc.
Institucionalmente, constata-se o problema em concursos de ciência política para faculdades de direito que proíbem a inscrição de professores que não tenham doutorado em direito, no banimento de historiadores em cargos de história do direito etc.
Outra faceta dessa mesma ignorância, porém em um nível mais sofisticado, é querer usar os outros campos como simples instrumentas auxiliares para interpretação e aplicação das normas jurídicas, isto é, pretender que o Direito seria algo como o "rei das ciências" e tudo o mais existe para servi-lo, o que é de uma ingenuidade epistemológica abissal. É o caso de professores e/ou alunos que tomam Habermas, Agamben, Rawls ou Deleuze (só para citar autores bem diferentes, mas os exemplos dependem do que está na moda no momento) e querem lê-los como se fossem manuais de hermenêutica do tipo Carlos Maximiliano. Querem transformar questionamentos radicais do direito em receitas de argumentação em tribunais, com prejuízos evidentes tanto para a teoria quanto para a sociedade. Ou até tentam fazê-lo combinando autores incompatíveis, em um ecletismo teórico bastante insensato, gerando uma literatura terciária de uma nulidade absoluta, mas apta para títulos e publicações na generosa academia jurídica brasileira.
c) Ignorância militante sobre as teorias do direito. Seria possível ter um conhecimento aprofundado do direito com as carências anteriores? Creio que não. Por isso há uma resistência enorme a certas disciplinas jurídicas que poderiam ameaçar o aluno a aprender mais. Se é possível ter razoável sucesso profissional, passar em concursos públicos mascando serragem (manuais de direito), para que se perguntar sobre a origem dessa celulose? Deixem-me desfazer a frase de Goethe e reivindicar os direitos da árvore da teoria, esquecida na decomposição intelectual da serragem, que corresponde à maior parte dos manuais e resumos e folhas dobradas em que a dogmática jurídica é ensinada. E também a filosofia do direito, claro, que entrou na roda dos concursos.
Trata-se de um ensino curioso, em que a educação não ocorre. Quando o malfadado ENADE dispunha-se a comparar calouros e formandos, e verificava, em vários casos, que havia pouca ou nenhuma diferença de notas entre eles, creio que apontava para algo parecido. A falta de uma base teórica impede que o estudante adquira a mínima autonomia intelectual na área e, no entanto, adquirir essa autonomia deveria ser a missão de todo curso de graduação. Estudiosos de outras áreas também se beneficiariam se levassem a sério teoricamente o direito, como bem lembra Luiz Otávio Ribas.
Vejo com muito espanto e incredulidade total, por conseguinte, aqueles que elegem Kelsen ou a "perspectiva kelseniana da teoria pura do direito" como o grande problema do ensino jurídico "tradicional". A falta de seriedade teórica é um grande problema, e é claro que, se pelo menos a teoria de Kelsen fosse realmente ensinada, até eu, que não sou adepto desse filósofo, reconheceria um ganho colossal. Não ouvi nenhuma palavra certa sobre esse jurista durante toda minha graduação (exceto de um professor que tinha uma ideia de como se pronunciava o nome do autor). Um professor, dos mais ignorantes que tive, afirmava que Kelsen era nazista. No entanto, o grande jurista judeu (aquele professor não sabia disto, e só deve ter ouvido de muito longe algum eco de Radbruch) foi afastado da universidade alemã por causa das leis raciais do nazismo e foi alvo, na Tchecoslováquia, dos estudantes de extrema-direita. Ele acabou, durante a Segunda Guerra Mundial, se refugiando nos Estados Unidos, depois de ter ficado algum tempo na Suíça, onde lecionou na Academia de Direito Internacional. Ele, que era liberal, mudou para a convicção em um socialismo democrático.
Em nível de pós, descobri professores que o ensinavam sem que tivessem passado da primeira parte da Teoria pura. Vi colegas lecionando muito erradamente o conceito de norma fundamental porque o erro era "mais fácil".
Uma vulgata antikelseniana que passa como resumo da Teoria Pura do Direito é a de que o direito seria igual à lei. Quando se lê Kelsen, descobre-se que o autor não só reconhecia a validade do direito consuetudinário como afirmava que esse direito não está abaixo do direito escrito, mesmo que o direito constitucional diga expressamente o contrário (traduzi esse trecho neste editorial). A prática social produz direito postivo. Descobre-se também que uma das versões do famoso escalonamento das normas põe o direito internacional acima do direito constitucional, e que normas de direito internacional consuetudinário estão acima dos tratados internacionais.
Voltemos ao erro publicado no jornal. Como a obra de Kelsen, esse desconhecido (inclusive no Supremo Tribunal Federal!), vai muito além do livro mencionado, devemos lembrar que ele foi também um grande internacionalista. Em The Law of the United Nations, livro cuja primeira edição é de 1950, lemos a explicação sobre a mudança da prática da ONU, nesta minha tradução livre:
Contudo, não está excluída a interpretação de que a ausência ou a abstenção de votar por parte de um membro permanente em matéria não procedimental não impede uma decisão válida do Conselho. Ela pode ser baseada no fato de que os artigos 108 e 109, em que se requer a ratificação de emenda por todos os membros permanentes do Conselho, a Carta diz expressamente: "incluindo todos os membros permanentes do Conselho de Segurança." Já que o artigo 27, parágrafo 3º, não requer os votos de "todos" os membros permanentes, mas só "os votos favoráveis dos membros permanentes", uma decisão válida do Conselho em matéria não procedimental pode ser alcançada mesmo no caso em que um membro permanente abstenha de votar. Essa interpretação prevalece na prática do Conselho de Segurança.
O jurista, atento nessa questão à realidade internacional (devo lembrar que, em outros momentos, vê-se que o etnocentrismo compromete suas análises), comenta em nota os precedentes nas Nações Unidas para que essa interpretação prevalecesse, dentro do jogo da Guerra Fria. Sem o olhar político, pouco se vê no direito, o que inclui as políticas de ensino, ainda tendentes para o caminho da cegueira diplomada.