O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Jornalismo versus Direito II: Kelsen, ONU e o ensino jurídico

Escrevi, em nota anterior, sobre erro de Walter Ceneviva, autor de uma coluna jurídica em A Folha de S.Paulo, sobre o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Erro que só parecerá estranho, devo dizer, para quem não convive com profissionais do direito; quem com eles trata sabe que aquele engano é muito revelador da maneira de pensar fruto do adestramento típico proporcionado pelo ensino jurídico.
Existe, porém, um "ensino jurídico" típico no Brasil? É possível que sim (porém certamente com variações de ordem regional e institucional significativas), mas faltam pesquisas a respeito. Na minha restrita experiência como aluno e como professor nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, e é apenas a partir dessa experiência que falo, creio que ele não se desviou muito deste retrato traçado por Kafka, e que já citei mil vezes: mastigar serragem já mastigada antes por milhares de bocas.
Essa visão do estudo da dogmática jurídica foi animada, em minha experiência, por pelo menos três fatores:

a) Indiferença ou até um "secreto ódio à realidade" (lembro de Sérgio Buarque de Holanda). Embora o direito seja um produto social, de diversas fontes, e, em princípio, exista para gerar efeitos na sociedade, há quem deseje ignorar essa necessidade intrínseca a um verdadeiro ensino jurídico. Já escrevi neste blogue que passei a graduação sem nenhum estudo sobre movimentos sociais. Assim, é possível que, ainda hoje, haja graduandos que passem pelo estudo do direito constitucional sem saber, por exemplo, dos movimentos de reforma urbana. Que passem pelo código civil ignorando o papel das feministas. E saber disso faz toda a diferença - não apenas para entender melhor o direito (e aplicá-lo melhor, com atenção às demandas sociais), mas também como necessário antídoto ao encastelamento e à arrogância típicos das elites jurídicas. Em estudantes de origem social mais pobre, já vi se desenvolver um ódio às próprias raízes, o que é um fenômeno triste de traição de classe.
A partir dessas bases duvidosas, mas tão firmemente ancoradas no bacharelismo, é possível que até mesmo juristas inteligentes queiram escrever sobre direito internacional e sobre a ONU sem perceber que seria importante saber como ela funciona...
É certo que estudar outros campos do conhecimento poderia despertar uma curiosidade pela realidade que despertasse para outros horizontes além dos manuais de direito. No entanto, há um segundo fator para dificultar a retirada dos antolhos geralmente postos nos graduandos em direito (que geralmente os aceitam alegremente, devo lembrar).

b) Ignorância militante sobre outros campos do conhecimento. Falo em "militância" em razão das resistências, na academia e fora dela, para mudar o estado do obscurantismo nas diversas áreas do direito. Estudantes de graduação mais sagazes podem perceber que o que eles aprendem, por exemplo, em sociologia (se é que tem a chance de estudar essa disciplina), não tem repercussão nas lições dadas pelo professor de direito civil. Talvez tenha que assistir a lições de direito ambiental de um mestre que desconheça noções básicas de ecologia. Cursos de direito constitucional em que a ciência política foi exilada. Aulas de direito internacional público totalmente incontaminadas do conhecimento de qualquer coisa que cheire a relações internacionais. Luminares do direito penal que só se atualizaram até Lombroso etc.
Institucionalmente, constata-se o problema em concursos de ciência política para faculdades de direito  que proíbem a inscrição de professores que não tenham doutorado em direito, no banimento de historiadores em cargos de história do direito etc.
Outra faceta dessa mesma ignorância, porém em um nível mais sofisticado, é querer usar os outros campos como simples instrumentas auxiliares para interpretação e aplicação das normas jurídicas, isto é, pretender que o Direito seria algo como o "rei das ciências" e tudo o mais existe para servi-lo, o que é de uma ingenuidade epistemológica abissal. É o caso de professores e/ou alunos que tomam Habermas, Agamben, Rawls ou Deleuze (só para citar autores bem diferentes, mas os exemplos dependem do que está na moda no momento) e querem lê-los como se fossem manuais de hermenêutica do tipo Carlos Maximiliano. Querem transformar questionamentos radicais do direito em receitas de argumentação em tribunais, com prejuízos evidentes tanto para a teoria quanto para a sociedade. Ou até tentam fazê-lo combinando autores incompatíveis, em um ecletismo teórico bastante insensato, gerando uma literatura terciária de uma nulidade absoluta, mas apta para títulos e publicações na generosa academia jurídica brasileira.


c) Ignorância militante sobre as teorias do direito. Seria possível ter um conhecimento aprofundado do direito com as carências anteriores? Creio que não. Por isso há uma resistência enorme a certas disciplinas jurídicas que poderiam ameaçar o aluno a aprender mais. Se é possível ter razoável sucesso profissional, passar em concursos públicos mascando serragem (manuais de direito), para que se perguntar sobre a origem dessa celulose? Deixem-me desfazer a frase de Goethe e reivindicar os direitos da árvore da teoria, esquecida na decomposição intelectual da serragem, que corresponde à maior parte dos manuais e resumos e folhas dobradas em que a dogmática jurídica é ensinada. E também a filosofia do direito, claro, que entrou na roda dos concursos.
Trata-se de um ensino curioso, em que a educação não ocorre. Quando o malfadado ENADE dispunha-se a comparar calouros e formandos, e verificava, em vários casos, que havia pouca ou nenhuma diferença de notas entre eles, creio que apontava para algo parecido. A falta de uma base teórica impede que o estudante adquira a mínima autonomia intelectual na área e, no entanto, adquirir essa autonomia deveria ser a missão de todo curso de graduação. Estudiosos de outras áreas também se beneficiariam se levassem a sério teoricamente o direito, como bem lembra Luiz Otávio Ribas.
Vejo com muito espanto e incredulidade total, por conseguinte, aqueles que elegem Kelsen ou a "perspectiva kelseniana da teoria pura do direito" como o grande problema do ensino jurídico "tradicional". A falta de seriedade teórica é um grande problema, e é claro que, se pelo menos a teoria de Kelsen fosse realmente ensinada, até eu, que não sou adepto desse filósofo, reconheceria um ganho colossal. Não ouvi nenhuma palavra certa sobre esse jurista durante toda minha graduação (exceto de um professor que tinha uma ideia de como se pronunciava o nome do autor). Um professor, dos mais ignorantes que tive, afirmava que Kelsen era nazista. No entanto, o grande jurista judeu (aquele professor não sabia disto, e só deve ter ouvido de muito longe algum eco de Radbruch) foi afastado da universidade alemã por causa das leis raciais do nazismo e foi alvo, na Tchecoslováquia, dos estudantes de extrema-direita. Ele acabou, durante a Segunda Guerra Mundial, se refugiando nos Estados Unidos, depois de ter ficado algum tempo na Suíça, onde lecionou na Academia de Direito Internacional. Ele, que era liberal, mudou para a convicção em um socialismo democrático.
Em nível de pós, descobri professores que o ensinavam sem que tivessem passado da primeira parte da Teoria pura. Vi colegas lecionando muito erradamente o conceito de norma fundamental porque o erro era "mais fácil".
Uma vulgata antikelseniana que passa como resumo da Teoria Pura do Direito é a de que o direito seria igual à lei. Quando se lê Kelsen, descobre-se que o autor não só reconhecia a validade do direito consuetudinário como afirmava que esse direito não está abaixo do direito escrito, mesmo que o direito constitucional diga expressamente o contrário (traduzi esse trecho neste editorial). A prática social produz direito postivo. Descobre-se também que uma das versões do famoso escalonamento das normas põe o direito internacional acima do direito constitucional, e que normas de direito internacional consuetudinário estão acima dos tratados internacionais.

Voltemos ao erro publicado no jornal. Como a obra de Kelsen, esse desconhecido (inclusive no Supremo Tribunal Federal!), vai muito além do livro mencionado, devemos lembrar que ele foi também um grande internacionalista. Em The Law of the United Nations, livro cuja primeira edição é de 1950, lemos a explicação sobre a mudança da prática da ONU, nesta minha tradução livre:

Contudo, não está excluída a interpretação de que a ausência ou a abstenção de votar por parte de um membro permanente em matéria não procedimental não impede uma decisão válida do Conselho. Ela pode ser baseada no fato de que os artigos 108 e 109, em que se requer a ratificação de emenda por todos os membros permanentes do Conselho, a Carta diz expressamente: "incluindo todos os membros permanentes do Conselho de Segurança." Já que o artigo 27, parágrafo 3º, não requer os votos de "todos" os membros permanentes, mas só "os votos favoráveis dos membros permanentes", uma decisão válida do Conselho em matéria não procedimental pode ser alcançada mesmo no caso em que um membro permanente abstenha de votar. Essa interpretação prevalece na prática do Conselho de Segurança.

O jurista, atento nessa questão à realidade internacional (devo lembrar que, em outros momentos, vê-se que o etnocentrismo compromete suas análises), comenta em nota os precedentes nas Nações Unidas para que essa interpretação prevalecesse, dentro do jogo da Guerra Fria. Sem o olhar político, pouco se vê no direito, o que inclui as políticas de ensino, ainda tendentes para o caminho da cegueira diplomada.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Terra sem lei VI e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos


Um dos fracassos ou, pelo menos, uma das decepções de certos governos de esquerda na América Latina verifica-se na oposição aos direitos humanos. Boaventura de Sousa Santos, no artigo "Oitava carta às esquerdas: As últimas trincheiras", publicado na Carta Maior, deixa bem clara a rendição oficial às grandes empreiteiras e aos grileiros: "Quem poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de associação, em nome dos imperativos do “desenvolvimento”?"
Àqueles que olham com desconfiança o intelectual português por seu engajamento na esquerda, sugiro que leiam a matéria "Chipping at the foundations: The regional justice system comes under attack from the countries whose citizens need it most", da revista The Economist, insuspeita de esquerdismo, que vai direto ao cerne da questão: os Estados que estão a atacar o Sistema Interamericano são aqueles cujos cidadãos mais necessitam do Sistema.
Kant, em À paz perpétua (já me referi a esse livro nesta nota), escreveu que chegaria uma época em que a violação dos direitos humanos em alguma parte da Terra seria sentida em todo o planeta. Estamos bem mais próximos disso do que no fim do século XVIII, pois já ocorrem manifestações internacionais contra violações de direitos humanos, e o direito acompanha lentamente essas mudanças. Talvez, por essa razão, os Estados estejam (no fundo confirmando a tese de Kant, pois reagem contra ela), contrapondo-se ao direito internacional: tendo em vista que a destruição das culturas indígenas é cada vez mais sentida como uma ofensa à humanidade, torna-se imprescindível, para a eficácia desses abusos, sabotar os instrumentos jurídicos internacionais.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos está sendo atacada pelos Estados não por causa dos defeitos do Sistema Interamericano, e sim em razão de suas virtudes. O mecanismo das medidas cautelares, que permite agilizar a proteção dos direitos humanos, é um dos alvos principais - e, por ser um avanço, foi atacado, entre outras autoridades, pela inacreditável ministra de direitos humanos do Brasil, Maria do Rosário, por ser demasiado eficiente...
(Nota: sobre a ministra, podemos lembrar de sua contraditória tendência de tratar dos direitos humanos silenciando as vítimas, ou seja, vitimizando-as mais uma vez, como ocorre com os índios no Brasil, e voltou a acontecer recentemente com as Mães de Maio.)
O decreto legislativo nº 788, de 13 de julho de 2005, sem o cumprimento da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, previu:

Art.É autorizado o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu, denominado “Volta Grande do Xingu”, localizado no Estado do Pará, a ser desenvolvido após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar necessários.
A consulta obrigatória às comunidades indígenas que poderiam ser afetadas ficou para depois:

Art. 2º Os estudos referidos no art. 1º deste Decreto Legislativo deverão abranger, dentre outros, os seguintes:
I - Estudo de Impacto Ambiental - EIA;
II - Relatório de Impacto Ambiental - Rima;
III - Avaliação Ambiental Integrada - AAI da bacia do Rio Xingu; e
IV - estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades indígenas localizadas na área sob influência do empreendimento, devendo, nos termos do § 3º do art. 231 da Constituição Federal, ser ouvidas as comunidades afetadas.
Parágrafo único. Os estudos referidos no caput deste artigo, com a participação do Estado do Pará, em que se localiza a hidroelétrica, deverão ser elaborados na forma da legislação aplicável à matéria.
A má técnica legislativa, usual no Congresso Nacional brasileiro dos últimos tempos, resplandece no parágrafo único (ele diz apenas que o direito aplicável deverá ser seguido, como se o princípio da legalidade já não existisse no direito brasileiro).
Até mesmo esse decreto legislativo, apesar de não cumprir realmente a Convenção da OIT, prevê que devem ser "ouvidas" as comunidades interessadas. Isso não foi feito, como se sabe, o que justificou o deferimento, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, do pedido de suspensão das obras de Belo Monte pelo Ministério Público Federal do Pará.
Há pouco, o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do seu presidente, Ministro Ayres Britto, cujo histórico reacionário em relação ao campo é salientado neste artigo de Claudio Angelo (agradeço a Idelber Avelar por ter chamado a atenção para o texto), deferiu pedido da Advocacia-Geral da União para a retomada das obras. Também escreverei sobre a decisão, mas em outra perspectiva.
Se tal é a Corte mais alta do Judiciário brasileiro, a necessidade de instrumentos internacionais efetivos somente se ressalta ainda mais, e explica porque outros Estados, além do Brasil, cujas políticas oficiais marcam-se pelo cumprimento apenas seletivo dos direitos humanos, estejam com ele nesse ataque. A postura da Venezuela, por meio do governo autocrático de Hugo Chávez, em deixar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é oportuna para um Estado que progressivamente cerceia esses direitos.
No entanto, como bem dizia Kant em À paz perpétua, os Estados irão, hipocritamente, negar (daí o papel do princípio da publicidade para a garantia do direito público) que estão a agir contra a validade dos direitos humanos, por meio das máximas sofísticas. Entre elas, está a si fecisti, nega, abundantemente empregada nos atuais ataques contra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Nesse jogo hipócrita, em um contexto de ataque generalizado aos povos indígenas nas Américas (leiam este alerta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos), no Chile, no Equador, na Argentina, na Bolívia, no Brasil, que jamais ocorre sem a concomitante agressão ao Direito Internacional Ambiental, foi escrita há poucas semanas mais uma página desmoralizadora da história do Ministério das Relações Exteriores.
Deisy Ventura, Flávia Piovesan e Juana Kweitel publicaram na seção Tendências e debates da Folha de S.Paulo, no dia 7 de agosto de 2012, o artigo "Sistema Interamericano sob forte ataque", que enfatizou o ataque diplomático do Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos: "[...] quando a comissão fez recomendações no caso da hidroelétrica de Belo Monte, o Brasil não perdoou. Contrariado, desqualificou publicamente a comissão, retirou seu embaixador junto à OEA, decidiu não pagar a sua quota por meses e desistiu da candidatura de um membro brasileiro para a comissão".
O artigo em contraponto da seção foi assinado por um dos Embaixadores Patriota (o outro, que é seu irmão, é o Chanceler - o Itamaraty mantém a respeitosa tradição de ser uma "casa de família"),  Dois pesos, duas medidas. O absurdo jurídico e histórico do artigo é manifesto, e devo apontá-los, no meu dever intelectual de professor de direito.
Esse Patriota escreve "Quando proliferavam ditaduras na região, a CIDH se levantava em prol dos presos políticos destituídos de seus direitos e torturados." Ao contrário, a Comissão pouco pôde fazer, tendo em vista que a OEA, manipulada pelos interesses geopolíticos dos EUA e das ditaduras aliadas ainda na Guerra Fria, não tinha interesse político em se contrapor às políticas de violações de direitos humanos efetivadas por essas ditaduras, entre elas o Brasil. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, por sinal, empenhou-se eficazmente para que a frase desse Embaixador se tornasse uma falsidade história.
Uma exceção foi a ditadura argentina, que permitiu a visita da Comissão (o que o Brasil dessa época jamais permitiu) - como lembro neste artigo,"Migração na ditadura militar brasileira: desejados e indesejados perante a doutrina de segurança internacional", apresentado no dia 24 deste mês no Segundo Congresso da Sociedade Latinoamericana para o Direito Internacional.
O artigo desse Patriota possui, entre outras, esta passagem, de uma brutalidade que desafia a verossimilhança: "Não é razoável que a comissão emita medidas cautelares com o intuito, por exemplo, de suspender a construção de hidrelétricas. Ela deve se ater a questões precípuas de direitos humanos, pronunciando-se por meio de pareceres recomendatórios e deixando que a corte assuma suas responsabilidades judiciais em casos que o justifiquem."
O Embaixador, em uma aparente alinhamento oficial às grandes empreiteiras, acha que construção de hidrelétricas nada têm que ver com direitos humanos e, por isso, a legislação concernente não serviria para o caso. Imagino, piamente, duas explicações para a tese brutal: ou ele acha que não há pessoas na região de Belo Monte (e, assim, reedita o costumeiro - e oportuno para o Estado - esquecimento de que há indígenas no Brasil), ou ele crê que os índios não são humanos.
Nos dois casos, o horizonte jurídico-político do arrazoado e da prática governistas é o genocídio.
No Congresso da SLADI que mencionei, foi apresentado, por Raísa Cetra, um trabalho muito mais interessante do que o meu, escrito com já mencionada e grande internacionalista Deisy Ventura, "A funcionalidade do Sistema Intermericano de Direitos Humanos: os casos de violência no campo levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos". Nesse trabalho, que aborda a persecução ilegal sofrida pelo MST,  bem como a violência causada pelo agrobanditismo no Brasil (em geral travestido de agronegócio), temos esta passagem com que concluo esta nota:

[...] as recentes deposições sumárias dos presidentes de Honduras e do Paraguai comprovam que medidas como as “cautelares” da CmIDH são mais necessárias do que nunca em nosso continente. A Presidenta Dilma Roussef é testemunha histórica do que significa a falta de um órgão internacional, especializado  em direitos humanos, capaz de reagir prontamente a graves violações. Na época da ditadura civil-militar brasileira, a debilidade do SIDH em formação, somada à parcialidade de uma OEA refém da guerra fria, ocasionaram uma omissão histórica da comunidade internacional diante da barbárie que grassava em nosso país.

Não encontro mais palavras. Quem foi vítima nos anos 1970 agora é algoz. E espera gozar da mesma impunidade internacional de que ainda estão a gozar, tendo em vista a fraqueza da justiça de transição no Brasil, os algozes do passado recente.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Antologia mural de viagem: Argentina, julho de 2012


Estive em Buenos Aires no mês passado e traduzi alguns poemas argentinos em duas notas que publiquei neste blogue (Antologias de viagem Argentina e Argentina II). Eu achava, porém, que iria publicar antes esta outra antologia, de escritos em outro suporte, de caráter essencial e visualmente urbano.
Há um debate nos muros e paredes da cidade. Perto do Coló, a determinada hora,pude encontrar esta mensagem, que já havia se sobreposto a uma outra, que não pude identificar.


Depois achei outra com a mesma inscrição, mas com o "no al aborto" riscado. A afirmação da vida foi mantida, marcando a posição de que a concepção dos direitos reprodutivos não é contrária à vida. Não logrei identificar o que significa a sigla, agradeço se alguém puder informar.


Estive, entre outras, na Librería de las Mujeres, que fica no mesmo quarteirão de uma grande livraria de arte, Asunto Impreso. Os assuntos femininos, porém, estavam escritos também em locais abertos. Nunca havia lido "La lesbofobia mata", e reconheço que faz todo o sentido. Em outra inscrição, a presidenta Kirchner é cobrada para a legalização do aborto - ela já se manifestou contra essa medida.



Aqui, uma crítica anarquista ao matrimônio, igualitário ou não:



Não consegui capturar a imagem sobre o julgamento de Mariano Ferreyra, que vi duas vezes, mas esta sim, bem mais antiga, contrária à extradição dos chilenos Freddy Fuentevilla e Marcelo Villarroel, que acabou ocorrendo.



Como essa, boa parte das mensagens que eu vi eram das esquerdas argentinas. Da COMPA (Coordinadora de Organizaciones y Movimientos Populares de Argentina), e da Frente Popular Daríon Santillán









Outra questão são as reivindicações da memória política. Esta imagem é de um dos milhares de desaparecidos pela última ditadura militar argentina, Carmen Candelaria Román de Iglesias, membro do Partido Comunista:



Alguns dos desaparecidos receberam placas nas calçadas. É o caso de Guillermo Pablo Jolly:


Reivindicação à memória também presente na cerimônia em homenagem às vítimas do atentado terrorista à AMIA (Asociación Mutual Israelita Argentina), que completou 18 anos - "Recordar también es una necesidad basica".



Críticas às continuidades da ditadura no regime democrático:


No caso, tortura e violência policial nesta inscrição da CORREPI (Coordinadora contra la represión policila y institucional):

Um libelo não assinado contra o proibicionismo:


E a atualidade não desmentida deste livro, Nunca más, que ganhou um congênere no Brasil - afinal, tivemos e continuamos a ter tantos problemas em comum:










sábado, 11 de agosto de 2012

Desarquivando o Brasil XXXIX: Condenações póstumas de Paulo Stuart Wright?

A lei estadual n. 15.450, de 17 de janeiro de 2011, teve como origem projeto da deputada Angela Albino (PCdoB) e atribuiu a uma rodovia de Santa Catarina o nome do ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright. Tratava-se de medida de reparação histórica. Sem mencionar seu período nos EUA, sua trajetória como deputado estadual na ALESC foi curta e movimentada. O compromisso com os operários e o cooperativismo valeram-lhe a tentativa de assassinato e a cassação pela própria Assembleia Legislativa em 1964, em um gesto de adesão explícita ao golpe militar.
Após a cassação pelos dissemelhantes pares, ingressou e dirigiu uma conhecida organização clandestina de esquerda, a Ação Popular. Provavelmente recebeu treinamento em Cuba e na China. Preso em 1973, já na Ação Popular Marxista Leninista, fruto de fracionamento da AP (a vocação da esquerda para as facções é infalível), foi torturado e morto no DOI-CODI em São Paulo. Seu corpo segue desaparecido.
Apesar de errar mais de uma vez a grafia do nome do político, o dossiê Direito à Memória e à Verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, apresenta a trajetória e o desaparecimento de Paulo Stuart Wright nas páginas 353 e 354.
Seu irmão, o pastor presbiteriano Jaime Wright, foi um dos organizadores do Brasil Nunca Mais e oficiou, com Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, o culto ecumênico na Catedral da Sé em memória de Vladimir Herzog.
Faço esta nota porque a atual Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou em julho deste ano um projeto de lei, da autoria do deputado Gilmar Knaesel (PSDB) para substituir o nome de Paulo Stuart Wright, em uma espécie de segunda cassação, agora póstuma. Havia uma petição na internet que solicitava ao Governador de Santa Catarina vetar o projeto.
Li que o veto foi realmente realizado pelo Governador Raimundo Colombo, o que gerou controvérsia no último dia sete na Assembleia Legislativa. São muito curiosas as declarações de Knaesel, que alegou não ter desejado diminuir a memória do deputado cassado, e que se devia procurar uma rodovia maior para homenagear Paulo Stuart Wright!
Apesar de a questão ter sido resolvida (a não ser que a Assembleia resolva derrubar o veto), incluo aqui a sugestão de mensagem contra o projeto vetado elaborada pelo Coletivo Catarinense pela Memória, Verdade e Justiça, que documenta parte da história da malograda iniciativa parlamentar:

Governador Raimundo Colombo: raimundocolombo@gge.sc.gov.br
Vice Governador, Eduardo Pinho Moreira: vicegovernador@gvg.sc.gov.br
Excelentíssimos Senhores,
Governador do Estado de Santa Catarina e
Vice Governador do Estado de Santa Catarina,
Em 1964 – a Assembleia Legislativa, subserviente ao governo que assaltou o poder, cassou o mandato do deputado PAULO STUART WRIGHT, organizador das Cooperativas de Pesca, no Estado.
Dirigente da Ação Popular, Paulo cai na clandestinidade e conseguiu sobreviver até 1973, quando então foi preso e desapareceu nos porões da ditadura.
No ano 2010, a Assembleia aprovou o nome de Paulo para batizar uma rodovia que liga o município de Penha a Piçarras. A Lei foi sancionada pelo governador, nos primeiros dias de janeiro de 2011.
Para nosso espanto, a nova legislatura, apresentou um projeto para substituir o nome de Paulo pelo nome de um prefeito nomeado pela ditadura, atendendo interesses eleitoreiros atuais - PL 0199.9.2011.
Durante um ano meio conseguimos retardar a aprovação do PL, que finalmente foi aprovado por acordo de lideranças.
Desta forma, solicitamos, como forma de manutenção da dignidade na luta pela democracia no Estado de Santa Catarina, que o projeto seja VETADO PELO CHEFE DO PODER EXECUTIVO, evitando-se, assim, que PAULO STUART WRIGHT seja outra vez cassado da memória de nosso Estado.
Cordialmente,
Nome
Atividade/Função


Lembro que Alessandro da Silva, da Associação de Juízes para a Democracia, também participou dessa mobilização contra o projeto de Knaesel.
Angela Albino, autora do projeto que homenageou Paulo Stuart Wright, anunciou que tomaria esta iniciativa, porém antes que o fizesse, o deputado estadual Jailson Lima (PT) propôs projeto de resolução, no dia oito deste mês, para revogar a cassação sofrida em 1964. Dessa forma, é possível que surjam mais discussões sobre sua figura. No Dossiê Mortos e Desaparecidos Políticos, encontramos uma lista de fontes para pesquisa sobre a vida de Paulo Stuart Wright. No portal do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, encontramos trechos de depoimentos e de notícias de jornal. No importante Imagens da revolução (hoje publicado pela editora Expressão Popular), livro organizado por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá (que foi companheiro de Wright na AP e na APML), podem ser lidos textos originais das duas organizações de que participou.



Gostaria de incluir aqui, nas imagens à esquerda, trechos da sentença que o condenou por crimes contra segurança nacional, com base no decreto-lei nº 898 de 1969, em um processo dirigido também contra outros membros da Ação Popular Marxista-Leninista.
Paulo Stuart Wright e Jair Ferreira de Sá foram condenados como líderes da APML. O primeiro foi condenado a cinco anos de reclusão e à perda dos direitos políticos por dez anos, tendo em vista a previsão do artigo 14 (o crime de “Formar, filiar-se ou manter associação de qualquer titulo, comitê, entidade de classe ou agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional”, com pena de “Reclusão, de 2 a 5 anos, para os organizadores ou mantenedores, e, de 6 meses a 2 anos, para os demais.”), combinado com o 74 (“ O condenado à pena de reclusão por mais de dois anos fica sujeito, acessoriamente à suspensão de direitos políticos, por dois a dez anos.”).



A tipificação não surpreende - ser líder de uma organização clandestina de esquerda, e militarista, era de fato uma conduta típica segundo a legislação de segurança nacional.
O notável é que Paulo Stuart Wright (1933-1973) era revel no processo e foi condenado postumamente em 21 de agosto de 1974, o que não deveria ocorrer de acordo com o artigo 123, I do Código de Processo Penal Militar - a morte extingue a punibilidade. No entanto, nem uma palavra sobre o falecimento pode ser encontrada na decisão, pois isso incriminaria os agentes da repressão. Jair Ferreira de Sá (1941-1985) sobreviveu ao período e seu acervo está hoje no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Com efeito, uma das tarefas que a Justiça Militar cumpriu foi a de acobertar as torturas, os homicídios e os desaparecimentos forçados cometidos pelos agentes da repressão política. Uma das maneiras de fazê-lo era condenar os desaparecidos como se vivos estivessem, e corroborar a farsa oficial de que não existiam abusos aos direitos humanos no Brasil. O mesmo aconteceu com Stuart Angel Jones, e sua mãe, Zuzu Angel, antes de ser também morta pela repressão política, denunciou a farsa da condenação do filho já morto.
Em texto que preparei para o Segundo Congresso da Sociedade Latino-americana para o Direito Internacional, “América Latina y el Derecho Internacional – Herencia y Perspectivas, Migração na ditadura militar brasileira: desejados e indesejados perante a doutrina de segurança nacional, tratei, entre outros assuntos, dessa atividade deceptiva do governo como parte da guerra psicológica adversa:

Entre outras organizações e entidades, a Santa Sé, o Tribunal Bertrand Russell, a Anistia Internacional denunciaram violações dos direitos humanos pelo regime. Por exemplo, a Comissão Internacional de Juristas preparou o relatório Repressão policial e torturas praticadas contra presos e opositores políticos no Brasil a partir de depoimentos de presos políticos, denunciando que, em junho de 1970, o Brasil possuía aproximadamente doze mil presos políticos e que a tortura havia se tornado em arma política; o Ministro da Justiça apressou-se, com seu Chefe de Gabinete, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[1] a elaborar esta nota oficial:

Não há presos políticos no Brasil. Ninguém é detido por ser contrário à política do governo. Os que se acham presos são terroristas, cujo número, como assinalou o general Muricy, não ultrapassa a 500. O tratamento que recebem esses presos não fere os princípios da humanidade [...] A suposta precisão das denúncias arrolando nomes de torturados e torturadores, [sic] revela simplesmente a grande imaginação dos informantes da Comissão Internacional de Juristas, que deforma os fatos para servir aos propósitos da agitação e da subversão.[2]

Trata-se exatamente do começo do governo Médici, em que ocorreu o acirramento da repressão política.

É estranho ver que quase ocorreu algo como uma nova condenação póstuma a Paulo Stuart Wright, agora pelas mãos do Legislativo catarinense. Casos como esse ratificam a necessidade das políticas de memória no Brasil.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Polícia do pensamento e reserva de mercado: de jornalistas a pedicures

A incapacidade de pensar o país (ou de pensar tout court) é, provavelmente, um dos fatores que fazem com que o Congresso Nacional esteja se dedicando mais a atender grupos de interesses do que a vislumbrar horizontes mais largos. A amnésia militante do projeto de reserva de mercado para os historiadores é um exemplo sobre que já escrevi:

Memória como reserva de mercado, parte II

Memória como reserva de mercado, parte III

Memória como reserva de mercado, parte IV


Esse tipo de medida legislativa é exemplar do modus operandi da classe política no Brasil: criar barreiras e impedimentos. O Brasil continua a ser uma grande fazenda improdutiva em que políticos querem criar seus currais e colocar porteiras. Cartórios, depois, registram as apropriações. O cartório, por sinal, é uma instituição paradigmática desse procedimento, pois é, ele mesmo, uma apropriação indevida do que é público.
Trata-se de uma conduta bem oficial. O atual ministro do trabalho, Brizola Neto, foi autor de um projeto de lei que tinha como fim regulamentar a profissão de DJ, para que só os que fizessem os cursos profissionalizantes pudessem trabalhar...
Tal proposta não seguiu adiante, e sim a do falecido senador e delegado do DOPS/SP Romeu Tuma (note-se a semelhança entre certos políticos profissionais da direita e da esquerda nesses assuntos).  No entanto, o então presidente Lula acertadamente vetou o projeto aprovado pelo Congresso Nacional, amparado no parecer da Advocacia-Geral da União, elaborado por Erico Ferrari Nogueira, que bem sustentou que "a proposição implica em reserva de mercado, sendo desprovido de razoabilidade estabelecer restrição à liberdade de exercício profissional nessa hipótese."
O infame Ato Médico, que deseja subordinar as diversas profissões da saúde aos portadores de diploma em medicina, é outra medida perigosa em gestão naquelas duas casas legislativas. Aconselho a leitura do blogue Não ao ato médico, que explica as entranhas do ataque do corporativismo médico contra a saúde no Brasil.

Historiadores, DJs, médicos - e os jornalistas? O Supremo Tribunal Federal já decidiu, na mesma linha da interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito do Pacto de São José da Costa Rica, que exigir diploma para a profissão de jornalista viola a liberdade de expressão. Qual a resposta parlamentar àquela decisão judicial? Em uma iniciativa contra os direitos humanos, o senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) apresentou projeto para restringir aquela liberdade. Sessenta senadores votaram a favor da restrição de um direito fundamental em prol do corporativismo de uma categoria profissional, o que mais uma vez demonstra o escasso compromisso tanto da direita quanto da esquerda profissionais com os direitos humanos.
Na notícia veiculada pelo Senado, lemos que o senador Magno Malta (PR-ES), conhecido por suas iniciativas contra a educação laica, e cuja dedicação à moralidade pública é amplamente conhecida, afirmou que o diploma significa a premiação do "esforço do estudo".
O estudo foi impedido? Alguns, menos inteligentes ou com menos boa-fé, preferiram ignorar que a decisão do STF não proibiu a existência de faculdades de jornalismo, e sim que passar por elas não é necessário. É evidente que as boas faculdades continuarão existindo, pois sua qualidade fará com que sejam procuradas. A politicamente poderosa indústria do ensino superior é que sairá perdendo, pois as faculdades em que não é necessário estudar para passar perderão a clientela forçada.
A exigência do diploma serviria para proteger os jornalistas contra as grandes empresas do ramo? Se isso fosse verdade, não teriam ocorrido abusos quando a exigência inconstitucionalmente estava em vigor. Maíra Kubík Mano, a quem muito respeito, lembrou que o projeto, na verdade, passa ao largo dos graves problemas que essa categoria de profissionais vem passando, e um deles é a fraude ao direito trabalhista realizada pelos conglomerados de comunicação:

É impossível trabalhar como jornalista e não saber que o processo de “pejotização”, ou seja, de pagamento via Pessoa Jurídica, sem contrato formal de trabalho via CLT, é uma realidade terrível. Só que para se resolver isso não é preciso ter 100% dos jornalistas diplomados, e sim encarar as empresas de comunicação de frente.
Outro desafio seria regular os meios de comunicação, o que contrariaria os interesses das poucas famílias que os dominam no Brasil, bem como dos políticos que dominam as transmissoras e repetidoras por meio das concessões realizadas ao arrepio da Constituição da República. Este Congresso Nacional não está à altura da tarefa, ao que parece.
Ademais, a reserva de mercado atenderia os interesses das grandes empresas, ameaçadas pela mudança na economia da informação proporcionadas pela internet. Alexandre Haubrich assim entende, percebendo a exigência corporativa como uma restrição à cidadania, e essa restrição é favorável aos grandes meios de comunicação: "a exigência de diploma para ser admitido como jornalista é retrógrada e fora da realidade, servindo apenas como reserva de mercado nas grandes empresas de comunicação e como forma de exclusão que logo será atropelada pelo grande campo de inclusão que é a internet."
Li alhures que a obrigatoriedade de diploma se justificaria na cobrança de "responsabilidade social de quem informa". Essa posição repugna pelo indisfarçável elitismo. Não é vergonhoso pressupor que pessoas sem diploma não têm "responsabilidade social"? E que o diploma confere magicamente ética a seu portador? Maíra Kubík também discute esse preconceito, que é uma cândida forma de absolver as elites... Uma das pessoas que conheci que tinha mais consciência de responsabilidade social era catador de papel e iletrado, Severino Manoel de Souza.
Depois de termos tido um presidente sem diploma algum senão o de posse, e que não foi exatamente um fracasso político, é surpreendente ver o fetiche do diploma, na mais arcaica tradição do bacharelismo, ecoar até na boca e no teclado de pessoas que se consideram de esquerda.

Historiadores, DJs, médicos, jornalistas - por que não filósofos? O deputado federal Giovani Cherini (PDT/RS, que também deseja regulamentar a profissão de "naturólogo", deixando-a privativa para aqueles que detenham o diploma de naturologia, e fundou a Universidade dos Líderes, apresentou projeto para regulamentar a profissão de filósofo, que merece ser transcrito pela modesta técnica legislativa e pela singeleza argumentativa da fundamentação, que provavelmente o deputado julgou adequada à matéria que quer regular:

PROJETO DE LEI Nº, DE 2011
(Do Sr. Giovani Cherini)
Dispõe sobre o Exercício da Profissão de Filósofo e dá outras providências.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º - O exercício, no País, da profissão de Filósofo, observadas as condições de habilitação e as demais exigências legais, é assegurado:
a) aos bacharéis em Filosofia, diplomados por estabelecimentos de ensino superior, oficiais ou reconhecidos;
b) aos diplomados em curso similar no exterior, após a revalidação do diploma, de acordo com a legislação em vigor;
c) aos licenciados em Filosofia, com licenciatura plena, realizada até a data da publicação desta Lei, em estabelecimentos de ensino superior, oficiais ou reconhecidos;
d) aos mestres ou doutores em Filosofia, diplomados até a data da publicação desta Lei, por estabelecimentos de pós-graduação, oficiais ou reconhecidos.
e) aos que, embora não diplomados nos termos das alíneas a, b, c e d, venham exercendo efetivamente, há mais de 5 (cinco) anos, atividade de Filósofo, até a data da publicação desta Lei.
f) aos membros titulares da Academia Brasileira de Filosofia e aos por ela diplomados em cursos de graduação bacharelado e licenciatura, mestrado e doutorado.
Art. 2º - É da competência do Filósofo:
I - elaborar, supervisionar, orientar, coordenar, planejar, programar, implantar, controlar, dirigir, executar, analisar ou avaliar estudos, trabalhos, pesquisas, planos, programas e projetos atinentes à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras;
Il - ensinar Filosofia, Pensamento e Ideias, nos estabelecimentos de ensino, desde que cumpridas as exigências legais;
III - assessorar e prestar consultoria a empresas, órgãos da administração pública direta ou indireta, entidades e associações, assim como a pessoas físicas, relativamente à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras;
IV - participar da elaboração, supervisão, orientação, coordenação, planejamento, programação, implantação, direção, controle, execução, análise ou avaliação de qualquer estudo, trabalho, pesquisa, plano, programa ou projeto global, regional ou setorial, atinente à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras;
Art. 3º - Os órgãos públicos da administração direta ou indireta ou as entidades privadas, quando encarregados da elaboração e execução de planos, estudos, programas e projetos socioeconômicos ao nível global, regional ou setorial, manterão, em caráter permanente, ou enquanto perdurar a referida atividade, Filósofos legalmente habilitados, em seu quadro de pessoal, ou em regime de contrato para prestação de serviços.
Art. 4º - As atividades de Filósofo serão exercidas na forma de contrato de trabalho, regido pela Consolidação das Leis do trabalho, em regime do Estatuto dos Servidores Públicos, ou como atividade autônoma.
Art. 5º - Admitir-se-á, igualmente, a formação de empresas ou entidades de prestação de serviço previstos nesta Lei, desde que as mesmas mantenham Filósofo como responsável técnico e não cometam atividades privativas de Filósofo a pessoas não habilitadas.
Art. 6º - O exercício da profissão de Filósofo requer prévio registro no órgão competente do Ministério do Trabalho, e se fará mediante a apresentação de:
I - documento comprobatório de conclusão dos cursos ou diplomas previstos nas alíneas a, b, c, d, e, f do art.1º, ou a comprovação de que vem exercendo a profissão, na forma da alínea e do art. 1º;
II - carteira profissional.
Parágrafo único. Para os casos de profissionais incluídos na alínea e do art. 1º, a regulamentação desta Lei disporá sobre os meios e modos da devida comprovação, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a partir da data da respectiva publicação.
Art. 7º - A Academia Brasileira de Filosofia, com sede na cidade do Rio de Janeiro, é a representante da filosofia e língua filosófica nacionais.
Art. 8º - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 60 (sessenta) dias.
Art. 9º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Art. 10º - Revogam-se as disposições em contrário.
Sala das Sessões, em de setembro de 2011.
Deputado Giovani Cherini
JUSTIFICATIVA
A profissão de filósofo, uma das atividades mais importantes para nosso país, face sua evidente vinculação à preservação e expansão do pensamento e das ideias em território nacional, ainda não foi disciplinada
em nosso país. De fato, tal situação gera irreparáveis danos à constituição e robustecimento do pensamento filosófico no Brasil e, mais ainda, a sua correta difusão para as gerações vindouras.
Assim, parece-nos evidente que o Estado pode e deve agir no sentido de regular o exercício da profissão de Filósofo no País, estipulando as condições de habilitação e as exigências legais para o regular exercício da mesma, além de seu âmbito de competência. Tal medida é de suma importância, pois se de um lado retirará do mercado de trabalho as pessoas não habilitadas, de outro presta justo reconhecimento do Estado a esta milenar profissão; em benefício de toda a sociedade brasileira Academia.
Ademais, tal proposição prevê o registro dos profissionais junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, o que evitará eventuais precarizações das relações de trabalho. Por fim, o presente Projeto de Lei dá o devido reconhecimento à Academia Brasileira de Filosofia, entidade declarada de utilidade pública federal que reúne os grandes filósofos brasileiros, como o repositório do pensamento filosófico nacional.
O deputado federal Efraim Filho (DEM-PB) requereu a realização de audiência pública para discutir o projeto sobre a "profissão milenar", tendo em vista a ameaça à liberdade de pensamento. O requerimento foi aprovado em nove de maio deste ano. Creio que ela ainda não se realizou.
Espanta, no meio de tanta matéria para o pasmo e o horror, o destaque dado no projeto à Academia Brasileira de Filosofia, que conta, entre seus cinquenta e cinco luminares, com nomes tocados por Minerva como Merval Pereira, um dos autores que ela compartilha com a Academia Brasileira de Letras. Por sinal, seguindo a tradição aduladora das academias nacionais, a ABF reconheceu recentemente os talentos filosóficos de Michel Temer, atual vice-presidente.
A ABF teve a ideia de etiquetar livros de Heidegger para advertir o leitor de seu conteúdo.
Aqui, como em outros casos - a reserva de mercado para historiadores e para jornalistas bem o ilustra - desvela-se um desejo de fundar uma polícia do pensamento, para que na esfera pública só possam circular ideias devidamente diplomadas e etiquetadas. É provável que Romeu Tuma votasse a favor do projeto de Cherini, se ainda vivesse.

Historiadores, DJs, médicos, jornalistas, filósofos - seguindo a mesma lógica, por que não cabeleireiros, barbeiros, esteticistas, manicures, pedicures, depiladores e maquiadores? Os congressistas, de fato, resolveram exigir diploma para tanto... Somente tesouras diplomadas devem cortar cabelo? Serão elas mais afiadas?
Esse projeto aprovado pela atual legislatura tornou-selei n 12.592, de 18 de janeiro de 2012, e foi vetado parcialmente pela presidenta Dilma Rousseff, com toda razão. Mais um inegável sinal de que os congressistas querem, policialescamente, controlar tanto o que está dentro das cabeças quanto o que está fora delas.

P.S.: Em relação à teoria do direito, também escrevi uma nota sobre "polícia do pensamento", "Quem domina teoria e quem domina o direito?", em comentário a considerações de Abel Barros Baptista.