O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 11 de agosto de 2012

Desarquivando o Brasil XXXIX: Condenações póstumas de Paulo Stuart Wright?

A lei estadual n. 15.450, de 17 de janeiro de 2011, teve como origem projeto da deputada Angela Albino (PCdoB) e atribuiu a uma rodovia de Santa Catarina o nome do ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright. Tratava-se de medida de reparação histórica. Sem mencionar seu período nos EUA, sua trajetória como deputado estadual na ALESC foi curta e movimentada. O compromisso com os operários e o cooperativismo valeram-lhe a tentativa de assassinato e a cassação pela própria Assembleia Legislativa em 1964, em um gesto de adesão explícita ao golpe militar.
Após a cassação pelos dissemelhantes pares, ingressou e dirigiu uma conhecida organização clandestina de esquerda, a Ação Popular. Provavelmente recebeu treinamento em Cuba e na China. Preso em 1973, já na Ação Popular Marxista Leninista, fruto de fracionamento da AP (a vocação da esquerda para as facções é infalível), foi torturado e morto no DOI-CODI em São Paulo. Seu corpo segue desaparecido.
Apesar de errar mais de uma vez a grafia do nome do político, o dossiê Direito à Memória e à Verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, apresenta a trajetória e o desaparecimento de Paulo Stuart Wright nas páginas 353 e 354.
Seu irmão, o pastor presbiteriano Jaime Wright, foi um dos organizadores do Brasil Nunca Mais e oficiou, com Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, o culto ecumênico na Catedral da Sé em memória de Vladimir Herzog.
Faço esta nota porque a atual Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou em julho deste ano um projeto de lei, da autoria do deputado Gilmar Knaesel (PSDB) para substituir o nome de Paulo Stuart Wright, em uma espécie de segunda cassação, agora póstuma. Havia uma petição na internet que solicitava ao Governador de Santa Catarina vetar o projeto.
Li que o veto foi realmente realizado pelo Governador Raimundo Colombo, o que gerou controvérsia no último dia sete na Assembleia Legislativa. São muito curiosas as declarações de Knaesel, que alegou não ter desejado diminuir a memória do deputado cassado, e que se devia procurar uma rodovia maior para homenagear Paulo Stuart Wright!
Apesar de a questão ter sido resolvida (a não ser que a Assembleia resolva derrubar o veto), incluo aqui a sugestão de mensagem contra o projeto vetado elaborada pelo Coletivo Catarinense pela Memória, Verdade e Justiça, que documenta parte da história da malograda iniciativa parlamentar:

Governador Raimundo Colombo: raimundocolombo@gge.sc.gov.br
Vice Governador, Eduardo Pinho Moreira: vicegovernador@gvg.sc.gov.br
Excelentíssimos Senhores,
Governador do Estado de Santa Catarina e
Vice Governador do Estado de Santa Catarina,
Em 1964 – a Assembleia Legislativa, subserviente ao governo que assaltou o poder, cassou o mandato do deputado PAULO STUART WRIGHT, organizador das Cooperativas de Pesca, no Estado.
Dirigente da Ação Popular, Paulo cai na clandestinidade e conseguiu sobreviver até 1973, quando então foi preso e desapareceu nos porões da ditadura.
No ano 2010, a Assembleia aprovou o nome de Paulo para batizar uma rodovia que liga o município de Penha a Piçarras. A Lei foi sancionada pelo governador, nos primeiros dias de janeiro de 2011.
Para nosso espanto, a nova legislatura, apresentou um projeto para substituir o nome de Paulo pelo nome de um prefeito nomeado pela ditadura, atendendo interesses eleitoreiros atuais - PL 0199.9.2011.
Durante um ano meio conseguimos retardar a aprovação do PL, que finalmente foi aprovado por acordo de lideranças.
Desta forma, solicitamos, como forma de manutenção da dignidade na luta pela democracia no Estado de Santa Catarina, que o projeto seja VETADO PELO CHEFE DO PODER EXECUTIVO, evitando-se, assim, que PAULO STUART WRIGHT seja outra vez cassado da memória de nosso Estado.
Cordialmente,
Nome
Atividade/Função


Lembro que Alessandro da Silva, da Associação de Juízes para a Democracia, também participou dessa mobilização contra o projeto de Knaesel.
Angela Albino, autora do projeto que homenageou Paulo Stuart Wright, anunciou que tomaria esta iniciativa, porém antes que o fizesse, o deputado estadual Jailson Lima (PT) propôs projeto de resolução, no dia oito deste mês, para revogar a cassação sofrida em 1964. Dessa forma, é possível que surjam mais discussões sobre sua figura. No Dossiê Mortos e Desaparecidos Políticos, encontramos uma lista de fontes para pesquisa sobre a vida de Paulo Stuart Wright. No portal do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, encontramos trechos de depoimentos e de notícias de jornal. No importante Imagens da revolução (hoje publicado pela editora Expressão Popular), livro organizado por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá (que foi companheiro de Wright na AP e na APML), podem ser lidos textos originais das duas organizações de que participou.



Gostaria de incluir aqui, nas imagens à esquerda, trechos da sentença que o condenou por crimes contra segurança nacional, com base no decreto-lei nº 898 de 1969, em um processo dirigido também contra outros membros da Ação Popular Marxista-Leninista.
Paulo Stuart Wright e Jair Ferreira de Sá foram condenados como líderes da APML. O primeiro foi condenado a cinco anos de reclusão e à perda dos direitos políticos por dez anos, tendo em vista a previsão do artigo 14 (o crime de “Formar, filiar-se ou manter associação de qualquer titulo, comitê, entidade de classe ou agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional”, com pena de “Reclusão, de 2 a 5 anos, para os organizadores ou mantenedores, e, de 6 meses a 2 anos, para os demais.”), combinado com o 74 (“ O condenado à pena de reclusão por mais de dois anos fica sujeito, acessoriamente à suspensão de direitos políticos, por dois a dez anos.”).



A tipificação não surpreende - ser líder de uma organização clandestina de esquerda, e militarista, era de fato uma conduta típica segundo a legislação de segurança nacional.
O notável é que Paulo Stuart Wright (1933-1973) era revel no processo e foi condenado postumamente em 21 de agosto de 1974, o que não deveria ocorrer de acordo com o artigo 123, I do Código de Processo Penal Militar - a morte extingue a punibilidade. No entanto, nem uma palavra sobre o falecimento pode ser encontrada na decisão, pois isso incriminaria os agentes da repressão. Jair Ferreira de Sá (1941-1985) sobreviveu ao período e seu acervo está hoje no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Com efeito, uma das tarefas que a Justiça Militar cumpriu foi a de acobertar as torturas, os homicídios e os desaparecimentos forçados cometidos pelos agentes da repressão política. Uma das maneiras de fazê-lo era condenar os desaparecidos como se vivos estivessem, e corroborar a farsa oficial de que não existiam abusos aos direitos humanos no Brasil. O mesmo aconteceu com Stuart Angel Jones, e sua mãe, Zuzu Angel, antes de ser também morta pela repressão política, denunciou a farsa da condenação do filho já morto.
Em texto que preparei para o Segundo Congresso da Sociedade Latino-americana para o Direito Internacional, “América Latina y el Derecho Internacional – Herencia y Perspectivas, Migração na ditadura militar brasileira: desejados e indesejados perante a doutrina de segurança nacional, tratei, entre outros assuntos, dessa atividade deceptiva do governo como parte da guerra psicológica adversa:

Entre outras organizações e entidades, a Santa Sé, o Tribunal Bertrand Russell, a Anistia Internacional denunciaram violações dos direitos humanos pelo regime. Por exemplo, a Comissão Internacional de Juristas preparou o relatório Repressão policial e torturas praticadas contra presos e opositores políticos no Brasil a partir de depoimentos de presos políticos, denunciando que, em junho de 1970, o Brasil possuía aproximadamente doze mil presos políticos e que a tortura havia se tornado em arma política; o Ministro da Justiça apressou-se, com seu Chefe de Gabinete, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[1] a elaborar esta nota oficial:

Não há presos políticos no Brasil. Ninguém é detido por ser contrário à política do governo. Os que se acham presos são terroristas, cujo número, como assinalou o general Muricy, não ultrapassa a 500. O tratamento que recebem esses presos não fere os princípios da humanidade [...] A suposta precisão das denúncias arrolando nomes de torturados e torturadores, [sic] revela simplesmente a grande imaginação dos informantes da Comissão Internacional de Juristas, que deforma os fatos para servir aos propósitos da agitação e da subversão.[2]

Trata-se exatamente do começo do governo Médici, em que ocorreu o acirramento da repressão política.

É estranho ver que quase ocorreu algo como uma nova condenação póstuma a Paulo Stuart Wright, agora pelas mãos do Legislativo catarinense. Casos como esse ratificam a necessidade das políticas de memória no Brasil.

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