O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Cão Celeste e Telhados de Vidro: lançamentos em Portugal


Neste dia primeiro de agosto, serão lançados os novos números de Cão celeste e de Telhados de vidro em Guimarães (e não em Lisboa, como eu havia escrito antes). As duas revistas são publicações da editora Averno.
Eu não conhecia a primeira, que chega ao terceiro latido, e traz principalmente crítica e ensaio. Manuel de Freitas, o poeta português, e editor de ambas revistas, pediu-me um artigo a partir da nota que fiz sobre a recusa de Vitor Silva Tavares ao prêmio Ler/Booktailors na categoria "carreira": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/uma-nota-sobre-vitor-silva-tavares-e.html
A imprensa portuguesa, que tem suas ligações com o complexo editorial por trás do prêmio, não noticiou a recusa do editor. Parece que se trata de uma das dificuldades do direito à informação no capitalismo, de que os sucessivos escândalos do metrô de São Paulo, subnoticiados no Brasil, são outro exemplo recente: http://www.dw.de/esc%C3%A2ndalo-no-brasil-p%C3%B5e-em-d%C3%BAvida-esfor%C3%A7os-anticorrup%C3%A7%C3%A3o-da-siemens/a-16961389
A revista, de que li apenas o começo, traz instrutivo e crítico texto de Manuel de Freitas sobre a crítica literária portuguesa (ele menciona que se chegou ao nível, já conhecido no Brasil, das resenhinhas com estrelinhas). Há outro autor brasileiro, Fabiano Calixto. Jorge Roque, um dos escritores contemporâneos portugueses de que mais gosto, também está nela (e em Telhados de vidro).
Uma revista valente, a desafiar o meio literário português. Valentes também o casal de editores e poetas; sugiro que leiam esta entrevista dada por Freitas e Inês Dias: http://tantaspaginas.wordpress.com/2012/02/01/averno-nos-ultimos-anos-a-poesia-e-a-literatura-perderam-terreno-isso-nao-e-uma-catastrofe-a-poesia-da-se-bem-em-condicoes-adversas/
Há valentia de Telhados de vidro (http://editora-averno.blogspot.com.br/2013/07/telhados-de-vidro-n-18.html) já, simplesmente, em existir: não é toda a revista de poesia que chega ao décimo oitavo número sem apoio institucional. No Brasil, com esse tipo de apoio, lembro da Poesia sempre, que continua a ser um projeto da Biblioteca Nacional, mas sua distribuição é inexistente. De revistas que deixaram de ser publicadas, que não possuíam tal suporte, basta mencionar Inimigo rumor (que passou por uma fase luso-brasileira) e Dimensão.
Estou nesse novo número com uma série (incompleta, pretendo), para um livro futuro, sobre o poder judiciário. Um singelo trecho: "[...] após o furto/ de todo um refrigerante,/ condenada por arguto/ magistrado, a meliante// na prisão sofreu insultos,/ ficou cega e delirante,/ mas, para encerrar o assunto,/ já não furta como antes", em poema que, pelo menos, trata de assunto sempre atual, confirma-o esta reportagem de Altino Machado sobre preso que ficou cego e tetraplégico sob a responsabilidade de agentes penitenciários: http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2013/07/31/preso-fica-cego-e-tetraplegico-apos-tortura-por-agentes-penitenciarios/
Há outro autor brasileiro, Fabio Weintraub, com poemas de sua próxima obra, cujo projeto recebeu neste ano apoio da Petrobrás. Já li também o forte ensaio de Fernando Curopos sobre Al Berto, que muito interessará aos vários leitores desse poeta e a quem se dedica às questões de gênero na literatura.
Um dos poetas portugueses contemporâneos que acompanho é Vítor Nogueira. Ele está na revista com seu costumeiro tom próximo da prosa e, tantas vezes, irônico. Gostaria de terminar esta nota lembrando de um livro desse autor, Comércio tradicional, que a Averno lançou em 2008. Bastante da atual crise portuguesa está nele. As próprias dificuldades desse local de sociabilidade que é o comércio tradicional são um dos principais temas do livro e indicam outros modos de vida que estão ameaçados pelo que se chama de progresso: "Restos de grandes fogueiras./ É para isso que as pessoas vivem." ("Cruzes", p. 7), em confrontos às vezes brutalmente diretos:
Outra vez o argumento do progresso.
Uma excelente demonstração de artilharia.
Os aviões desapareceram do radar, logo após
aquela linha de destroços. Estamos prestes
a aterrar, é melhor pormos o cinto.
Vai cair um café dos anos vinte.
("Queda", p. 39)
A referência aos lugares que se fecham ou entram em crise vai de par com retratos, que podem ser patéticos, como este:
É aqui que os sonhos vêm morrer. Ao balcão,
ele e o copo, apenas os dois contra o mundo.
Temos de admitir que por vezes
conhecer uma pessoa é desumano.
("Cervejaria", p. 31)
A cidade abandona-se a si mesma, no seu chão vê-se "a pele escamosa de um animal extinto,/ um esqueleto completo e articulado,/ apenas reconhecível através do tamanho/ e da forma dos ossos." ("Vestígios, p. 34). Nesta geografia sentimental da crise, a ironia é, em alguns poemas, cortante. O último verso do poema final, "Ninguém sabe o que vão ser as cidades amanhã." poderia ser apenas mais um exemplo da mutabilidade do espaço urbano, presente na poesia moderna ao menos desde Baudelaire. Mas o título do poema é "Franchising"... eis a resposta que se divisa para o retrato das cidades futuras! Serem não um original, mas uma réplica licenciada de outro espaço, um não lugar dedicado ao consumo? Réplicas da revista Ler?

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