O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Desarquivando o Brasil LXVI: o direito à moradia, os movimentos sociais e os infiltrados

Os estudantes de Direito da Universidade Mackenzie Vanessa Almeida e o diretor acadêmico do C.A. João Mendes Júnior, Renato Zaccaro, entraram em contato comigo para que eu falasse na Semana Jurídica de Inverno, no fim de julho. O evento pareceu-me muito bem organizado. Zaccaro e a diretora-geral do Centro Acadêmico, Catarina Moraes Pellegrino, bem como o outro palestrante, a advogada Luciana Bedeschi, integraram a mesa de que participei. O tema era o direito à moradia e os movimentos sociais urbanos.
Foi um prazer falar ao lado de Luciana Bedeschi, que conheci no Fórum Centro Vivo, mestra em direito e doutoranda em planejamento urbano, há muito firmemente engajada nas questões relativas ao direito e à cidade, com importante atuação no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos: http://www.gaspargarcia.org.br/. Ela traçou uma trajetória da questão da moradia no direito brasileiro desde o século XIX.
Ouvindo sua fala, resolvi começar a minha com uma lembrança sobre o direito à moradia e a política.
A repartição dos bens na sociedade é uma questão política, diz respeito diretamente à divisão de classes sociais e, por isso, os direitos que dizem respeito mais diretamente à justiça distributiva, como os direitos sociais, causam tanta controvérsia.
Tanta, enfim, que alguns querem fingir que não se trata de um problema para o direito, e sim "mera" "questão política"; dessa forma, o Judiciário poderia lavar as mãos em lides que envolvem o direito à moradia, fingindo que esse direito não está no ordenamento jurídico brasileiro, e que a propriedade privada não tem que cumprir uma função social, tampouco a propriedade urbana, apesar da previsão explícita na Constituição da República.
Decisões como a da Justiça Estadual de São Paulo na destruição armada do Pinheirinho são exemplo disso.
Outro problema é achar que o problema nada tem que ver com a política, e se trata de simples tecnicalidade jurídica ou, o que é ainda pior, processual. No campo do direito urbano, a todo o tempo o jurista está imerso em questões de outras áreas - a sociologia, a economia, a ecologia, a arquitetura, a geografia... O próprio conteúdo da legislação aplicável a todo momento faz referência a conceitos dessas outras áreas (o que é um desafio também para o Judiciário, pois os magistrados, em regra, não entendem nada desses assuntos). Simplesmente não há a mínima chance de prosperar para quem quer trabalhar com as questões urbanas com a arrogância antiepistemológica de tantos juristas, que agem como se o direito fosse o sol de um sistema em que os outros saberes (sem luz própria) são meros planetas ou satélites.


Para fazer jus ao direito à moradia, questão sensível nas cidades, é necessário, pois, não ceder a nenhum dos dois reducionismos.
Eu havia programado, antes de chegar ao Estatuto da Cidade e aos planos diretores, tratar de como a questão da moradia - como de outros direitos sociais - era tratada, durante a ditadura militar, como uma preocupação para a segurança nacional. e não realmente como uma exigência da cidadania, o que se conjugava com a suspeição e a vigilância sobre os movimentos sociais.
Como falaria com estudantes, iniciei com um inquérito penal militar realizado em 1970 na Secretaria Estadual de Educação, que pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). O Ginásio Educacional João XXIII, em Americana, foi um dos alvos. Na sua biblioteca, foram apreendidos, além de volumes de Caio Prado Júnior e Josué de Castro, uma obra intitulada Favelas no Distrito Federal, de José Alípio Goulart.
Não a conheço, mas vejo que se trata de um número de uma série de estudos publicado pelo Ministério da Agricultura em 1957. Por que seria subversivo? Já escrevi que a sensibilidade policial para livros era muito peculiar: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxiii-descartes.html
Páginas adiante, temos a explicação. A escola adotava o método de "estudo do meio", o que levava os alunos, com alguma frequência, a "favelas e lugares de maior pobreza".
A escolha desses ambientes, sem que em contrapartida fossem apresentadas as áreas de progresso social e o esforço que se vem realizando após a Revolução Democrática de 1964 para reduzir os desníveis sociais e possibilitar a ascenção [sic] das classes menos favorecidas, por certo poderia criar na mente dos adolescentes dúvidas e indagações que em sua imaturidade ainda não podiam compreender. Pelos dados colhidos, havia predominância de escolha, ao que tudo indica intencional, de ambientes que realçassem as chagas sociais, pondo em destaque as favelas das periferias dos grandes centros urbanos [...]
Eis como o ensino podia ser considerado subversivo apenas por estar vinculado à realidade social! Veja-se também que a educação só poderia ser tolerada se servisse como propaganda para o governo (apresentação do "progresso social"), o que foi o propósito da criação de disciplinas como educação moral e cívica.
Apresentei alguns documentos que mostravam a vigilância sobre os movimentos sociais de moradia. Neste blogue, tendo em vista que escrevi uma ou outra nota sobre a presença de policiais infiltrados nos movimentos (como esta: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxii-os.html), decidi incluir uma informação, também presente no APESP, de policial não identificado ao Delegado Adjunto à Delegacia de Sindicatos e Associações de Classes, do DEOPS.

Os movimentos de moradores de loteamentos, que enfrentavam a insegurança jurídica causada pelas empresas que vendiam lotes e deixavam de implementar a infraestrutura urbana, deixando os adquirentes dos lotes completamente desassistidos. A lei federal n. 6766 de 1979 foi criada em razão dessa grave questão social, principalmente nas periferias da cidade, delimitando as obrigações dos loteadores e criminalizando a realização de loteamentos clandestinos.
Mesmo após a lei, naturalmente, o problema continuava. Em São Paulo, entre os que auxiliavam esses movimentos, estavam políticos como Irma Passoni e Marco Aurélio Ribeiro, deputados estaduais pelo PT, e Antônio Rezk, então no PMDB, membros da Igreja Católica e os Departamentos Jurídicos dos centros acadêmicos de direitos da PUC e da USP.
Os moradores, em regra, cobravam fiscalização da prefeitura sobre os loteadores, bem como a implantação da infraestrutura urbana.

Informamos que por Determinação Verbal Vossa Senhoria, nos dirigimos ao Gabinete do Sr. Prefeito de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, onde estava começando uma concentração popular (Dos Movimentos de Moradores de Loteamentos Clandestinos), chegando lá entramos em contato com o Major Couto, Chefe de Segurança do Gabinete, que nos informou que o seu pessoal estava à paisana e infiltrado no meio do Pessoal.
Não há data, mas provavelmente - pelos outros documentos, a confusão ocorreu em 1980 (se alguém me informar, agradeço), no governo do prefeito Reynaldo de Barros, indicado pelo governador eleito indiretamente, Paulo Maluf (as capitais ainda não tinham o direito de eleger seus próprios prefeitos). Francisco Nieto Martins, outro político da esfera malufista, era secretário municipal.
A prática de infiltração de policiais pelo governo de Maluf já era denunciada na época, podemos ver neste documento do arquivo Ana Lagoa: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R03687.pdf ("Maluf tem amigos violentos. Alguns usam soco-inglês", reportagem de Nunzio Briguglio para a Isto É em 2 julho de 1980), que revela o uso de soco inglês contra os manifestantes que vaiavam o impopular governador. Leiam que o então deputado estadual João Leite Neto, do PMDB, afirmou ter fotos que mostravam a participação de policiais e de funcionários das regionais (submetidos a Francisco Nieto Martins) no espancamento de participantes de passeata de protesto contra o governador.
É uma pena que dificilmente a Comissão Estadual da Verdade conseguirá ouvir Maluf, que talvez tenha uma memória melhor do que a do ex-ministro da Fazenda de Médici. Ele talvez pudesse dar pistas que esclarecessem casos do terror de direita do início dos anos 1980, inclusive os que Dalmo Dallari sofreu: http://almanaque.folha.uol.com.br/manchetes.htm
Da prática da infiltração de policiais, parte usual do método de criminalização de movimentos sociais, temos certeza.

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