O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXVI: Goulart, a lei de Anistia e D. L. Rosenfield


Um professor de filosofia da UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield, publicou no último 16 de dezembro mais um texto na linha negacionista em relação à ditadura militar, "A narrativa e os esqueletos", no prestigioso espaço da página A2 de O Estado de S.Paulo. O insigne texto é um maravilhoso exemplo da razão por que certa direita brasileira precisa defender pontos de vista intelectualmente rasteiros: ela tem que ser contrária à pesquisa e ao saber para manter em pé seus pressupostos equivocados.
No caso, trata-se do negacionismo, que precisa ser contrário ao conhecimento histórico para que sejam mantidas suas versões edulcoradas do golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu.
A primeira frase é lapidar: "Revolver tumbas e mexer com esqueletos são formas de manipulação de algo putrefato que exibem um tipo de prazer mórbido." É possível que Rosenfield compare, futuramente, a arqueologia com algum tipo de perversão sexual; no presente momento, irritado com a recente exumação dos restos mortais de João Goulart para verificar se ele foi morto por envenenamento, o professor de filosofia bastou-se em condenar não só exumações, mas a reescrita da história: "A História é constituída por fatos que não podem ser reescritos, embora, evidentemente, possam servir de aprendizado para as futuras gerações [...]".
No entanto, muito pelo contrário, a história é exatamente esta reescrita incessante, para a qual a exumação, inclusive de esqueletos, é necessária: trata-se exatamente do trabalho de pesquisa, sem o qual se compromete o que ele chamou de "aprendizado para as futuras gerações". Em um livro que reúne entrevistas que Benjamin Stora deu a Thierry Leclère, La guerre des mémoires: La France face à son passé colonial (Éditions de l'Aube, 2008), o historiador responde desta forma a autores que desejam esconder a violência francesa na Argélia: "[..] o trabalho do historiador consiste precisamente em 'desenterrar os cadáveres'! Senão, não se faz mais história, ou então apenas hagiográfica, incensando um passado maravilhoso. [...] Por que não teríamos, ao mesmo tempo, o direito de comemorar e de 'desenterrar'?".
Rosenfield, atacou, pois, a própria possibilidade de pesquisa histórica, o que, se pode ser conveniente para o poder, não deixa de ser obscurantista para o conhecimento. Em seguida, passou, coerentemente, a uma série de afirmações que podem ser desmentidas pela pesquisa do período, já feitas ou, neste caso, a realizar: "Nada indica, segundo depoimentos de seus próximos, que o ex-presidente tenha sido envenenado."
Nada? Próximos? Muito pelo contrário! Em relação aos próximos, o professor de filosofia descarta ao menos a maior parte da família; vejam, por exemplo, o filho João Vicente:  http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2013/05/04/interna_politica,437551/joao-goulart-pode-ter-sido-envenenado.shtml (ou o neto, Christopher, com que discuti nesta matéria da EBC: http://www.youtube.com/watch?v=wYV71JH_X_c).
Não esqueçamos, ademais, de que João Vicente preside o Instituto Presidente João Goulart, que apoiou a exumação: "O que se nega um dia se manifesta anos após como vitória." (http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=9964). Conta o senador Pedro Simon que pedido de "autópsia", em 1976, foi negado pelo Exército: http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=9993&back=1.
As denúncias do ex-agente uruguaio, Mário Neira Barreira, de que Goulart foi envenenado, motivaram, em 2008, a família do ex-presidente a solicitar ao Ministério Público Federal a investigação do caso. Moniz Bandeira escreveu duvidando das afirmações de Barreira e do envenenamento: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-memoria-de-jango-esta-sendo-dilapidada-5675.html. No entanto, pelo que já se descobriu da Operação Condor (que talvez seja o "nada" a que se refere o professor de filosofia), e pela importância do caso, a investigação não pode ser evitada; é necessário buscar as provas. Talvez algumas delas possam ser encontradas nos restos mortais do presidente deposto.
Pode ser que João Goulart não tenha sido assassinado; mas Rosenfield não está preocupado em discutir o assunto, e sim em negar a possibilidade de investigação da morte de um ex-presidente da república que morreu em condições suspeitas no exílio. Trata-se, portanto, de uma posição que é contrária à recuperação da verdade e da memória, e que, por esse motivo, mostra-se adversa também à democracia no país.
O texto de Rosenfield é indigno do debate atual sobre a justiça de transição (expressão significativamente silenciada pelo professor de filosofia) e, talvez por isso, tenha sido publicado em posição de destaque. No entanto, comento mais um ponto: a grande preocupação do autor é que as movimentações ligadas à exumação levem a mudanças nesta lei: "Nunca é demais lembrar que a Lei da Anistia foi instrumento central de todo esse processo, tendo como protagonistas a oposição liberal e democrática, encarnada por figuras notáveis como Ulysses Guimarães, Paulo Brossard [...]; os dissidentes da Arena [...]; e os militares democráticos [...]".

Mas não, o MDB não foi protagonista desta Lei de Anistia. Como se sabe, tratou-se de um projeto do governo, encaminhado pelo ex-chefe do SNI e então presidente da república, João Figueiredo, em junho de 1979 ao Congresso Nacional.
Muitos, até eu mesmo, já escrevemos sobre isto, mas, como certa imprensa se incumbe de ignorar e desdizer o que a academia pesquisa (às vezes por meio de professores universitários, o que é mais constrangedor ainda), volto a repetir: o projeto governamental não atendia ao que o partido de oposição queria, tampouco aos movimentos sociais que reivindicavam a anistia.

No tocante ao MDB, reitero que um dos substitutivos apresentados ao projeto governamental, assinado por Ulysses Guimarães, Paulo Brossard (citados por Rosenfield, mas, na prática, apagados pela referência historicamente errônea) e Freitas Nobre. Eles representaram "decisão unânime das Bancadas do Movimento Democrático Brasileiro no Senado e na Câmara dos Deputados".
Ao lado, reproduzo todo este projeto, publicado no primeiro volume de Anistia (Brasília: Congresso Nacional - Comissão Mista sobre Anistia, 1982, 2 volumes).



Entre as grandes diferenças entre o substitutivo e o projeto do governo estava a exclusão dos benefícios da anistia, para aqueles políticos do MDB, "os atos de sevícia ou de tortura, de que tenham ou não resultado morte, praticados contra presos políticos", de acordo com o parágrafo segundo do artigo primeiro.
Essa previsão não poderiam autorizar o que o governo pretendia com aquele projeto, como considerar que os estupros cometidos pelos agentes da repressão fossem considerados "conexos" aos crimes políticos (embora juristas como estes defendam, ainda hoje, que o estupro seja considerado crime político, na contramão do direito internacional e da dignidade humana).

E não poderia fundamentar a exclusão dos chamados "terroristas", prevista no parágrafo segundo do artigo primeiro da lei aprovada, que Figueiredo assim justificou na mensagem ao Congresso Nacional: "Não é abrangido quem foi condenado pela Justiça por crime que não é estritamente político: assim o terrorista, pois ele não se volta contra o Governo, o regime, ou mesmo contra o Estado. Sua ação é contra a humanidade, repelida pela comunidade universal, que sanciona, como indispensáveis, leis repressivas de que se valem países da mais alta formação democrática."
A cínica referência à "comunidade universal" só poderia ser feita, realmente, no contexto de "leis repressivas". A invocação do direito internacional dos direitos humanos era oficialmente rechaçada como interferência na soberania nacional...
Destaco ainda a previsão do artigo 15 de que caberia à Polícia Federal investigar os desaparecimentos forçados; ela teria condições institucionais e políticas para investigar os crimes das Forças Armadas? Era provável que não, mas a instituição dessa obrigação do Estado, ausente na lei enfim aprovada, teria sido positiva. Por fim, coube aos familiares o ônus da prova para obter as indenizações a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, mesmo sem investigações de tais crimes do Estado brasileiro.
O substitutivo foi derrotado, bem como diversas emendas, inclusive de membros da ARENA, que melhorariam a proposta oficial; Pedro Simon, em 16 de agosto de 1979, afirmou que "o derrotado não foi o MDB, o vitorioso não foi o partido oficial; nem moralmente vitorioso foi o foi o MDB nem moralmente o derrotado foi o partido oficial, foi o Congresso Nacional." Qual teria sido a "humilhação" do Poder Legislativo?  Esta: "toda a Nação sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui.  E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui." O Ministro era Petrônio Portela.
Rosenfield insiste que a "esquerda radical" foi derrotada nesse processo; ele está certo nisso. Mas a derrota não foi só dela e de seus projetos, mas também daquela outra esquerda.
Um amigo meu, o jurista Murilo Duarte Costa Corrêa, havia escrito sobre investida anterior de Rosenfield contra a CNV, "Dénies L'horreur, Rosenfield" (http://murilocorrea.blogspot.com.br/2012_03_18_archive.html), de que cito esta passagem:
Ao mesmo tempo, a insistência em imprimir à Comissão da Verdade uma lógica privatista por meio da qual Rosenfield quer nos fazer confundir a necessidade internacionalmente reconhecida de os governos pós-autoritários assumirem sua responsabilidade diante de graves violações de Direitos Humanos com a impolida e odiosa qualidade apolítica de um mero “acerto de contas”, uma “cobrança feita no portão de casa”, despida de qualquer formalidade ou rigidez institucional, assume estrategicamente a tarefa de obliterar o campo de discussão pública que uma Comissão da Verdade tem por ofício reabrir aos cidadãos.
Rosenfield não quer dar a ver que as perguntas sobre o passado só nos vingam da atual impossibilidade de interpretar o passado – porque ter o poder de interpretar o passado significa arriscar apoderarmo-nos do futuro; por isso, elogia a restrição às fontes que podem sugerir as reinterpretações, restituições e reapropriações dos discursos produzidos no período ditatorial. Isso que Rosenfield chama vingança, acerto de contas, revanche, assinala que o comum pode ser, uma vez mais, posto em jogo.

Creio que Murilo acerta bem no alvo quando afirma que Rosenfield queria, no fundo, interditar o debate público, negando, até mesmo, que a questão fosse pública.
Entendo da mesma forma a referência, no parágrafo final do texto publicado no último dia 16, à criação de "mortos vivos", que alegadamente estaria sendo feita com as recentes investigações das mortes de João Goulart e de Juscelino Kubitschek. Na verdade, trata-se de matá-los novamente, impedindo que reapareçam no debate público e suscitem reivindicações de justiça.
Desenterro, agora, notícia do Maria Quitéria: Boletim do Movimento Feminino pela Anistia, ano 1, n. 2, de junho de 1977, que li no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
A foto reproduzida mostra o caixão de João Goulart coberto pela faixa da anistia, que havia sido levada pela militante do movimento Milla Calduro. Escreve-se que, nessa ocasião, "Muitos gritos eram em defesa também dos direitos humanos, da anistia."
É honroso para o ex-presidente que sobre este corpo ainda se possam fazer tais reivindicações, mas com uma diferença: hoje, a faixa, diante do fracasso em 1979 dos projetos da oposição, demandaria a revisão da anistia, da lei n. 6683; tal seria a exigência compatível, atualmente, com os direitos humanos.

P.S.: Elio Gaspari não acredita no envenenamento e compara o agente uruguaio com Virgínia Lane: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/144287-a-sindrome-de-virginia-lane.shtml
O que ele diz sobre a morte de Rubens Paiva ("revelação espetacular"), no entanto, não faz muito sentido. Vejam o que Marcelo Rubens Paiva afirma: "Sabemos há mais de quarenta anos que ele não saiu vivo do DOI-Codi do Rio." http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,e-quem-era-o-comandante-questiona-marcelo-rubens-paiva,994415,0.htm

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