O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

As ditaduras na Argentina, no Brasil e no Chile segundo Jerry Dávila

Esta nota foi escrita para integrar a VIII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, em curso até 13 de dezembro, dia dos 45 anos do AI-5.

Jerry Dávila escreveu um livro valioso sobre o racismo no Brasil, publicado aqui pela Unesp: Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-1945. Por isso, me interessei quando vi que ele lançou, neste ano, Dictatorship in South America (Willey-Blackwell).  No entanto, é um livro que acrescenta pouco a quem estuda o assunto. Trata-se de uma obra de divulgação que provavelmente será bastante útil ao público dos EUA.
Apesar do título, o livro trata apenas de três países, cada um com dois capítulos: Brasil, Argentina, Chile. Enquanto o primeiro dedicado a cada país concentra-se nos antecedentes do golpe, o segundo chega à democratização. O Brasil abre a primeira série, pois sua ditadura militar precede as últimas ditaduras dos outros países, e a Argentina abre a segunda, também pelo fato de o colapso do regime autoritário lá ter acontecido antes.
O livro tem méritos como a avaliação da política externa do EUA, contrária à democracia no continente, e dos efeitos nefastos contra os direitos humanos produzidos pela Escola de Chicago. É curiosa a verificação dos traços comuns entre essa Escola e Che Guevara, inclusive no tocante aos preconceitos de gênero.
Dávila dá o destaque devido ao Ato Institucional n. 5, tema da VIII Blogagem Coletiva:
O AI-5 fechou o Congresso, deu ao regime autoridade sobre os governos estaduais e municipais e eliminou o habeas-corpus, permitindo à polícia e às Forças Armadas prender civis sem acusação. Depois do AI-5, o regime decretou uma Lei de Segurança Nacional mais dura. A nova lei ampliou a lista de crimes sujeitos a tribunais militares, aumentou as sentenças e introduziu a pena de morte para muitos delitos. Sujeitou a mídia à censura e proibiu reuniões políticas, greves e manifestações. Atos não violentos como criticar publicamente o regime ou falar favoravelmente de um grupo banido de oposição poderiam levar à prisão. (p. 39)

Ele está bem certo em dizer "decretou uma Lei" porque, como a anterior, a legislação de segurança nacional foi aprovada por decreto-lei.
Há alguns problemas, no entanto. Em relação ao Brasil, os números são dolorosamente desatualizados: fala-se apenas do reconhecimento oficial de 356 mortos pelo regime. Somente considerando os índios Waimiri-Kaiowá, o número é provavelmente cinco vezes maior. Ademais, podem-se apontar outras impropriedades:
  • O autor desconhece que as mulheres, no Brasil, já tinham reconhecimento constitucional do direito de voto em 1934, não apenas em 1946, e até já o tinham exercido antes da Constituição de 1934.
  • O primeiro Ato Institucional não foi numerado - não havia um plano de que ele fosse o primeiro de uma série, mais um fator que mostra que o "sentido" da ditadura foi sendo feito ao longo do processo e foi objeto de disputas, também entre os militares.
  • A ALN não deveria ser caracterizada como o "braço armado" do PCB; pena que ele não leu a biografia de Marighella escrita por Mário Magalhães (acho que não o fez, pelo que vemos da lista de fontes em português).
  • Manoel Fiel Filho, neste livro, não tem nome nem afiliação política (é referido simplesmente como "metalworker detained"), bem ao contrário de Herzog.
  • Dávila vê um sinal do sucesso de Geisel em retomar sua autoridade contra a linha dura no fracasso do atentado ao Riocentro em 1981, que, porém, ocorreu na presidência de Figueiredo.
  • A Constituição de 1988 não definiu o "código do trabalho"; a CLT é de 1943.

Mais adiante, no capítulo 5, "Argentina: The Terrorist State", lemos que a Junta adotava uma teoria segundo a qual
[...] o Comunismo Internacional, liderado pela União Soviética, estava usando novos e radicais meios para derrubar as sociedades livres e impor o marxismo. Segundo essa teoria, revolucionários armados não eram a única - ou mesmo a principal - ameaça. A ameaça real era cultural ou, mais precisamente, contracultural. A ameaça incluía músicos de rock e seus fãs, jovens com cabelo comprido (a cultura jovem em geral), bem como profissionais como jornalistas e psiquiatras, que ostensivamente ameaçavam os pilares da sociedade ocidental. Qualquer um que lutasse pela justiça social - os direitos das mulheres, minorias, trabalhadores sem terra etc. - era um subversivo. (p. 116)

Essa teoria possui um nome, embora não apresentado pelo autor, e de forma alguma se restringe à Argentina (conquanto a hostilidade à psicanálise seja algo bem próprio da ditadura desse país): a doutrina de segurança nacional. A falta da análise dessa teoria é uma fraqueza do livro. Outro problema é o esquecimento da OEA, estranho ao tratar de países da América Latina.
No final, Dávila resolve tratar da justiça de transição no século XXI e erra ao homogeneizar os países: "Cada país se livrou gradualmente dos vestígios do regime militar. [...] Ao mesmo tempo, os países examinaram mais atentamente as Forças Armadas pelas ações passadas, como Nestor Kirchner fez ao revogar as leis Obediencia Debida e Punto Final. O congresso brasileiro estabeleceu uma comissão da verdade que começou seus trabalhos em 2012." (p. 184).
É embaraçoso até citar na mesma linha a Argentina e o Brasil nesse assunto. Apenas duas das diferenças:  a Argentina criou sua comissão décadas antes, já no governo Alfonsín. E não, o Brasil não revogou sua lei da anistia...
Entre os erros de ortografia do livro, mais frequentes nas palavras em espanhol e em português, há um curioso: "Diretas Já" virou "Direitas Já". Uma vez que o movimento fracassou e, da eleição indireta que se seguiu, Sarney acabou sendo o resultado, talvez este erro tivesse sido mais apropriado: "Direitas ainda"...


Aproveito e listo os outros blogues que já responderam à chamada da VIII Blogagem Coletiva (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/12/05/convocacao-para-a-viii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/), reproduzida no Pimenta com limão, de Niara de Oliveira (http://pimentacomlimao.wordpress.com/2013/12/09/8a-blogagem-coletiva-desarquivandobr/):


Lembro também de matéria de Global Voices, escrita por Paula Góes, sobre a Blogagem: http://pt.globalvoicesonline.org/2013/12/10/blogagem-coletiva-desarquivandobr-marca-aniversario-do-ai-5/






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