O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Desarquivando o Brasil XCV: Lançamento de "Infância roubada", da CEV "Rubens Paiva"

Nesta quarta, 5 de novembro de 2014, será lançado Infância roubada, terceiro livro da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (CEV) "Rubens Paiva". Ele será distribuído gratuitamente no evento, que ocorrerá na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, a partir das 19 horas. Mais detalhes sobre o lançamento podem ser obtidos na página da Comissão
A obra, de 316 páginas e com farta iconografia, nasceu do ciclo de audiências "Verdade e infância roubada", realizado em maio de 2013. As audiências podem ser vistas na internet no canal da Comissão: https://www.youtube.com/watch?v=N5pHlS_bzjg
[Adendo de 28 de novembro: o livro todo está agora disponível na internet, também gratuitamente, em três partes:
http://www.comissaodaverdadesp.org.br/upload/files/documentos/InfanciaRoubada_1%C2%AAPARTE.pdf
http://www.comissaodaverdadesp.org.br/upload/files/documentos/InfanciaRoubada_2%C2%AAPARTE.pdf
http://www.comissaodaverdadesp.org.br/upload/files/documentos/InfanciaRoubada_3%C2%AAPARTE.pdf

Ou em um arquivo único: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf ]
O livro reúne muitos dos casos significativos de São Paulo, mas não pretende ser exaustivo. Na apresentação do presidente da Comissão, o deputado estadual Adriano Diogo relata as dificuldades de realizar o ciclo:
Durante esse ciclo de audiências públicas, nem todos os convidados conseguiram aparecer. Às vezes, chegaram a confirmar, mas não apareceram. Alguns vieram, mas tiveram dificuldade de falar sobre o assunto. Assim, na obra, há, também, outros testemunhos, colhidos por escrito ou por meio de entrevistas. O livro conta também com dezenas de fotografias da época que ilustram todos os testemunhos. São imagens obtidas por meio de extensa pesquisa iconográfica em arquivos pessoais, familiares, internet e acervos públicos.
Trata-se de assuntos dolorosamente íntimos, que adquirem um estatuto público e político porque essas dores foram originadas pela violência do Estado, pela repressão política. Além do silêncio decorrente das dificuldades de ordem psicológica e familiar para tratar dessas dores, há um silenciamento histórico e político sobre o tema. A ditadura quis ocultar suas violências e passar a imagem de que foi "branda"; uma dessas categorias de violência foi a  praticada contra essas crianças, na maioria filhas de militantes políticos. Essas violações de direitos humanos não ocorreram apenas nas outras ditaduras da América do Sul.
Este livro, pois, é uma contribuição valiosa para a construção social da memória e da justiça de transição, por buscar superar estes dois tipos de silenciamento, o privado e o público.
Maria Amélia Teles (que está na CEV "Rubens Paiva" e cuja família é uma das incluídas no livro), na introdução, analisa as diversas violações de direitos humanos cometidas, sob o prisma da teoria de gênero. Destaco alguns inícios de parágrafo, que introduzem os casos do livro:

Crianças também nasceram em cativeiro. [...]

Algumas crianças puderam ir com suas mães para exílio, mas houve aquelas cujas mães partiram sozinhas sem que seus filhos pudesse ir por questões econômicas ou de segurança. [...]

Outras crianças nunca conheceram os pais [...]

O absurdo da ditadura produziu, ainda, o absurdo de prender e banir crianças, fichando-as como subversivas, considerando-as "perigosas à segurança nacional". Elas cresceram e se formaram fora do país. [...]

Não apenas adultos, mas também crianças foram sequestradas e ficaram nas dependências dos centros de tortura onde seus pais e outros presos eram torturados e seviciados. [...]

Houve crianças que foram torturadas para forçar seus pais a denunciarem outros companheiros. [...]

Pais foram assassinados diante de suas crianças [...]

Houve crianças cujas mães foram sequestradas por serem esposas de militantes comunistas. [...]
Muitas das crianças aqui tratadas se tornaram adultos atormentados, vítimas de um sofrimento mental permanente, devido à tamanha violência cometida contra eles. Não suportaram e acabaram morrendo. [...]
Uma série de violações aos direitos dessas famílias. No último caso, temos Carlos Alexandre Azevedo, torturado com menos de dois anos de idade, que se suicidou no início de 2013. Seu capítulo foi escrito pela mãe, Darcy Andozia.
Houve menores que foram capturados e presos como se adultos fossem, como Ivan Akselrud de Seixas (um dos coordenadores da Comissão "Rubens Paiva"), detido aos 16 anos pelo DOI-CODI de São Paulo com o pai, Joaquim Alencar de Seixas, que foi torturado e assassinado; a mãe e as irmãs também foram presas.
Lembremos que o preso de consciência escolhido pela Anistia Internacional em 1975 foi justamente o de um adolescente brasileiro preso aos 17 anos na Bahia e processado, inconstitucionalmente, pela Justiça Militar, o carioca César Benjamin - este caso, porém, fugia da competência da Comissão de São Paulo e não entrou no livro.
Sobre a ilegalidade fundamental dos procedimentos da Justiça Militar, há diversos testemunhos. Destaco nesta nota o de Ariston Oliveira Lucena, falecido em 2013, dias depois do depoimento que está no livro. Ele e seus pais, Antônio Raymundo de Lucena e Damaris Oliveira Lucena, eram da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O pai foi executado em 1970 diante da esposa e dos filhos (menos de Ariston, que estava no Vale do Ribeira com Lamarca; ele acabaria preso no mesmo ano). Ele e a mãe foram torturados. Sua mãe acabou sendo banida, e foi para Cuba com os três filhos menores, enquanto ele, que chegou a ser condenado à morte, mas teve a pena comutada, ficou preso até 1979.
Nesta passagem, vemos como aquela Justiça funcionava à maneira de um prolongamento dos órgãos de repressão, tortura e execução:
Certo dia, apareceu um homem me inquirindo. Disse-me que se fosse à auditoria para a audiência e se confessasse o que eu estava passando na Operação Bandeirante, pagaria as consequências. Eu disse que faria isso mesmo. Ele me ameaçou dizendo que eu iria ver "o que era bom". Qual não foi minha surpresa, quando fui prestar depoimento na auditoria. O referido senhor que havia me insultado era o procurador da Justiça Militar, sr. Durval Ayrton Moura Araújo, que funcionou como acusador dos militantes.
O fundamental Brasil: Nunca mais possui um capítulo sobre "Tortura em crianças, mulheres e gestantes", que é um dos principais assuntos de Infância roubada. Este livro novo, porém, expande em muito a visão sobre essa categoria de violência da ditadura militar.

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