O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Da nostalgia da ditadura à defesa da tortura, reações ao relatório da CNV

É curioso ver como alguns veículos de imprensa reagiram ao relatório da Comissão Nacional da Verdade, apesar de não o terem lido inteiramente. Digo isso não por duvidar da conhecida capacidade dos jornalistas de lerem milhares de páginas por dia, mas simplesmente pelo fato de o documento ainda não estar pronto, em razão do volume três, sobre mortos e desaparecidos, que ainda não chegou à forma final.
Enquanto o Estado de S. Paulo, no último domingo, teve José Luiz del Roio, Kenneth Serbin e Marcelo Rubens Paiva, a Folha, menos inspirada, publicou entrevista com Lobão e mais um texto de Hélio Schwartsman defendendo a tortura; Clóvis Rossi escreveu, no mesmo dia, contra esse crime, mas outros colunistas desse jornal defendem esse crime contra a humanidade:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/jornalismo-versus-filosofia-torturando.html
No volume II do Relatório, mais especificamente no capítulo oito, "Civis que colaboraram com a  ditadura", temos um pouco da colaboração dos meios de comunicação com o golpe de 1964 e a ditadura militar. Na página 317, conta-se rapidamente o acordo inconstitucional de Roberto Marinho com a Time-Life, mantido com a bênção da ditadura e de Roberto Campos (na verdade, a avaliação que se faz sobre a política editorial desse jornal tem menos nuances do que esta outra nota).
Sobre a Folha, reafirma-se que "a pesquisadora Beatriz Kushnir constatou a presença ativa do Grupo Folha no apoio à Oban, seja no apoio editorial explícito no noticiário do jornal Folha da Tarde, seja no uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime." (p. 320).
Este capítulo decepciona por ter mais sistematização de (parte das) informações conhecidas do que descobertas. No entanto, ele foi suficiente, bem como a lista de 377 autores de graves violações de direitos humanos, para incomodar os agentes golpistas de 1964 e seus sucessores.
A maior parte dos argumentos contra o relatório da CNV reproduz a "teoria dos dois demônios", que a CNV não adotou, apesar da opinião do comissionário que foi ex-ministro interino do governo Sarney, José Paulo Cavalcanti. Com idêntica inspiração, Ives Gandra da Silva Martins publicou no Estado de S. Paulo chamando-a de Comissão da Meia Verdade; de forma semelhante, um dos editoriais do jornal desqualificou Rosa Cardoso por ter sido advogada de Dilma Rousseff, e Maria Rita Kehl (sem citar-lhes os nomes - muito menos mencionar que Kehl foi colunista demitida do jornal) por ser "militante" do PT; Noblat, do Globo, no seu blogue, cometeu uma série de erros jurídicos sobre a lei de anistia, culminando a série de despropósitos jornalísticos ao dizer que a CNV defendeu uma "aplicação unilateral da lei".
Esse jornalismo interessado na ditadura e desinteressado na verdade parece esquecer que:
a) Esses guerrilheiros da esquerda, cuja história agora é recordada, mas apenas como pretexto para esquecer a dos carrascos da ditadura, já foram quase todos ou julgados e condenados (ao contrário dos agentes da repressão), ou executados ilegalmente, sem chance de julgamento - ao contrário do que se deseja fazer com aqueles agentes; por algum motivo que me escapa (força do hábito?), eles e seus advogados na imprensa confundem justiça com execuções forçadas;
b) Aqueles guerrilheiros nunca tiveram em seu ethos a prática de crimes contra a humanidade como o genocídio, a tortura e o estupro - esses crimes, que não são anistiáveis segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, eram a própria base prática da ditadura militar, um regime incompatível com a dignidade humana, e nunca foram adotadas pela esquerda clandestina armada no Brasil;
c) É necessário ir além da supension of disbelief, e chegar à suspensão de atividade cerebral, para não ver a falsa simetria entre as Forças Armadas e aqueles guerrilheiros - ponto de texto de Mário Magalhães sobre o último manifesto dos Clubes Militares; se muitos daqueles guerrilheiros não se enquadram apenas como resistentes, mas eram revolucionários, deve-se lembrar que não foram eles que derem o golpe, e o pretexto de 1964 - a iminência de uma revolução socialista - era falsíssimo, como a própria falta de resistência ao primeiro de abril demonstrou;
d) É de grande desonestidade intelectual o "debate" que parte do esquecimento de que a ditadura militar atingiu milhares de opositores (desde o ano de 1964), até mesmo anticomunistas, como Carlos Lacerda (cassado em 1968), matou até os que nada tinham de guerrilheiros (Rubens Paiva é um dos exemplos) e fez milhares de vítimas fatais, contando índios, que nunca penduraram em lugar algum da floresta um pôster de Che Guevara...
e) Ademais, como lembra Carlos Fico, há uma infinidade de vítimas anônimas da ditadura, por delações, prisões injustas, e até mesmo da censura (por exemplo, as vítimas da epidemia de meningite que o governo federal não deixou noticiar), e a CNV apenas arranhou a superfície dessas histórias.

O Relatório parcial da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva" responde bem às objeções inspiradas na teoria dos dois demônios, embora, em geral, não revelem seu marco teórico: 

Deve-se notar que existiu, no começo dos trabalhos e nos debates públicos, uma visão equivocada que postulava a existência de "dois lados" em confronto entre si na época da ditadura, ambos com certa legitimidade histórica para suas ações, mas com excessos de parte a parte que seriam condenáveis.[...]

No entanto, essa leitura política da história, conhecida como “teoria dos dois demônios” foi afastada diante do mandato legal das Comissões da Verdade em apurar as graves violações de direitos humanos de maneira massiva e sistemática, que foram praticadas, durante o regime autoritário brasileiro, somente pelo Estado ditatorial.

A tortura e os desaparecimentos forçados, parte essencial dos procedimentos de repressão política, nunca integraram o repertório de ação dos opositores e grupos da esquerda que se opuseram à ditadura, tampouco foram adotadas pelos guerrilheiros. Ademais, se esses opositores foram, em regra, punidos, e punidos ilegalmente, uma vez que a tortura, as execuções sumárias e os desaparecimentos forçados nunca foram formalmente legalizados pelo regime, os agentes da repressão, por seu turno, nunca sofreram condenações criminais.

A certeza da impunidade desses agentes era tão grande que as ações terroristas, sejam cometidas por militares, sejam por eles acobertadas (uma vez que nenhuma delas foi realmente apurada pela ditadura) não se interromperam com a Lei de Anistia. O início dos anos 1980 foi marcado por diversos atentados: a bancas de jornal, a periódicos de esquerda, a advogados, à OAB (culminando na carta bomba que matou a secretária Lyda Monteiro da Silva em 1980) e outras organizações.

Podemos lembrar de dois casos em que militares pretendiam matar milhares e atribuir a culpa à esquerda. O mal-sucedido atentado ao Riocentro, em 1981, não apenas não gerou punição alguma ao então capitão Wilson Luiz Chaves Machado, como não impediu sua ascensão na hierarquia militar após a democratização do país. A prática do terror, inerente à doutrina de segurança nacional, continuou a ser protegida pela impunidade.

 O combate ao terror, este sim, foi punido pelos militares, como foi o caso da frustrada explosão do gasômetro do Rio de Janeiro. O brigadeiro João Paulo Burnier planejou usar os militares do Para-Sar no atentado terrorista, que foi abortado em junho de 1968 pela heroica oposição do capitão-do-ar Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho. Com a previsão de cem mil vítimas, a explosão serviria como pretexto para a execução de opositores e a decretação do AI-5. Com base nesse ato institucional (que acabou por ser imposto à nação em dezembro do mesmo ano), o capitão foi reformado compulsoriamente. Em 1992, o Supremo Tribunal Federal decidiu, após longo processo, que ele deveria ser reintegrado como brigadeiro. No entanto, as Forças Armadas não cumpriram a decisão, desrespeitando o estado de direito, e ele morreu em 1994. A promoção só foi assinada postumamente. A oposição ao terror e ao massacre continuava a ser mal vista pelas instituições militares.

O absurdo jurídico e político da teoria dos “dois demônios” pode, portanto, ser verificado na completa assimetria entre, de um lado, os opositores executados, desaparecidos e/ou punidos ilegalmente e, do outro, a impunidade dos agentes da repressão; entre a resistência política e os crimes contra humanidade praticados pela ditadura; e, finalmente, em referência aos dias de hoje, entre o ethos democrático desses antigos opositores à ditadura, dos quais três se tornaram presidentes da república eleitos pelo voto direto popular (esses três foram perseguidos pelo regime: um professor esquerdista, um operário sindicalista e uma guerrilheira de organização clandestina), em oposição à persistência de uma cultura autoritária nas forças de segurança do Estado.

Outro erro comum na imprensa foi afirmar que a CNV recomendou a revisão da lei de anistia. Trata-se de problema de interpretação de texto. Ela não fez isso, e sim recomendou que essa lei fosse interpretada de acordo com os parâmetros vigentes de direitos humanos, ou seja, excluindo os autores de crimes contra a humanidade. Vejam este trecho da segunda das recomendações da Comissão:
15. Por consequência, considerando a extrema gravidade dos crimes contra a humanidade, a jurisprudência internacional endossa a total impossibilidade de lei interna afastar a obrigação jurídica do Estado de investigar, processar, punir e reparar tais crimes, ofendendo normas peremptórias de direitos humanos. A proibição da tortura, das execuções, dos desaparecimentos forçados e da ocultação de cadáveres é absoluta e inderrogável. Na qualidade de preceito de jus cogens, não pode sofrer nenhuma exceção, suspensão ou derrogação: nenhuma circunstância excepcional – seja estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública – poderá ser invocada como justificativa para a prática de tortura, desaparecimento forçado ou homicídio. Prevalece o dever jurídico do Estado de prevenir, processar, punir e reparar os crimes contra a humanidade, de modo a assegurar o direito à justiça e à prestação jurisdicional efetiva. [vol. I, tomo II, p. 966]

Esses crimes se conjugam no passado e no futuro e, por isso, as perguntas nesses dois tempos no cartaz ao lado, que vi no mês passado em São Paulo, na Barão de Itapetininga.
É a mesma ideia da crônica de Antônio Prata, "Dar cabo", talvez o melhor texto, em seu tom despretensioso, da Folha de S. Paulo no último dia 14: "Os anos de chumbo não são águas passadas; continuam a mover nossos moinhos de moer gente."

P.S.: O relatório da CNV foi editado na mesma época do documento do Senado dos Estados Unidos sobre a tortura como política de Estado daquele país. Roger Alford é um dos qualificá-lo como uma "comissão da verdade". A ele se seguirão, de fato, medidas de justiça? Dificilmente, pois a condição política contrária aos direitos humanos - o império - não será questionada pelas instituições daquele país, tampouco pela maioria dos scholars, imagino, que deverão, no máximo, agir como certo filósofo do direito recentemente falecido.
As medidas de justiça a serem tomadas no Brasil dependerão, analogamente, do quanto o país mudou politicamente. No campo das Forças Armadas, aparentemente muito pouco. Elas ficarão a cargo, em especial, do Poder Judiciário, que também já se mostrou recalcitrante a mudanças.

P.S.: Mais um exemplo de colunista da Folha sobre a tortura; não é o Safatle, evidentemente. Em contrapartida, tivemos o Veríssimo no Estado de S. Paulo atacando a teoria dos dois demônios e referindo-se ao relatório sobre torturas do governo do EUA.

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