O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Algo como um poema, a política do possível



discriminado no movimento LGBT
por viver na rua
discriminado no movimento sem-teto
por ser gay

discriminada no movimento indígena
por ser mulher
discriminada no movimento feminista
por ser índia

discriminado entre os escritores
por ser poeta
discriminado entre os poetas
por não ter bolsa
por ler poesia
onde nada se lia

( venha para as faculdades Uniuni
onde você aprenderá que é único
onde só tem gente selecionada
onde todo mundo pensa como você)

discriminado por não ter empatia
com a discriminação
dos que discriminam peças que nunca viram
poemas que nunca lerão

discriminado por ter empatia com a leitura
enquanto a pureza do movimento
vem de nunca ler o diferente

os discriminadores querem a pureza

enquanto negros coletam o lixo
em troca de pão e desabrigo
religiosos de todas as cores
pedem faxina étnica nas ruas

( o café azedou
não podemos nos sentar juntos
porque somos de linhas teóricas diferentes;
com licença que vou dar minha palestra sobre estado de direito)

por ser mulher
discriminada no movimento judaico
discriminada no movimento pró-palestina
discriminada no movimento socialista
por dividir a luta

discriminada à direita
porque combate o assassinato em massa
discriminada à esquerda
porque combate o assassinato em massa
e no centro não há lugar
exceto para cadáveres

( nesta rede social você poderá criar grupos fechados
eliminar gente por palavras-chave
bloquear preventivamente pela cor de olho dos avatares
venha sem medo viver sem fronteiras!)

discriminado na agência governamental de direitos humanos
porque contrário à execução sumária
discriminado na reunião da associação de moradores
porque contrário à tortura de mendigos
discriminado na assembleia de condomínio
porque favorável às leis trabalhistas
e discriminado fora das reuniões
pois sua cadeira de rodas
não cabe nos buracos das ruas

o partido revolucionário
cindiu-se na vanguarda pós-revolucionária neorradical
e na fração neorrevolucionária pós-radical
acusam-se mutuamente de diversionismo
na luta por cargos públicos
pelo posto de poodle da direita
não trocam mais entre si
figurinhas coloridas de lênin

( seu currículo é bom,
não a contratamos por causa de preconceito
mas por simples
aplicação das estatísticas correntes
sobre a sua empregabilidade)

nada mais no horizonte público?
esta é a política do possível:
fazer com que as outras políticas
sejam impossíveis

discriminada no movimento LGBTTT
por ser negra
discriminada no movimento negro
por ser mulher
discriminada no movimento feminista
por ser trans
discriminada no movimento trans
por ser negra
da capo

(– torturada. mas lia os autores errados.
estuprada. mas nunca foi às nossas reuniões.
mutilada. mas não tinha empatia com a causa,
e a empatia, 
filha única do ressentimento,
é a nossa fonte de justiça.

seus pedaços, no esgoto. 
mas pensamos que nela só a morte 
foi um traço comum com a humanidade.

no esgoto, seus pedaços. 
repetimos:
nunca houve discriminação
mas simples
aplicação das estatísticas correntes
sobre sua expectativa de vida)


P.S.: O poema foi publicado em Canção de ninar com fuzis.

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