O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 22 de maio de 2018

Universos paralelos da educação XIII: A censura judicial contra o curso sobre o golpe de 2016 na UEMS

O professor Luis Felipe Miguel, da UnB, criou em fevereiro de 2018 um curso sobre o "O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil", uma disciplina optativa aberta para todos os cursos, aprovada pelo órgão competente da Universidade.
Talvez sem perceber que estava a dar ainda mais argumentos para os que chamam de golpista, o governo Temer anunciou que processaria os responsáveis pelo curso por improbidade administrativa.
Em reação a esta escandalosa iniciativa de violação da autonomia universitária, prevista pelo artigo 207 da Constituição de 1988, o ex-reitor da UnB decidiu denunciar o titular do ministério da educação (o ministro, Mendonça Filho, que é assessorado intelectualmente por Alexandre Frota, um ex-ator cujo breve currículo acadêmico inclui ter dito que havia se matriculado na Anhembi Morumbi, em um curso de graduação que não existia) ao Comitê de Ética da Presidência.
Apesar da decisão do governo de paralisar por inanição a pesquisa no país, as universidades públicas no Brasil ainda não estão mortas e várias replicaram o curso, a começar, se não me engano, pela Unicamp, na categoria de curso livre no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), foi criado por iniciativa do professor Alessandro Martins Prado, na categoria de curso de extensão. Não se trata de atividade obrigatória, o que enfraquece, de antemão, argumentos de que se trata de mera "doutrinação". Como nas outras instituições, não se trata de matéria obrigatória de algum curso de graduação ou de pós-graduação.
Vejam o vídeo do professor Martins Prado, aberto com a análise do jurista Dalmo Dallari: https://t.co/60QSfo7uSB

Semana passada, na quinta-feira, o curso foi suspenso judicialmente, por decisão do juiz Plácido de Souza Neto.
Trata-se de uma ação popular que foi proposta por um filiado do PSDB (João Henrique Miranda Soares Catan) que não conseguiu eleger-se vereador em 2016, e se destacou na imprensa local por confundir uma pomba com o Espírito Santo.
O pedido do advogado, míope teológico e político tucano recebeu um parecer favorável do Ministério Público Estadual, e foi acolhido parcialmente, em decisão liminar, pelo juiz, que suspendeu o curso até a Universidade comprovar que o programa do curso foi alterado, ou que já incluía, "textos e autores" favoráveis à legitimidade da derrubada da presidenta Rousseff, bem como "conteúdo produzido no âmbito dos projetos de pesquisa científica realizados pela UEMS sobre o processo de impedimento da ex-Presidente da República Dilma Rousseff".
No primeiro caso, o juiz afirma tomar como fundamento a defesa da "pluralidade" do ensino (contra a alegada mera reprodução do pensamento do Partido dos Trabalhadores no programa do curso) e, no segundo, a "indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". Em ambos, realiza-se uma interpretação que viola radicalmente o artigo 207 da Constituição.


A crítica de reprodução da posição do PT não faz jus ao programa do curso. E, mesmo que fizesse, não cabe ao juiz decidir sobre isso: ele não tem a competência acadêmica para fazê-lo, tendo em vista o princípio da autonomia universitária, que é tão constitucional quanto os poderes do Judiciário. A Constituição não deu ao Judiciário a competência legal para traçar programas de disciplinas acadêmicas, o que seria manifestamente incompatível com a autonomia didático-científica, mas com a própria existência das instituições de ensino, e um golpe mortal contra a produção de conhecimento.
Ademais, uma decisão dessas abriria o precedente para justificar a proibição de um curso sobre, digamos, inflação, por descuidar do pensamento de Mailson da Nóbrega. Ou um curso sobre direito ambiental suspenso por não prever na bibliografia as obras de Dom Bertrand de Orleans e Bragança.
O parecer do Ministério Público Estadual, assinado por Ronaldo Vieira Francisco, já adotava essa afirmação por meio deste arrazoado:
Ressalva-se que não se está afirmando que os organizadores do Curso bem como os docentes que lá ministraram não poderiam apresentar seus pontos de vista e defendê-los da forma como acreditam ser o mais correto, pois é nisto que reside a liberdade de cátedra. O que não é razoável, no entanto, é a formulação de um curso em um formato que admita somente um ponto de vista, sem viabilizar a apresentação de diferentes posicionamentos acerca do assunto em questão, como deixa expresso, aliás, o art. 206, II, da Constituição da República, ao estabelecer a necessária dialeticidade e amplitude do aprender-saber.
Isto é, estamos censurando, mas, se o fizermos sob o pretexto da diversidade de posicionamentos, poderemos afirma que estamos sendo dialéticos... Esse tipo de sofisma, por sinal, não é raro nas manifestações daquele movimento pela lei da mordaça autointitulado escola "sem partido", acolhido por partidos como o do autor da ação popular contra a UEMS; por exemplo, o PL 867/2015 da Câmara dos Deputados, considerado em 13 de abril de 2017 pelos Relatores Especiais da ONU sobre o Direito à Educação, Kombou Boly Barry, sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, David Kaye, sobre a Liberdade de Religião e Crença, Ahmed Shaheed, como violador da liberdade de expressão.
Embora este ponto, de que o Judiciário passe a determinar conteúdo de cursos, seja, por si só, fatal para as universidades, que, ademais, terão sua inteligência reduzida às capacidades cognitivas daquele poder, a outra fundamentação da decisão talvez seja ainda mais absurda.
A interpretação de que o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão serve para restringir os cursos que possam ser oferecidos por uma universidade vai exatamente na contramão das finalidades do princípio. A exigência de que o curso só possa ser oferecido se tiver como base a produção autóctone da universidade, ou seja, a da endogenia ou do provincianismo alçados a método científico, proibiria que um curso de direito constitucional da UEMS tivesse por bibliografia, por exemplo, Lawrence Tribe, José Afonso da Silva e Marcelo Neves simplesmente porque se trata de professores de outras instituições. As ciências, de acordo com a curiosa lógica judicial, teriam que esperar para ser (re)inventadas por pesquisas da instituição antes de poderem ser nela ensinadas, o que jamais ocorreria, pois sem o ensino os pesquisadores não poderiam ser formados... E não só o princípio constitucional, mas as universidades também rolarão abaixo.
Parece-me claro que a decisão não é realmente compatível com a liberdade e o estado de direito, e se integra àqueles momentos exemplares da cultura antidemocrática do Judiciário brasileiro. Ela é exemplo, no entanto, de outro obscurantismo: a hostilidade da cultura jurídica em relação ao conhecimento acadêmico, que se revela publicamente nas formas como esses profissionais instrumentalizam o conhecimento teórico nas práticas judiciais (gerando momentos como o Marx e Hegel do Ministério Público de são Paulo), ou na produção soi-disant intelectual para o campo jurídico (que apostam na vacuidade teórica em busca do mercado de faculdades de direito, que está numa situação que a OAB está a chamar de estelionato educacional). Além disso, temos as decisões judiciais que contrariam o saber acadêmico (por exemplo, em matéria ambiental), ou que buscam reprimir as atividades acadêmicas. Não deve ter sido por acaso que o "escola" "sem partido" tenha sido fundado por um advogado.

Para quem quiser baixar:
Decisão judicial;
Parecer do MP.

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