O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 17 de junho de 2018

#VaiTerCopa



I

Poucos momentos há
em que a multidão forma um país;

pode acontecer em jogos
(o país é um jogo
como outras delimitações espaciais de casas
a serem conquistadas
pelo azar da força
pela força do azar)

mas da seleção masculina de futebol;

não de outros jogos,
que não desviam tantas contas secretas,
não geram tantos mandados de prisão internacionais,
não compram tantos assentos no parlamento,

ou seja,
não dizem respeito ao caráter do país;

não da seleção feminina,
sem o falo para dançar em volta
os cidadãos perdem motivação,
sem a sombra do falo
o sol queima-os demasiado,
não podendo encostar no falo,
exaustos vergam, caem na terra
e em outros elementos hostis ao país.

De fato
há poucos momentos
em que a multidão forma um país

como nos linchamentos


II

Colocam as cabeças de um lado,
os outros restos dos corpos de outro;

ainda não se equilibram;

talvez uma bola de futebol ali?...

Sim,
agora os pesos equivalem-se,
agora temos a imagem da justiça
aqui em jogo


III

Mais raros ainda os instantes
em que se ouve o hino do país;

praticamente nunca em festividades públicas,
calado pela desafinação militante
ou pelo ritmo dos pulos
executados como se fossem
o vero hino do país.

E se ele for tudo isto mesmo?
O que resta do ruído nas gargantas
depois dos gritos de socorro ou não,
ou que resta de silêncio
nas gargantas estraçalhadas

e todo território do país não passar
do raio atingido pelos gritos?

Não, o hino do país pode ser ouvido
no ruído dos corpos partidos
pelas pisadas da multidão em fuga.


IV

Todos os compositores executados na abertura dos jogos
teriam sido reconhecidos pelo genocida,
teriam sido aprovados pelo genocida
que governou o país no milênio passado.

Eis o espírito esportivo
que pode ser vendido,
que pode gerar direitos autorais
em todos os países do mundo.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Sinhô chuta de bico





grafismos indígenas
grafismos negros
na camisa da seleção masculina de futebol

nunca teremos,
dizem os racistas,
mas por uma razão humanitária,

pois, se apagamos os subalternos
desde sua produção simbólica,
não precisaremos de institutos legais de segregação,

aliás desnecessários quando acadêmicos
jogam bananas para seus colegas escuros
e aprendem direito quem tem cara de preso;

pois, se apagamos os subalternos
desde sua produção simbólica,
não precisaremos de metralhadoras,

embora largamente usadas por capangas 
e outras forças oficiais de segurança
com mira técnica para alvos escuros;

grafismos indígenas
grafismos negros
na camisa da seleção masculina de futebol

nunca teremos,
dizem os racistas,
mas por uma razão patriótica,

o futebol é imanente à formação do povo,
se ele se reconhecesse na camisa
arriscar-se-ia a enxergar-se como povo

e não como algo genérico e difuso
que serve de número para anunciantes
e de entretenimento para a indústria

quando cai das arquibancadas,
quando se entredevora dividido em torcidas
em vez de unido como classe;

e a visão das raças discriminadas
fomentaria conflitos em vez da harmonia patriótica 
entre a bota e o rosto esmagado

grafismos indígenas
grafismos negros
na camisa da seleção masculina de futebol

nunca teremos,
dizem os racistas,
mas por uma razão técnica,

para evitar erros de arbitragem,
certamente seriam cometidos
se a seleção se vestisse dos injustiçados

em vez de assumir os símbolos
da raça vitoriosa, que precisou
que outras perdessem suas terras

e onde foram expulsas erguessem o estádio
em que lavam arquibancadas e banheiros,
para ensinar o sinhô a não chutar de bico;

o jogador negro, para efeitos de patrocínio,
deve ser considerado branco
enquanto for bem sucedido

grafismos indígenas
grafismos negros
na camisa da seleção masculina de futebol

nunca teremos,
dizem os racistas,
pois o racismo é o seu país

e ele, sem uniforme, poderia confundir-se com os homens