Escrevi este pequeno texto em 2014 para um portal que saiu do ar, anunciando a campanha Índio É Nós, deflagrada em abril daquele ano. Fui procurá-lo por causa do senador Heinze: nele cito o então deputado federal. Ele foi curiosamente eleito naquela mesma época "racista do ano" pela Survival. No dia em que escrevo esta nota, lembrei do excelentíssimo parlamentar porque ele defendeu posições pró-vírus na CPI da Pandemia, fazendo o louvor de remédios ineficazes.
Resolvi trazer para cá o velho textinho, um tanto perplexo pelo fato de um político tão prestigiado por seus eleitores (o mais votado em seu Estado, Rio Grande do Sul), e com tal destacado renome no exterior, ter-se alinhado (certamente por algum equívoco) a uma posição, em termos de políticas de saúde, vizinha do genocídio, segundo juristas como Deisy Ventura.
P.S.: Relendo, observo que nenhum dos problemas apontados foi resolvido. A situação desastrosa agravou-se. As ilegalidades daquele momento, pré-golpe de 2016, permaneceram, à falta de algum Poder competente para assegurar os direitos dos povos indígenas, que continuam a ser alvo de contínuos golpes. Ademais, agora se tornam vítimas do impacto genocida da pandemia, absurdamente minimizada por agentes políticos como os citados.
“Índio
é nós”: Motivos para a mobilização em prol dos direitos e das
terras dos povos indígenas
Pádua
Fernandes
1.
“Por trás desta baderna”: a incitação ao ódio, ou o que se
chama de ordem
Durante
a presente gestão federal, em que a aliança estratégica com os
ruralistas tornou-se política pública, acirraram-se os ataques
contra os povos indígenas no Brasil. Os assassinatos de índios e
invasão de terras indígenas conjugaram-se à paralisação da
demarcação de terras indígenas, ao trâmite e à aprovação de
projetos anti-indígenas no Congresso Nacional, a decisões etnocidas
do Supremo Tribunal Federal, e à incitação à violência contra
esses povos por políticos e por meios de comunicação.
Para
este breve texto, basta evocar um recente exemplo e sua reincidência:
ninguém menos do que o coordenador da chamada bancada ruralista no
Congresso Nacional, o deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP-RS),
foi flagrado em dois vídeos, gravados no fim de 2013, incitando o
ódio contra os índios e outras minorias.
Em
Vicente Dutra, no Rio Grande do Sul, o parlamentar atacou o
Secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, encarregado da
articulação entre governo federal e movimentos sociais. Tratava-se
de audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos
Deputados sobre a demarcação de terras indígenas, com produtores
rurais, em 29 de novembro de 2013.
Heinze afirmou que “O
Gilberto Carvalho também é ministro da presidenta Dilma. É ali que
estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que
não presta ali está aninhado, e eles têm a direção e o comando
do governo”.
Na
mesma ocasião, o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS) também tentou
exercitar seus recursos retóricos contra as minorias:
Por
que será que, de uma hora pra outra, tem que demarcar terra de índio
e quilombolas? O chefe dessa vigarice orquestrada tá na antessala da
presidência da república e o nome dele é Gilberto Carvalho. É
ministro. [...] Por trás desta baderna, desta vigarice, está o
CIMI, que é uma organização cristã. Que de cristã não tem nada.
Está a serviço da inteligência norte-americana e europeia para não
permitir a expansão das fronteiras agrícolas do Brasil [aplausos].
Heinze
sugeriu que os produtores contratassem segurança privada “como o
Pará está fazendo. Façam a defesa que o Mato Grosso do Sul está
fazendo. Os índios invadiram a propriedade, foram corridos da
propriedade [...] Resolvemos os sem-terra lá em, 2000, e vamos
resolver os índios agora, não interessa o tempo que seja”.
Esses
vídeos foram publicados no início de 2014 e geraram impacto na
opinião pública, o que fez Heinze voltar atrás em relação aos
gays, afirmando (numa reiteração cordial do preconceito) que até
corta o cabelo com eles e os recebe em casa, mas não em relação a
índios e quilombolas.
O
segundo discurso de Heinze contra minorias recentemente divulgado
ocorreu no chamado “leilão
da resistência”, em Campo Grande (MS), em 7 de dezembro de 2013,
que tinha como objetivo arrecadar dinheiro para a formação de
milícias privadas contra os índios. O deputado voltou a criticar
Gilberto Carvalho e o governo de Dilma Rousseff:
Tem
no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado
Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem
terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste
senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa
gente vá resolver nosso problema [aplausos]
Após
a divulgação, o deputado afirmou que se “referia ao comando dos
movimentos quilombolas e não aos negros em geral.”
Ele
repetiu essa retificação em vídeo por ele mesmo publicado em 25 de
fevereiro de 2014, em que alegou ter sido mal interpretado, pois
apenas teria se rebelado contra o “comando desse movimento
indígena” na Funai e na presidência, e a “quem comanda o
movimento quilombola”, e não aos negros.
2.
A solução final, ou para os ruralistas a Constituição ainda não
foi violada suficientemente
É
importante notar que as vociferações da bancada ruralista estão em
divergência flagrante com a realidade: não só o governo de Dilma
Rousseff foi o que menos demarcou terras indígenas desde Collor,
como o ministro Gilberto Carvalho não pode, de forma alguma, ser
caracterizado como amigo das causas indígenas. Quando lideranças
indígenas dos rios Xingu, Tapajós e Teles Pires foram, em junho de
2013, a Brasília protestar contra os projetos hidrelétricos nos
rios Teles Pires e Tapajós, o Ministro recusou-se a encontrá-los –
assessores e soldados do Exército os receberam.
Em
uma ocorrência mais grave, os índios Munduruku interpelaram-no
judicialmente por injúria e difamação, pois divulgou uma nota, em
6 de maio de 2013, acusando as lideranças desse povo de
desonestidade e de garimpo ilegal.
Diversos
projetos em trâmite no Congresso Nacional têm como finalidade
retirar direitos dos povos indígenas. Artionka Capiberibe e Oiara
Bonilla fizeram levantamento no fim de 2013, com destaque para a PEC
(Proposta de Emenda à Constituição) 215, que deseja alterar a
Constituição da República para que a competência de demarcação
das terras indígenas passe para o Congresso Nacional, que ganharia,
dessa forma, uma atribuição típica do Poder Executivo.
Em
maio de 2013, o governo federal suspendeu as demarcações no Rio
Grande do Sul e no Paraná (onde há interesses eleitoreiros da então
Ministra Gleisi Hoffmann). Em dezembro do mesmo ano, resolveu propor
a mudança da regra das demarcações para torná-las ainda mais
lentas, fazendo-a passar por vários Ministérios, subordinando os
direitos originários dos povos indígenas, reconhecidos pela
Constituição da República, aos interesses das empresas de
mineração, à ideologia da segurança nacional e ao agronegócio. A
proposta desagradou, previsivelmente, aos índios, mas também à
bancada ruralista, com Heinze como o porta-voz da insatisfação,
reclamando que, como a decisão ainda ficaria com a Funai, os
“produtores” ainda ficariam a mercê de “laudos antropológicos
fraudados”
.
Voltemos
aos discursos do fim de 2013. É basicamente estúpido dizer que “de
uma hora para outra” se estão demarcando terras, tendo em vista
que a Constituição previu um prazo de cinco anos, que terminou em
1993, para fazê-lo, e que o governo tem paralisado tal ação. O
discurso de ódio dos deputados parece apontar em outra direção,
para o que a senadora (TO/PMDB) e presidente da Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu, caracterizou
desta forma: “Depois que nós finalizarmos a questão indígena, eu
quero saber qual é o outro tema que eles vão inventar para poder
atrapalhar a agropecuária brasileira.”
A
alusão à solução final ocorreu em audiência pública da Comissão
de Agricultura em 11 de dezembro de 2013 na Câmara dos Deputados,
como conta Luísa Molina. O discurso racista e de ódio contra os
índios encontrou reverberação segura no coração do Poder
Legislativo:
Nós
vamos fazer esse enfrentamento. Um enfrentamento duro. Em Mato Grosso
do Sul e em todo o país", afirmou o senador Waldemir Moka
(PMDB-MS). Aplausos e as expressões de satisfação que rondaram o
auditório quando o deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA), ao falar de
como "lidaram" com "o problema indígena" no seu
estado com violência. "Ninguém mais contrata advogado. Entrou
hoje [indígena na terra], sai na madrugada do dia seguinte. Sai
debaixo de cacete". Ele prossegue, aconselhando outros a
contratarem empresas de segurança: "4 horas da manhã você
aborda o pessoal [que entrou na terra], chega o cravo no primeiro que
reclamar, dá-lhe um cacete, bota em cima de um caminhão e manda
devolver". Queiroz, sem disfarçar um racismo quase caricato,
disse ainda: "[os índios] querem ser civilizados. Nós todos um
dia fomos índios. Nós, aliás, fomos macacos.
Esse
discurso racista tem-se mostrado sem pudor nos Poderes oficiais e tem
encontrado reverberação na grande imprensa, com suas críticas aos
movimentos étnicos (que seriam “racialistas”), que teriam
resultado, na ridícula expressão da presidente da CNA, em uma
“ditadura antropológica”; um curioso regime autoritário em que
os detentores do poder seriam diariamente desmoralizados e ameaçados,
e os seus beneficiários, expulsos e mortos.
Tal
situação de violência crescente contra os povos indígenas ocorre
em uma situação de endêmica impunidade dos crimes contra
extrativistas, índios e populações tradicionais, e de retomada da
indústria barragista na Amazônia, ameaçando a sobrevivência
dessas populações, com violação flagrante de normas
constitucionais e internacionais.
3.
O protagonismo indígena versus a produção legal da ilegalidade
Nestes
últimos tempos, no entanto, vem retornando o protagonismo indígena
nos protestos, que havia crescido no fim da ditadura militar, até
chegar à Constituinte, e gerou as previsões sobre direitos
indígenas na Ordem Social.
A
bela cena dos índios, de várias etnias, ocupando o Congresso
Nacional, em 16 de abril de 2013, antecipou as jornadas de junho de
2013, foi uma das manifestações contra
a PEC 215.
Posteriormente, os índios Guarani, Guarani-Kaiowá e Terena
protocolaram, em 27 de fevereiro deste ano, representação, assinada
por diversas organizações,
na Procuradoria Geral da República, para investigar criminalmente
Luiz Carlos Heinze e Alceu Moreira pelos vídeos mencionados.
Entende-se,
pois, que Heinze tenha voltado a investir contra as lideranças dos
movimentos: trata-se da tentativa de impedir a ação política das
minorias, impedindo sua organização autônoma.
Tais
manifestações, assim como as que ocorreram no meio urbano, partem,
entre outros fatores, da constatação de que não há no Brasil,
efetivamente, Justiça, nem mesmo no mero nível formal que se
poderia esperar, talvez, de uma democracia burguesa. A indignação
por isso moveu, por exemplo, o ato convocado pela Comissão Guarani
Yvyrupa (CGY), no dia 2 de outubro de 2013, em São Paulo. Ele
ocorreu no contexto da mobilização nacional indígena, em defesa da
Constituição da República, contra a PEC 215, que foi convocada
pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Tratou-se
de uma marcha que partiu do Museu de Arte de São Paulo (MASP) até o
Monumento às Bandeiras, que foi manchado de tinta vermelha. Lá, os
índios, de várias etnias, fizeram rituais e brandiram a edição do
Senado Federal da Constituição da República.
O
direito brasileiro, historicamente, refletiu a orientação política
de que a existência dos índios deveria ser uma realidade
provisória; explica Orlando Villas Bôas Filho que ele foi
“preponderantemente avesso ao reconhecimento das formas de
organização social e jurídica dos povos indígenas”;
historicamente, “prevaleceu uma legislação de perfil
assimilacionista (autodenominada integracionista)”.
A
doutrina de segurança nacional possuía o mesmo caráter em relação
aos povos indígenas. O Estatuto do Índio, aprovado durante a
ditadura militar, (Lei federal no
6.001 de 19 de dezembro de 1973), previa já no artigo primeiro que
“Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas
e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua
cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão
nacional.”
A
constituição de 1988 não manteve esse propósito; que o Estatuto
do Índio permaneça, mesmo assim, é um sinal relevante de que muito
daquela cultura política etnocida permanece, e persiste, por
exemplo, nos discursos de ódio da bancada ruralista, e violência
física contra esses povos.
Essas
continuidades podem ser percebidas também no campo do direito; como
elas são contrárias à Constituição e ao Direito Internacional,
elas se manifestam em formas de produção legal da ilegalidade.
Uma
dessas formas é a criação de normas em flagrante oposição à
Constituição e ao Direito Internacional. Nesse caso, usa-se a forma
da norma jurídica para criar inconsistências dentro do próprio
ordenamento jurídico. Um exemplo é a Portaria no
303, de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da União, que prevê
a possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas
sem consultar seus habitantes, violando a Convenção no
169 da Organização Internacional do Trabalho. Ela foi suspensa,
pela segunda vez, em 2014, após protestos. No entanto, a bancada
ruralista pressiona por sua vigência.
Dalmo
Dallari denunciou que, com a Portaria, deseja-se emprestar o efeito
de normas gerais às condicionantes estipuladas no caso específico
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
(Petição nº 3888-RR), julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Esse julgamento correspondeu a outro tipo de produção legal da
ilegalidade, desta vez por meio de decisão judicial que contraria os
princípios do ordenamento jurídico.
A
doutrina de segurança nacional não foi acolhida pela Constituição
de 1988. No entanto, o STF ressuscitou-a no julgamento da Raposa
Serra do Sol, notadamente nesta condicionante (que foi copiada, tal
em qual, no artigo 1º da portaria nº 303 da AGU):
[...]
o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de
defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares
e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha
viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho
estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a
critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho
de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de
consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI.
Trata-se
também de evidente violação à Convenção 169 da OIT, desta vez
pelo Supremo Tribunal Federal, que pretende que a obrigação de
consultar os povos indígenas seja desrespeitada nos casos da
política de defesa nacional, o que inclui fontes enérgicas e
exploração de riquezas “de cunho estratégico”. A
caracterização “estratégica” dessas fontes e riquezas,
pretende o tribunal, será da competência do Ministério da Defesa e
do Conselho de Defesa Nacional. Temos, assim, a subordinação aos
militares de assuntos ligados às políticas de desenvolvimento, que
é uma velha novidade: estava presente na última ditadura.
Um
dos exemplos ocorreu quando o presidente Médici fez ao Conselho de
Segurança Nacional uma consulta sobre a transformação de certos
Municípios em área de segurança nacional. No relatório feito pelo
secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, mais tarde
presidente da república, general João Baptista de Oliveira
Figueiredo, apresentado na 15a
consulta ao Conselho de Segurança Nacional, em de 23 de abril de
1970, lê-se que
As
obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam,
desde agora, os Municípios de TRÊS LAGÔAS e CASTILHO de particular
importância sob os aspectos da Segurança Nacional. - A preocupação
com a região já havia sido demonstrada pelos Ministros da Marinha e
do Exército, quando, por ocasião dos trabalhos iniciais sobre os
municípios de interesse da Segurança Nacional, solicitaram a
inclusão do Município de TRÊS LAGÔAS, com base nos fatores
político, econômico e militar.
O
impacto dos grandes empreendimentos impostos à população, "tensões
indesejáveis", "problemas de ordem política e
psicossocial", deveria, pois, dentro dessa lógica repressiva,
receber uma resposta militar. O relatório foi aprovado e os
Municípios foram considerados de "interesse da Segurança
Nacional" por meio do Decreto-lei no
1105, de 20 de maio de 1970. Dessa forma, seus prefeitos
passaram a ser nomeados pelo Governador do Estado após aprovação
do Presidente da República, o que excluiu os políticos da oposição.
Outro
exemplo da produção de ilegalidade por meios legais pode ser dado
no uso do instituto processual da suspensão de segurança. Trata-se
de uma medida de legalização da exceção no ordenamento
brasileiro, criada em favor das pessoas de direito público. Ela tem
sido empregada para viabilizar os grandes empreendimentos, permitindo
que os presidentes de tribunais (que são, em geral, os magistrados
mais politicamente influenciáveis) possam suspender liminares, sem
invocar qualquer fundamento legal ou constitucional, a pedido do
Ministério Público, ou de pessoas de direito público, em nome de
qualquer coisa que etiquetem como grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança e à economia públicas. Tais previsões, obviamente, não
são neutras em termos de classes sociais e podem facilmente ser
empregadas, como o estão sendo, para favorecer grandes empresas e
remover populações: a validade dos direitos humanos é afastada em
nome de interesses econômicos.
É
exatamente esse instituto que está sendo empregado, no Supremo
Tribunal Federal, para que uma obra como a Usina Hidrelétrica de
Belo Monte, cujo licenciamento foi dado de maneira afrontosamente
ilegal, sem atender as condicionantes ambientais, e ferindo o art.
231, § 3º, da Constituição Federal, autorizando a Usina sem a
oitiva das comunidades indígenas, bem como a consulta a essas
comunidades determinada pela Convenção 169 da OIT.
A
5ª
Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI
2006.01.00.017736- 8/PA, decidiu pela paralisação do
empreendimento, e proibir o seu licenciamento ambiental; Essa decisão
foi parcialmente suspensa pela Ministra Ellen Gracie, em 2007, então
no Supremo Tribunal Federal (já se aposentou) em Suspensão de
Segurança. Sua decisão, em 2012, foi corroborada pelo Ministro
Ayres Britto, sem fundamentação constitucional nem exame do mérito,
apenas com a alegação que haveria perigo à economia pública se o
empreendimento fosse paralisado. Note-se que se podem imaginar poucos
danos maiores à ordem pública, aos índios e ao meio ambiente do
que a conclusão dessa usina.
Dessa
forma, o Judiciário brasileiro não tem cumprido a contento aquele
papel imaginado em O
Federalista,
segundo o sistema de freios e contrapesos, de contrabalançar as
maiorias políticas, protegendo as minorias e seus direitos
constitucionais.
4.
Por que “índio é nós”
A
democracia representativa, no tocante a seus mecanismos eleitorais, é
obviamente insuficiente: os índios não teriam votos para
contrabalançar o agronegócio e seus aliados de ocasião, como foi a
bancada teocrática em alguns momentos desta legislatura.
A
ação política organizada por meio de movimentos é necessária.
Nisso, é importante que as organizações tradicionalmente ligadas à
luta pelas populações indígenas não fiquem solitárias. Seus
adversários têm poderosos aliados internos e externos, ligados ao
setor de commodities.
Por
isso está sendo lançada, no mês de março de 2013, a campanha
“índio é nós”: uma série de eventos, no Brasil e no exterior,
autônomos, porém conectado pela defesa dos direitos e terras
indígenas. Seu manifesto, uma lista de textos e vídeos
informativos, bem como as manifestações artísticas criadas ou
cedidas para a campanha podem ser vistos nesta ligação:
www.indio-eh-nos.eco.br
Nela,
igualmente, está disponível para consulta a programação dos
eventos (artísticos, acadêmicos, políticos – na verdade, todos
serão políticos) da mobilização.
“Índio
é nós”, portanto, tem o propósito de denunciar o discurso de
ódio veiculado pela classe política e pelos meios de comunicação,
sua afronta ao direito vigente e a critérios fundamentais de
justiça, bem como suas falsas premissas científicas – como foi
citado, na tentativa de justificar o racismo, está sendo
ressuscitado até mesmo o darwinismo social nos discursos de
congressistas.
Ademais,
a campanha deseja demonstrar que os índios não estão isolados em
sua luta e que a questão da sobrevivência desses povos não
interessa apenas à Funai e aos antropólogos (como se fosse pouca
coisa, aliás), mas a toda sociedade brasileira. Daí a necessidade
de respeito aos “direitos coletivos atribuídos a populações
definidas em termos raciais ou étnicos”, que não devem ser
definidos como um simples instrumento para gestão e controle de
populações, como bem demonstram Verdo e Vidal.
Se o fossem, por sinal, certamente não haveria tanta resistência à
validade e à eficácia desses direitos no Brasil. É necessário
afirmá-los pois, como sempre, os direitos, sem ação, são apenas
papel.
O
manifesto da campanha convoca à ação neste sentido:
Contra
as barragens dos rios na Amazônia, os projetos anti-indígenas no
Congresso Nacional e as milícias armadas que atacam impunemente as
tribos; pela urgente demarcação das terras indígenas segundo
critérios técnicos e não os interesses do agronegócio; pela real
implementação dos direitos constitucionais e internacionais dos
índios; pelos projetos de futuro inspirados pela indianidade,
convidamos todos a se agregarem a esta campanha: Índio
é nós.
A
campanha trata dos genocídios de ontem e de hoje, que estão
relacionados, como se pode perceber nos projetos de intervenção na
Amazônia (Belo Monte é um exemplo) concebidos pela ditadura militar
que estão sendo implementados hoje. Por conseguinte, ela envolve
também a justiça de transição, isto é, a democratização da
sociedade e a punição dos perpetradores de abusos contra os
direitos humanos após o fim de um regime autoritário. A falta dessa
justiça no Brasil evidencia-se tanto na impunidade escandalosa dos
assassinos e torturadores da ditadura militar, bem como de seus
financiadores, quanto na continuidade dos abusos cometidos contra os
povos indígenas, à revelia dos direitos duramente conquistados, mas
que permanecem em plano formal, e com o apoio de forças semelhantes
às que promoveram o golpe de 1964, mas agora com a ajuda da esquerda
que chegou ao poder. Como bem sintetizou Eduardo Viveiros de Castro,
foi preciso a esquerda chegar ao poder “para realizar o projeto da
direita”,
o que certamente mostra os limites políticos e ideológicos dessa
esquerda em particular.
Portanto,
mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização,
é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse
terminado ainda.
Também
por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização
do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio
é nós.