O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 30 de maio de 2021

Esfera pública com os pés: O meu 29 de Maio e o #ForaBolsonaro em São Paulo

No trabalho de pesquisa, pode ser difícil escolher e identificar quais são as fontes pertinentes. Porém não basta encontrá-las: é necessário lê-las criticamente e perguntar, por exemplo, qual era o olhar e a finalidade de quem as produziu.

Eu geralmente pesquiso fontes policiais e de órgãos de informação; sei que devo interpretar os documentos levando em conta o ânimo simultaneamente criminalizante, em relação não apenas aos oposicionistas, mas à maioria da sociedade civil, e ""abolicionista"" em relação aos crimes do Estado. Quando esses documentos trazem provas ou reconhecimento da prática destes crimes, é impactante. Boa parte dos processos na Comissão de Anistia, por exemplo, encontra provas nesse tipo de arquivo.

Quando usamos fontes jornalísticas, temos que saber qual é o perfil do jornal, o que determina que notícias serão dadas e como isso ocorrerá, com que tom político. É necessário saber também o que será ignorado pelo periódico. Pode ser que ele sejam parecidos com os arquivos policiais e dos serviços de informação: criminalizantes em relação à sociedade civil, compassivos com os crimes do Estado ou do capital.

Lembrando da época da ditadura militar, os mesmos fatos não eram contados, ou não o eram da mesma forma, por periódicos tão diferentes como a Folha de S.Paulo e o Brasil Mulher, ou O Globo e o Lampião.


Para 29 de maio de 2021, foram convocados atos contra o governo de Jair Bolsonaro em mais de cem cidades do país e em algumas no exterior. Em São Paulo, vi cartazes como estes. Era de imaginar que a cobertura jornalística desse esforço suprapartidário merecesse coberturas que variassem muito, segundo o veículo e suas preferências políticas.

Uma forma de se referir aos atos que congregaram dezenas de milhares de pessoas durante a pandemia foi escondê-los em um canto da capa e criticá-los por causar aglomeração, solução de O Estado de S.Paulo, em contraste com a destacada cobertura e o entusiasmado estímulo às manifestações de 2016, que visavam derrubar o governo do PT. O jornal O Globo realizou algo parecido, mas com o detalhe irônico de usar Gilberto Gil na capa, como notou Erahsto Felício. O jornal impresso Folha de S.Paulo fez bem o oposto e deu destaque aos atos.

Em relação à televisão, vi críticas ao absenteísmo da Globo News em relação ao atos, bem como à fraca cobertura da CNN. A tevê ligada à Igreja Universal resolveu omitir o caráter político das manifestações de 29 de maio, com o efeito óbvio de salvaguardar Jair Bolsonaro para aqueles que não têm muito acesso à informação, ou somente o tem por meio desse tipo de filtro religioso. 

Em cidades menores, boa parte do jornalismo não teve pudor em ignorar até as manifestações oposicionistas locais... 

Diante disso, o jornalismo teve que refugiar-se em veículos como o Brasil de Fato, a Mídia Ninja e outros de menor tamanho, porém de maior respeito à ética jornalística. Nesses momentos, para recorrer às fontes jornalísticas, é necessário buscar tais veículos, bem como os da imprensa estrangeira. O Giro Latino indicou alguns da América Latina.

Apesar da pandemia, e também por causa dela, resolvi comparecer ao ato em São Paulo (desde 2019 eu não participava de nenhum protesto de rua). Nesta nota, quero dar o ponto de vista de uma pessoa comum que simplesmente decidiu aparecer no evento, sem ter participado da preparação ou da organização. Também fazemos esfera pública com os pés.

Fiquei menos de três horas, deixei o ato na Consolação, não cheguei até a Praça Roosevelt. Por causa da pandemia, escolhi não andar nas áreas de maior aglomeração. Não vi, portanto, muita coisa. Escrevo esta breve nota só para contar o que eu vi, com as minhas fracas fotos amadoras.

Eu contraí o covid-19 em julho de 2020. Espero não ficar doente novamente. Tenho ficado em isolamento, mas decidi rompê-lo no sábado por ter ficado incomodado com a impressão que a extrema-direita quer passar de que agora "as ruas" são dela. Resolvi me arriscar, levando em conta que era necessário dar uma demonstração de força com a presença no espaço público, e que meu marido já está vacinado. 

Creio que muita gente compareceu neste mesmo espírito, o de que o pior "vírus" é o atual ocupante da presidência. Fotografei cartazes da nova epidemiologia política.


A imprensa colaboracionista resolveu criticar a esquerda por ter provocado aglomeração, mas não vi uma só pessoa sem máscara, ao contrário do que sempre acontece nos atos de comemoração do genocídio promovidos pela extrema-direita. Não há como pretender, sem muita desonestidade e/ou disfunção cognitiva, que são eticamente comparáveis esses atos com o do 29 de maio.

Era a esquerda que o organizou e ela estava presente; vi bandeiras do PT, do PSOL, da UP, e de outros que já vi diversas vezes em atos políticos desta natureza: movimentos como o Levante Popular da Juventude, a UJC, o MTST, bem como da CUT, além de faixas e camisetas da Democracia Corinthiana. Bandeiras LGBTQIA+ também, às vezes servindo como manto. Creio que foi a primeira vez que vi faixa da jovem Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, fundada em 2018:





As pautas expostas nos cartazes envolviam a lembrança dos mortos pelo negacionismo bolsonarista, a vacina, o auxílio emergencial e, principalmente, a saída do atual ocupante da presidência. Apareciam também reivindicações de outros temas atingidos pelo governo, como o ambientalismo e os direitos das mulheres.




Havia essas pessoas, esses atores e tais pautas. Era muita gente? As fotos realizadas com drones revelam que éramos uma multidão. A Mídia Ninja divulgou-as. Entendo que, por essa razão, os bolsonaristas tenham se calado diante dos atos  (os mais desorientados tentaram espalhar a mentira de que não havia quase ninguém), bem como os apoiadores do golpe de 2016 (nem todos bolsonaristas, é claro). O Esquerda Diário publicou matéria sobre as falsificações veiculadas por apoiadores do atual governo para minimizar o 29 de Maio.

Mostro abaixo imagens capturadas dos pequenos vídeos que fiz:


A arte fez-se presente: um boneco inflável brindava-nos com a imagem atualizada da morte no Brasil, e nesta bela imagem de Gilmar (Machado Barbosa), presente também no twitter do artista, víamos o vírus com seu aliado: 


Foi curioso notar a presença de bandeiras do Brasil, como se alguns tivessem decidido recuperá-la após ter sido conspurcada pelos golpistas de 2016 e pela extrema-direita bolsonarista. Houve os que a vestiram com dizeres contrários ao atual ocupante da presidência da república.



As acusações de genocida repetiam-se, tendo em vista que ela é uma consequência da estratégia de "imunidade de rebanho" invocada pelo ocupante da presidência. Um dos cartazes que fotografei fazia a conta dos que faltam cair segundo as políticas adotadas pelo governo, um milhão.



No final, fica  pergunta: quantas mortes faltam para o impeachment? Será realmente um milhão de pessoas? A esquerda já apresentou vários pedidos de impedimento. Segundo o Placar do Impeachment, somente o PT, o Psol, o PCdoB e a REDE têm total adesão ao impedimento. No entanto, a esquerda é minoria no Congresso e na presidência da Câmara dos Deputados, o responsável por colocar esses pedidos na pauta de votação, há um aliado do governo. 

Falta ver se em algum momento a direita partidária e seus patrocinadores e divulgadores terão medo dos que sobreviverem.




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