O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 2 de maio de 2021

Edy Lima (1924-2021) e uma nota sobre teatro, Quarto de despejo e Carolina Maria de Jesus

A escritora e jornalista Edy Lima morreu na manhã do primeiro de maio de 2021 (ela não foi vítima do coronavírus). Muitos decerto logo associam seu nome à literatura infantil, campo em que deixou uma marca muito importante (A vaca voadora é um de seus títulos mais conhecidos). 
Ela ingressou no jornalismo nos anos 1940 (e era o membro mais antigo do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo), quando a carreira ainda era considerada largamente como "masculina". O mesmo problema ocorria no teatro com as mulheres autoras. Quero escrever esta pequena nota lembrando deste gênero de sua produção. 
No entanto, nunca pude ver montada sua A farsa da esposa perfeita. A peça foi muito bem recebida na primeira produção. A Revista do Teatro, da SBAT, em 1960, noticiou o segundo lugar que recebeu no Concurso de Teatro do Instituto Nacional do Livro, vencido por Rachel de Queiroz e Jorge Andrade. 


A revista está no Arquivo Nacional, no Fundo de Censura às Diversões Públicas. 
Neste artigo de introdução à peça Arena conta Zumbi, Edy Lima é citada como um dos autores egressos do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, assim como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Freire, Nelson Xavier e Francisco de Assis:


Trata-se de um trecho da mencionada Revista do Teatro, porém de novembro/dezembro de 1970, que está no mesmo Fundo do Arquivo Nacional. O que haveria em comum entre esses dramaturgos, porém? Segundo este panfleto de 1978 da Cooperativa de Teatro Zumbi, que reunia em Lisboa autores brasileiros (em exílio) e portugueses, eles todos eram "Autores que tratavam da realidade brasileira concreta de uma forma realista e às vezes naturalista".


A peça cuja encenação era alvo da vigilância das autoridades da ditadura militar brasileira era Zumbi, de Augusto Boal (que dirigia a encenação), Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo. O documento veio do Fundo do Centro de Informações da Marinha, também guardado no Arquivo Nacional.
Em razão da preocupação com a realidade brasileira, própria desta geração de autores, não era de espantar que Edy Lima fosse transformar Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, em peça teatral. Este livro foi lançado em 1960 e teve um sucesso comercial estrondoso, o único que a escritora conheceria em vida. Nesse mesmo ano, Carolina viajou para o Rio Grande do Sul para divulgar sua obra, viu A farsa da mulher perfeita e depois conheceu Edy Lima. 
Em 1961, a peça foi montada com direção do jovem Amir Haddad e com ninguém menos do que Ruth de Souza interpretando a protagonista. Tratava-se de uma coprodução da Companhia da atriz Nydia Licia e do Teatro da Cidade, com cenário de Cyro del Nero. 
A própria Carolina Maria de Jesus compôs a música da peça (faço notar que ela não tinha realmente uma boa voz, o que prejudica o seu único disco, mas era uma boa compositora; sugiro ouvir a gravação que a grande Virgínia Rodrigues fez em 2019 de "Vedete da favela").
Aqui está o trecho do programa original da peça com a lista do grande elenco:




Quase todos os atores eram negros; uma exceção era Célia Biar. Edy Lima escreveu uma peça em três atos, mantendo no centro de tudo as questões da fome, da violência, da precariedade da vida na favela, da dificuldade do trabalho de catadora, da maternidade com o abandono pelos pais, bem como do livro que contará toda esta história que estamos vendo. 
Três dos fios de Quarto de despejo servem para conduzir a narrativa: o porco que ela consegue adquirir no primeiro ato e que vai ser consumido no terceiro, com a ameaça de invasão dos vizinhos que querem tomar a carne; o relacionamento com o cigano, que anda com outras mulheres e entra em conflito com moradores da favela; e a expectativa pela reportagem do "jornalista" (Audálio Dantas, que foi seu descobridor e editor de Quarto de despejo e Casa de alvenaria), que abrirá as portas para a publicação do livro.
A discriminação de gênero perpassa o texto. A peça se abre com uma cena, nos bastidores, de violência contra a mulher: uma das moradoras da favela é espancada pelo marido. O primeiro ato se encerra com o namoro entre o Cigano e Carolina, mas o segundo se abre com Carolina fazendo, sozinha, "serviço de homem": o conserto do telhado. A personagem comenta: "Não casei e não estou descontente. Enfrento qualquer espécie de trabalho, mas tenho meus momentos de sossego. As casadas trabalham tanto quanto eu e ainda suportam os maus-tratos dos maridos." De fato. As condições do direito à cidade, bem como as circunstâncias de sua negação variam segundo o gênero, e o texto lembra-nos disso todo o tempo.
O agudo olhar social de Carolina é transportado para a peça: "Vai querer dizer que há duas leis: uma para a cidade e outra para a favela?" Sem dúvida. Vemos a observação do guarda que não prende Carolina porque "A viatura é nova, não quero sujar com essa imundície"; em contraponto, ela tem o orgulho de afirmar, em outro momento, "Sou preta e estou contente com isso". A peça conserva a tirada  da escritora de não ser comunista, mas "realista": "Conto o que vi".
A peça conserva também, do livro, a impressionante e comovente confiança que Carolina Maria de Jesus tinha na literatura. Uma vocação que a moveu a escrever lutando contra a miséria, o racismo, o machismo, sua pouca escolaridade, contra o que podemos, enfim, chamar de Brasil.
A peça de Edy Lima, é claro, corta cenas do livro (em termos de tempo, seria inviável colocar tudo no palco), mas a principal diferença em relação ao texto que adaptou está no tom: há mais humor e esperança na obra teatral. 
Este livro de Carolina Maria de Jesus continua a ser um sucesso de vendagem. A peça, no entanto, nunca tinha sido publicada em livro até recentemente. Creio que foi o último lançamento em vida de Edy Lima, e em época de pandemia. Pude acompanhar esse processo porque a ideia de publicá-lo veio do editor e poeta Fabio Weintraub, quando ele ainda estava na empresa que publica os títulos da Ática. Em homenagem ao cinquentenário desta obra de Carolina, que ocorreu em 2020, ele planejou uma publicação comemorativa de Quarto de despejo com variada fortuna crítica (o livro, que tem prefácio de Cidinha da Silva, resgata, por exemplo, o texto de Alberto Moravia), e a primeira edição em livro desta peça de Edy Lima, que compartilhou, segundo o acordo que fez com Carolina em 1961, os direitos autorais com os herdeiros.


Acima, foto que tirei de Fabio Weintraub e Edy Lima no apartamento da autora em época anterior à da edição da peça.
Esta publicação de 2020 inclui um texto de Amir Haddad rememorando a encenação (ele conta, por exemplo, que as mulheres brancas da plateia "iam aos camarins oferecer emprego de doméstica para as atrizes negras") e dois dos textos que estavam no programa original: de Edy Lima e da própria Carolina; este aparece digitado mas também na grafia à mão da autora, repetindo o que se fez em 1961. Lembremos que preconceitos de raça e de classe, que queriam negar a esta mulher negra tanto o direito à cidade quanto o direito à literatura, fizeram parte da crítica duvidar de que ela pudesse ser autora do livro, e os manuscritos serviram para desmentir essa gente incomodada com a novidade que Quarto de despejo trazia à literatura brasileira: a da conquista da cidadania nas letras por uma autora da população simultaneamente excluída daqueles dois direitos.
A dramaturga, em fevereiro de 2021, concedeu esta entrevista sobre a peça, "Edy Lima e a adaptação teatral de Quarto de Despejo", na qual destacou sua amizade com Ruth de Souza, segundo ela (e muitos concordarão) a melhor atriz brasileira da época. 
Trata-se de outra mulher negra que teve que enfrentar muitos preconceitos. A peça não foi filmada, mas pode-se ter o gosto de vê-la interpretar a personagem de Carolina nestes trechos do especial de tevê "Caso Verdade - Quarto de despejo - de catadora de papéis à escritora famosa", que a Globo exibiu em 1983.


A capa do livro traz uma ilustração de No Martins, integrante de uma geração mais nova de artistas negros. Ela se inspira na conhecida foto de Carolina com Ruth de Souza na Favela do Canindé, que pode ser vista nesta ligação. A escritora sorri ajeitando o lenço na cabeça da atriz. Edy Lima (que era a única sobrevivente destas três mulheres, tendo Ruth de Souza morrido em 2019 e Carolina bem antes, em 1977), creio, conseguiu fixar não só a dor, mas algo deste sorriso na peça que pode finalmente ser lida pelo grande público.

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