O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Desarquivando o Brasil CXCVI: Imprensa e ditadura, arquivo (inverso) do esquecimento

Terminei um livro neste ano, o que me tomou muito tempo: Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, publicado pela Patuá. Por essa razão, escrevi pouco aqui e alhures. A obra lida muito com a repercussão do caso na imprensa: a maior parte das fontes são jornalísticas, o que me fez perceber que o caso que estudei, a partir de certa altura, deixou de ser noticiado.

Trata-se de um processo sobre crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que não deixam de ter continuidades nos dias de hoje, inclusive em termos de exploração eleitoral: a apologia aos crimes do Estado continua a dar votos. Por isso, era tão politicamente sensível e conveniente calar a denúncia desses crimes em momentos de golpe, como o de 2016, ou de apoio à volta ostensiva dos militares ao poder. A pauta jornalística havia mudado, pois guinou para a direita.

Dessa forma, pensei que o súbito vazio de notícias sobre um caso de reconhecimento judicial de tortura também presentava uma fonte de pesquisa, porém ao inverso: a ausência de fontes jornalísticas documentava algo: uma tomada de atitude da imprensa, que, aparentemente, havia decidido esquecer a pauta politicamente sensível para a direita. Mesmo na morte do coronel, boa parte da imprensa resolveu ignorar o caso e dizer que ele foi "acusado de torturas" ou algo parecido, e não que a tortura no DOI-Codi de São Paulo tinha sido judicialmente reconhecida em primeira instância, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e no Superior Tribunal de Justiça, nada menos.

Pesquisei e citei de periódicos dedicados aos militares até veículos identificados com pautas de esquerda, como o Brasil De Fato. Meios de comunicação de esquerda em geral eram mais enfáticos contra agentes da ditadura. Mas um problema que atravessa todo o espectro ideológico é a falta de acúmulo: tudo é uma novidade permanente, o que é um problema tanto da imprensa e de seus profissionais, como dos leitores e dos semi-leitores, que devem ser a maioria, se excluirmos os não leitores. Poucos poderão ler um texto além das manchetes. 

Conto uma anedota pessoal. Na época em que eu lecionava, uma colega, que tinha outra formação, estava preocupada com uma disciplina que passaria a lecionar em pós-graduação de Direito lato sensu. Busquei tranquilizá-la afirmando que não se tratava de assunto de "dogmática jurídica" (nome curioso que os advogados atribuem a seus assuntos técnicos), portanto a formação dela era adequada para o tema específico, e que a matéria era ensinada no primeiro ano de graduação e "todas as turmas são de primeiro ano", mesmo as de pós-graduação. Uma semana depois, ela confirmou que eu estava certo...

Em larga escala, trata-se de como funciona o país. Dessa forma, tudo se torna "um museu de grandes novidades", para citar "O tempo não para", de Cazuza e Arnaldo Brandão.

Escrevi aqui em 2022 como os áudios de julgamentos do Superior Tribunal Militar na época da ditadura foram liberados judicialmente por iniciativa do advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes, que já os publicou parcialmente, para que anos depois a imprensa grande tratasse o material publicado anos atrás como "inédito", e que teria sido descoberto recentemente por certo historiador.

A imprensa grande, em vez de grande imprensa. Contudo, o problema ocorre também com periódicos de esquerda que desejam cobrir pautas que tendem a ser ignoradas pelos grandes meios de comunicação. A Agência Pública, por exemplo, fez uma interessante série de matérias sobre as dez empresas investigadas por equipes escolhidas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp, a partir de recursos advindos do termo de ajuste de conduta da Volkswagen (denunciada por sua cumplicidade com a repressão política durante a ditadura militar) com o Ministério Público Federal.

Essas equipes deveriam investigar crimes de lesa-humanidade (imprescritíveis) que pudessem suscitar novas ações do Ministério Público. O resultado gerou um informe público, que pode ser consultado por todos, e, outro, mais completo, que está com as autoridades, para que elas estudem a instauração de inquéritos.

A Agência Pública teve acesso a todo esse material e publicou matérias. Sobre a Folha de S.Paulo, uma das empresas investigadas, lemos que os documentos "indicam que a colaboração" do jornal "com a ditadura foi mais profunda do que se sabia". Lemos que, "segundo a pesquisa o grupo Folha teria emprestado carros de distribuição de jornais para que agentes da repressão os usassem". 

Este é um exemplo de falta de acúmulo: a tese de Beatriz Kushnir que trata desse empréstimo foi publicada em 2004 (Cães de guarda: jornalistas e censores) e foi citada pela Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa, no que foi mostrado no relatório aberto, confirma o que já estava em Kushnir e na CNV, e traz novas entrevistas, que Marina Amaral destaca no Jornal do Brasil.

Outro caso foi a Petrobras: a matéria que a Agência Pública publicou em 30 de maio de 2023 anunciava que "Petrobras participou de tortura e monitorou orientação sexual de funcionários na ditadura". Também não era novidade, claro: em 2022, apresentei trabalho a seis mãos, meu, de Janaína de Almeida Teles e Bruno Boti Bernardi no Seminário Internacional de Políticas da Memória, em Buenos Aires, onde, aliás, estava boa parte da equipe do projeto CAAF que pesquisou a Petrobras. Essa equipe ainda não tinha pesquisado o assunto da orientação sexual dos empregados. Para quem quiser consultar os trabalhos, eles são as da mesa 15 do seminário de 2022, coordenada por Vitoria Basualdo e Andrea Copani: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/2021/08/seminario-xiii-ponencias.php

Nosso título era "Responsabilidad empresarial: violaciones de derechos humanos cometidaspor Petrobras durante la dictadura militar brasileña" Eu falei, entre outros temas, como tortura, violação de direitos dos povos indígenas, a sala secreta de espionagem, a DIVIN etc., dos documentos que indicavam que a Petrobras monitorava a orientação sexual dos empregados seus e das empresas contratadas:


Entre as informações coletadas sobre funcionários estavam dados sobre “comunismo” e “homossexualismo”. Nas fichas ISF (“investigação socio-funcional”), referente aos candidatos a trabalhar nas empresas do grupo Petrobras, encontramos anotações sobre “homossexualismo”, como problema, em relação à Refinaria Paulínia; como motivo de demissão, a empregado de empresa que prestava serviços à Fronape (Frota Nacional de Petroleiros); como “restrição grave” para empregado contratado na própria Petrobrás, entre outros. As fichas “de informação confidencial” dos empregados incluíam quesitos como “Pratica atos de homossexualismo?”.

Renan Quinalha havia localizado alguns desses casos em sua tese sobre a “política sexual da ditadura brasileira”, destacando que “Empresas públicas, como a Petrobrás, foram especialmente influenciadas pela paranoia homofóbica dos órgãos de informação. A orientação sexual dos funcionários aparecia como um dado fundamental para a decisão de dispensar ou mantê-los no emprego.” (Quinalha, 2017: 235).


Ressaltei, tanto no texto quanto na exposição, que quem havia descoberto a questão era Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp e conhecido pesquisador da história e dos direitos da população LGBTQIA+ no Brasil. Por isso, não se tratava de uma descoberta nossa ou mesmo, depois, da equipe do CAAF. O nome de Quinalha, porém, não é citado na matéria da Agência.

Dei alguns poucos exemplos nessas questões ligadas ao passado recente, da ditadura militar, mas é evidente que o problema é mais amplo. Essa falta de acúmulo prejudica a discussão na esfera pública: tudo parece sempre voltar ao ponto zero. Assim, talvez diriam alguns, os velhos invasores podem camuflar-se de novos "descobridores" das Américas.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Maria Callas: os primeiros cem anos

O centenário de nascimento de Maria Callas, a grande intérprete de ópera e uma das maiores artistas do século XX, foi comemorado em 2 de dezembro de 2023. Escrevi, poucos anos atrás, uma nota sobre as "iluminações" que a artista trazia para os papéis que cantava, revelando detalhes que passam ou passavam em branco na leitura de outras cantoras. Depois, outra sobre o filme de Tom Wolf, Maria by Callas, valioso apesar dos problemas.

Eu não iria escrever mais nenhuma nota, porém comprei há dois dias um jornal na banca que pouco tratava de música e teatro, o que é curioso para se referir a uma intérprete de ópera. Ele continha também problemas factuais: sugeria que Callas só teria passado a colaborar com o diretor cênico Zeffirelli na época em que fez a Norma em Paris, bem depois de 1954, ano em que começou a trabalhar com Visconti. Está errado: aquela Norma foi a última produção nova de ópera em que ela cantou, em 1964 e 1965, e em 1955 Zeffirelli já tinha montado para ela O turco na Itália, de Rossini. Depois, ainda viriam La Traviata e Tosca -- duas óperas que ele quis filmar com ela. O texto também dizia que ela esmurrava o chão para chamar os deuses antes de entrar no palco na ópera Medea, de Cherubini. Na verdade, a artista grega era cristã ortodoxa; ela só adotava esses procedimentos pagãos em cena, encarnando o personagem. Minotis, o diretor cênico, havia pesquisado os procedimentos do teatro grego antigo e surpreendeu-se que ela adotasse esse gesto, que estava correto, por instinto e não por ter estudado o assunto; Callas nem mesmo havia visto representações do teatro clássico enquanto viveu na Grécia (era a época da Segunda Guerra Mundial e a atividade teatral praticamente cessou).

Se se pode errar assim na grande imprensa, por que eu não poderia escrever algo mais modesto aqui? Pensei em rascunhar algo como se estivesse a pensar alto na cantora e no seu impacto hoje. Começo a lembrar que o centenário inspirou homenagens. A Ópera Garnier, de Paris, montou uma noite de gala, "Vissi d'arte" (título de uma ária da ópera Tosca, de Puccini) com direção de Robert Carsen, que contava com a própria Callas em vídeo, artistas interpretando-a e números musicais, com regência de Eun Sun Kim. Sondra Radvanovsky cantou árias das óperas Norma, Macbeth, Manon Lescaut e Tosca. Pretty Yende, de La Traviata e La Sonnambula. Elas são sopranos. A meio-soprano Ève-Maud Hubeaux interpretou árias de Carmen e Don Carlo. Bellini, Verdi, Puccini, Bizet. Aqui está um descrição da noite por Louis-Julien Nicolaou: https://www.telerama.fr/musique/vissi-d-arte-le-bel-hommage-de-l-opera-garnier-a-la-callas-7018347.php

O Teatro Municipal de São Paulo também chamou três cantoras para homenageá-la em 8 e 9 de dezembro: as sopranos Camila Provenzale, Eiko Senda e Rosana Lamosa, regidas por Roberto Minczuk, para cantarem árias de Norma, La Traviata, La Gioconda, Andrea Chénier, La Sonnambula, Anna Bolena, Adriana Lecouvreur, Macbeth, Tosca e La Vestale. Bellini, Verdi, Ponchielli, Giordano, Donizetti, Cilea, Spontini.

Poderia citar outros exemplos, mas esses bastam. Todas essas peças estiveram no repertório de Callas, senão nos papéis que interpretou em cena, ao menos no que cantou em recital ou em disco. O importante é notar que não seria possível escolher uma só cantora para cantar esses números. Em Paris, os papéis mais agudos de soprano ficaram para Yende; os mais pesados, para Radvanovsky; os de meio-soprano, com Hubeaux. Em São Paulo, certamente haverá uma divisão desse tipo, já os papéis são vocalmente muito contrastantes, do dramático (Macbeth) ao ligeiro (Sonnambula).

Trata-se da diversidade vocal e dramática de Callas: já nos recitais que ela fez na Grécia na primeira metade da década de 1940, ela unia árias de soprano ligeiro (Lakmé, de Delibes, que ela cantava em italiano), dramático (Tristão e Isolda, de Wagner, que ela então cantava em grego; na Itália, ela interpretaria a obra completa em italiano), lírico (Fausto, de Gounod) e de meio-soprano (La Favorita, de Donizetti). Dez anos depois, ela continuava a fazer esse tipo de tour-de-force vocal. Ela tinha extensão, agilidade e potência: essa combinação se revelaria milagrosa quando passou a se dedicar às óperas do bel canto, o que só ocorreu quando encontrou trabalho na Itália: primeiro a Norma, em 1948, depois Os puritanos, em 1949, ambas de Bellini. Com Puritani, aconteceu o que ela mesma chamou de "milagre": ela cantava o repertório de soprano dramático: Wagner, o Verdi mais pesado, Turandot de Puccini e a Gioconda de Ponchielli. Alguns sopranos dramáticos da época cantavam a Norma, mas nenhuma Os Puritanos, papel de vozes ligeiras. Margherita Carosio iria cantar, mas ficou doente, e Callas substituiu-a, aprendendo o papel enquanto se apresentava como Brünnhilde em A Valquíria, de Wagner, em italiano, que é como se executava esse compositor na Itália nessa época. Dia 16 de janeiro foi a última apresentação na Valquíria, dia 18 ela entrou em cena como Elvira de I Puritani. Ela havia cantado a ária "Qui la voce" para o maestro Serafin e o diretor do teatro La Fenice, em Veneza, que chegaram à conclusão de que ela teria êxito. Foi um sucesso, o que levou ao convite para gravar o primeiro disco, em que cantou Bellini e Wagner.

Para quem não conhece esse repertório, Callas passou deste papel dramático: https://youtu.be/EwuyKZbm_H4?si=TTcbKV-NboKV1OPz&t=3552 para este outro polo da voz de soprano: https://youtu.be/UBTnjr-Rp0U?si=HwjDIWXWvtwH_6l5; tarefa aparentemente impossível, porém realizada. Nessas gravações, ouvimos Kirsten Flagstad e Margherita Carosio.

Irineu Franco Perpetuo publicou no 2 de dezembro, o dia do centenário, um interessante texto, "Maria Callas e o museu do imaginário da humanidade", em que devidamente lembrou que, embora a artista tivesse se dedicado ao resgate das óperas do bel canto, as escolhas estéticas de sua época hoje soam datadas. Ele não detalha a razão, mas se trata principalmente de cortes que se faziam ainda nos anos 1950 e 1960, às vezes de cenas inteiras (por exemplo, nenhuma das gravações preservadas com Callas de Lucia di Lammermoor, de Donizetti, contém o dueto de Lucia com Raimondo, tampouco o de Edgardo com o de Enrico), de árias completas dentro das óperas, de repetições dentro de árias (aparentemente, Callas nunca cantou as segundas estrofes de "Ah, fors'è lui" e de "Addio del passato" na Traviata, de Verdi), ou, muito comum, de cadências. Trinados não escritos e appoggiature também eram, em geral, omitidos pelas práticas então correntes de interpretação. 

Tratava-se de algo da cultura musical da época, que ela aprendeu com maestros como Tullio Serafin. Essas práticas variavam e atingiam também as óperas do período clássico: Vittorio Gui regeu a estreia dela em Medea, de Cherubini, e é a gravação mais integral que temos com ela da ópera: também ao vivo, Leonard Bernstein cortou até finais das árias da protagonista, Nicola Rescigno restaurou os finais mas fez outros cortes, bem como Thomas Schippers (em uma regência pouco inspirada, aliás); o disco de estúdio, com Tullio Serafin, mutilou severamente a obra.

No entanto... Como Robert E. Seletsky escreveu no artigo "The performance practice of Maria Callas" (publicado em The Opera Quarterly do outono de 2004), "Callas foi extraordinária em ser completamente convincente enquanto dava ao ouvinte uma informação incompleta". A força de sua interpretação é tal que a escutamos apesar dos cortes e das falhas das edições de parte do repertório que ela interpretava. Cabe em dois cds sua gravação de Os Puritanos de Bellini, com Tullio Serafin; Callas foi a primeira a gravar a integral da obra, mas, para ouvir uma execução completa da partitura, devemos recorrer a outros discos: por exemplo, a gravação regida por Bonynge e cantada por Joan Sutherland precisa de três cds para incluir toda a música... Essas gravações de Callas ficaram, contudo, por causa da excepcional interpretação da soprano, que constrói um personagem inteiro apesar dos cortes, tal era o seu poder de artista.

Dessa forma, precisamos de outra gravação, mais recente, que não de Galliera com Callas, para ouvir integralmente O Barbeiro de Sevilha; mas provavelmente nenhuma terá uma interpretação do dueto entre o Figaro e Rosina mais engraçada e mais sutil do que a de Tito Gobbi e Callas, desde o recitativo. 

A variedade expressiva de Callas é um dos elementos do seu poder de intérprete. Na ópera Norma, a obra que mais cantou, ela é uma sacerdotisa druida que secretamente mantém uma relação amorosa com um inimigo romano, Pollione, com quem já teve filhos (como ninguém notou, a ópera não explica). Os gauleses estão sob ocupação do Império Romano e querem se livrar do opressor. Ela não só está traindo seus votos de castidade, como seu próprio povo, a quem convence a não lutar contra os inimigos "profetizando" que Roma cairá "por seus próprios vícios". Mas Pollione se apaixona por uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la com ele para Roma. Adalgisa pede a Norma que a libere de seus votos de castidade e conta como conheceu o amado; o dueto é lindo, e tem algo de irônico: Norma observa para si mesma que a paixão aconteceu da mesma forma com ela -- mas, é claro, era o mesmo homem. 

Norma, curiosa, pergunta sobre o jovem; Adalgisa responde que ele é de Roma; a resposta deixa a sacerdotisa mais velha surpresa, e não é que ele está vindo encontrar sua amada? Quando Norma vê Pollione, exclama indignada o nome dele e passa a acusá-lo: "O non tremare, o perfido!".

A variedade de expressão é impressionante; a gravação de 1954 já a consuma, porém sugiro esta interpretação ao vivo na Rádio Italiana de Roma, com a regência de Serafin, e os cantores Ebe Stignani e Mario del Monaco: https://www.youtube.com/watch?v=zM0nKipuTv8

Quando Callas/Norma canta "l'amato giovane" (aos 9 segundos), ela é toda doçura: vê-se que ela gosta de Adalgisa; aos 25'', a palavra "Roma" é cantada com outra cor vocal, sugerindo surpresa. Aos 40'', "Ei! Pollion!", a ira é manifesta. Em 1'11'', a cor escura da voz em "Tremi tu" constrói o clima para o solo "O non tremare", com seus dois saltos para o dó agudo e a genial inflexão de Callas em "pei figli tuoi" (2'06''): quando ela menciona os filhos, ela ataca a frase mais suavemente. Logo depois, ela pensará em matá-los, pois seriam sacrificados pelos gauleses e, caso fossem levados a Roma, seriam escravizados. Não é capaz de fazê-lo, porém. No final da ópera, ela consegue salvá-los; Callas, naquela frase, revela esse traço essencial do caráter da personagem. 

Aqui, extraída da Biblioteca do Congresso dos EUA, esta parte do libreto da ópera com a versão em inglês:



Adalgisa a interrompe: ela não sabia de nada e fica perplexa. Norma começa um solo, "Oh! di qual sei tu vittima", seguido por um trio que contrasta as reações dos personagens. Terminando esta bela parte, Norma volta a acusar Pollione ("Perfido!", 6'54''); ele dá de ombros e chama Adalgisa para fugirem juntos, mas ela não quer; quando Norma diz para ela partir com ele, a jovem recusa mais fortemente: preferiria morrer a ficar com quem ela chamou de "esposo infiel". Norma tem novo solo, mandando o "indigno" ir embora, que também conduz para um trio. Os guerreiros druidas aproximam-se (o coro canta nos bastidores), o que faz o procônsul romano fugir sozinho. Callas aproveita e termina na oitava superior, em um belo ré agudo.

Tudo isso é sublime, embora haja alguns poucos cortes. Para ouvir a música com todas as cadências, temos a edição crítica, que Cecilia Bartoli gravou faz alguns anos com a regência de Giovanni Antonini: https://youtu.be/eKRW2b_WY6w?si=eZGdmoXs91prlwk7, disco de estúdio lançado em 2013.

No recitativo, não há realmente diferença, salvo na menor variedade de cores vocais da protagonista, bem como sua menor potência vocal. As três vozes combinam, porém, porque são todas leves: Sumi Jo, soprano ligeiro (categoria vocal que está mais próxima, provavelmente, do original de Bellini do que o meio-soprano) e o tenor John Osborn. Infelizmente, alguns trechos soam como uma canção de ninar, em vez do confronto aberto da gravação dos anos 1950, impressão que se fortalece com a cadência com que termina a primeira parte do trio. 

A segunda parte me parece confirmar essa impressão de uma expressão mais branda, apesar de o tema rápido aparecer mais vezes do que na edição usada nos anos 1950: https://youtu.be/_u8RC87iURU?si=Z_qKrg3HsnJiEjY9. Não sei se, ao vivo, uma orquestra de dimensões mais reduzidas como La Scintilla também pareceria ameaçar superar em volume essas vozes, inegavelmente menores do que as de Callas, Stignani e del Monaco.

Falei de volume, mas não é essa a questão de Callas que interessa aqui, mas a diversidade dramática e musical (em ópera, quando tudo dá certo, os dois elementos são um só). Hoje, meu momento preferido de Callas está na gravação ao vivo da Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles. Callas não gostou do maestro Molinari-Pradelli (estava acostumada a Karajan nessa ópera...), mas até John Ardoin, em seu livro The Callas Legacy, o elogia nessa ocasião. Lucia é uma jovem traumatizada que é salva da morte por um jovem que pertence a um clã rival, Edgardo. Ele é o único sobrevivente da família. É claro que eles se apaixonam e é mais evidente ainda que o irmão de Lucia, Enrico, está arruinado e quer casá-la com um nobre rico, Arturo, para resolver suas finanças. Edgardo viaja, Enrico aproveita para forjar uma carta a Lucia para que ela ache que foi abandonada pelo amado e aceite casar com Arturo. É o que ocorre, mas Edgardo volta e irrompe na igreja justamente depois de ela ter assinado o contrato nupcial... Escândalo. O irmão e o amado irão duelar mais tarde, enquanto isso os convidados de alguma forma se divertem. Mas vem a notícia: Lucia enlouqueceu e matou o noivo. Ela aparece no salão, com o vestido sujo de sangue, imaginando que está a casar com Edgardo... É claro que ela morre depois de uma cena de loucura de vinte minutos. No último ato, Edgardo já está no cemitério para o duelo; lá, é avisado de que Lucia morreu e o corpo dela chegará. Desolado, mata-se e acaba a ópera. 

A história vem de um romance que nunca li de Walter Scott. A força de Callas nessa ópera, além da voz inesperada para o papel, com mais potência do que os sopranos ligeiros que geralmente o cantam, está em dar verossimilhança ao personagem: a relação de Lucia com a realidade é frágil desde o começo. Infelizmente, a irresponsabilidade das instituições italianas de cultura na época fizeram com que a filmagem daquela apresentação fosse apagada. Ficou o registro de áudio, de qualidade muito inferior ao que os alemães fizeram em Berlim em 1955, quando Callas lá cantou sob a regência de Karajan. Por sinal, essa Lucia na Alemanha é o registro sonoro preferido de Ardoin da arte da cantora.

Mas destaco a interpretação de Nápoles por causa da questão do volume. Callas alternava na cena momentos de grandes dramaticidade com outros muito tranquilos. Nestes, a loucura é praticamente palpável: é evidente que uma calma como esta, "del ciel clemente un riso", não pode ser deste mundo: https://youtu.be/vubgJhit8SU?si=qXglZoGKApm4mXdR&t=591

O portamento que ela fez em "clemente" a 10'09'', em pianíssimo, sempre me corta o coração. A 10'56'', começa a cadência com flauta: Lucia perde a expressão verbal articulada e dialoga com o instrumento. Uma sequência de dós agudos em staccato gera murmúrios de admiração. Callas não canta o mi bemol no fim da cadência (ela o reserva para o fim da cena), mas o si agudo, com uma escala descendente repentina que gera um efeito bem dramático. O público enlouquece, claro; ouve-se algo parecido com vaia, mas são os diversos gritos de bis. O maestro tem que forçar a continuação da cena.

No primeiro ato, ela havia sido vaiada, não por ter errado alguma coisa, mas porque Nápoles era algo como um reduto de Renata Tebaldi (que jamais pôde cantar essa ópera, pois não tinha nem a extensão nem a agilidade necessárias). A força artística de Callas, contudo, conquistou o público hostil, façanha que podemos ouvir nessa gravação e que a grande Birgit Nilsson, outra das maiores cantoras do século XX, testemunhou na plateia, e contou em sua autobiografia, qualificando a cena de loucura como fenomenal.

Ela continuava a ser capaz de uma forte variedade de expressão mesmo quando, na década seguinte, sua voz perdeu boa parte da potência e da extensão. Prova-o esta produção de Tosca, em Londres, em 1964, no penúltimo ano de sua carreira nos palcos de ópera. Não se trata mais de bel canto, como em Bellini, autor da primeira metade do século XIX; a música é de Puccini e o estilo é mais moderno.

A produção é de Zeffirelli e a regência é de Cillario. Floria Tosca é uma cantora que namora um pintor republicano, Mario Cavaradossi, e revolucionário em Roma na era napoleônica. O chefe de polícia corrupto, Scarpia, quer prender o líder dos revolucionários, Angelotti, que fugiu, e cobiça sexualmente Tosca. Para saber onde ele está, tortura Cavaradossi. Scarpia, interpretado por Tito Gobbi, manda abrirem a porta para ela ouvir os gritos do namorado; surte efeito, ela se desespera: https://youtu.be/xnFlg1z1hPc?si=5ISvT0sQr5kUhO3O&t=990.

Ela repete "eu não posso mais" (17'16''), a segunda vez quase como um eco: a personagem mal consegue se expressar. Em 17'30'', quando pede a Mario para que a deixe falar, assume outra expressão: está próxima do choro. Em seguida, o uso da voz de peito quando fala da alma torturada é bem tocante. Em 18'42'', depois do grito do tenor, ela revela o esconderijo falando: mesmo sem cantar, Callas é completamente convincente. Depois, grita "Assassino!"; diante da fúria do torturador, ela suplica para ver seu namorado. O fato de ela não exagerar (algo raro em apresentações dessa ópera) torna tudo ainda mais real. Nesses três minutos, há mais expressão (de Callas e de Gobbi, também genial) do que em certas representações completas...

Essa riqueza é possível porque eles são grandes músicos e grandes atores: em ópera, essas duas veias artísticas têm que vir juntas, por isso o gênero é tão difícil e tão fascinante quando tudo, ou muita coisa, dá certo. Um dos papéis mais fortes de Callas foi a protagonista de Alceste de Gluck, uma obra do século XVIII, com regência de Carlo Maria Giulini, que foi miseravelmente preservada pelas instituições culturais italianas em um som péssimo. Infelizmente ela só a interpretou daquela vez, em 1954. 

A rainha Alceste, como se sabe, oferece sua vida aos deuses para salvar o rei Admeto. No final, é claro que os deuses, comovidos, restituem-lhe a vida e tudo termina bem: o lieto fine era uma tradição desse momento da história da ópera.



O segundo ato termina com esta aceitação do sacrifício, "A' vostri lai" (nas versões em francês, "Ah, malgré moi"). O trecho é lento, com frases em legato. Subitamente, a música muda e ganha urgência a partir de "O Ciel!". Alceste canta até "Este supremo pranto/ parte no peito meu coração."

Callas, com Giulini, canta com muita calma, até "O Ciel!": https://youtu.be/3k-RdBsggy8?si=ZY95-QyChqooufHx&t=5212; daí, ela faz um longo crescendo até repetir a última frase com grande ênfase: o público aplaude, embora a música não tenha acabado e o coro tenha começado a cantar.

O drama clássico está lá. Se comparamos com uma interpretação mais recente, a de Anne Sofie von Otter na regência de John Eliot Gardiner em 2009, temos outra coisa: ela também canta com suavidade a primeira parte da ária, mas o contraste na passagem "O Ciel!" é bem menor em dinâmica; com isso, a personagem não só parece sofrer menos como, paradoxalmente, soa menos resoluta. Com Gardiner, a repetição do trecho é mantida, porém von Otter não oferece realmente muito mais do que na primeira vez. Tampouco o maestro.

Em concerto, Callas podia escolher árias contrastantes em termos de exigência vocal e de afetos. Uma apresentação em 1958 em Los Angeles preserva o repertório de uma turnê nos Estados Unidos. Nas notas do cd, John Ardoin afirmou que ela estava em grande forma nessa ocasião. O repertório consistiu em La Vestale, Macbeth, O Barbeiro de Sevilha, Mefistofele, La Bohème e Hamlet: óperas de Spontini, Verdi, Rossini, Boito, Puccini e Thomas, o único francês. Os títulos são todos de ópera e do século XIX: de 1807 (Vestale) a 1896 (Bohème). Callas jamais cantaria música contemporânea: paradoxalmente, ela foi uma artista revolucionária que se especializou em cantar música do século anterior ao que viveu. 

No entanto, os estilos envolvidos no concerto são diferentes e as exigências vocais, também. A necessidade atual de chamar três cantoras no mesmo concerto para homenagear Callas se repetiria, se alguém tentasse repetir esse programa.

A voz dramática de Lady Macbeth contrasta com a leveza da Ofélia francesa: duas transcrições operísticas de peças de Shakespeare, com dois personagens que, mesmo no teatro falado, não devem ter a mesma voz. São duas peças sérias; já "Una voce poco fa", da personagem Rosina do Barbeiro de Sevilha, é cômica. Ouvem-se até algumas risadas no meio da ária quando ela canta a palavra "ma" ("mas", que introduz uma virada no discurso da personagem sobre si mesma).

Nenhuma dessas três árias estava no repertório de, para lembrar outra grande cantora, Renata Tebaldi, ao contrário de "L'altra notte in fondo al mare", do Mefistofele, de Boito, uma outra ária de loucura. No entanto, nunca ouvi de Tebaldi nada parecido com a coloratura, o surpreendente diminuendo no si agudo e os trinados que Callas realiza nesta apresentação.

Sobre as duas outras árias do programa, Callas é provavelmente a intérprete mais convincente da grande ária da Vestale; ela não se destaca, contudo, como Musetta de La Bohème: o personagem submerge na interpretação bombástica. Por sinal, ela nunca chegou a gravar esta ária de Puccini, tampouco interpretou Musetta no palco - ela apenas gravou em estúdio a ópera completa, mas no personagem de Mimi. Mas apenas essa seleção não convence. Anja Silya, por exemplo, cantou o papel título da Elektra, de Richard Strauss, e a Rainha da Noite de A flauta mágica, de Mozart. Trata-se de dois extremos vocais, mas ninguém diria que ela foi a melhor nesses papéis, nem mesmo muito boa... 

O que distinguia Callas era a profundidade com que ela estudava o personagem, tanto em termos dramáticos quanto musicais, para que pudesse apresentá-lo com uma convicção forte de intérprete. Pode-se até não gostar dela em um ou outro papel, mas não negar que ela havia preparado e apresentava uma concepção do personagem. Callas não era uma artista de rotina, ao contrário, por exemplo, das fracas produções do Metropolitan Opera House da época, conforme ela declarou em 1958, quando teve seu contrato com aquele teatro cancelado por Bing. A seriedade no trabalho, creio, faz parte do legado de Callas, que fez o público exigir, por exemplo, que os cantores de ópera fossem capazes de atuar.

Em suma, o recital é uma prova da variedade vocal e expressiva da intérprete: o registro apenas sonoro comprova não só as possibilidades da voz (e não o seu "uso do microfone", como escreveu certo comentarista: trata-se de uma gravação ao vivo e pirata), como sua força de grande atriz.

Por isso sua carreira foi mais curta do que a de outras colegas? É uma das teorias sobre o declínio vocal de Callas. mas ela mesma lembrava que o que fazia não seria nada estranho no século XIX. Seria raro, mas não único; um exemplo foi Lili Lehmann, que cantou na estreia de O anel do Nibelungo, de Wagner, em 1876, mas chegou a fazer algumas gravações antes de completar 60 anos, no início do século XX, onde ouvimos tanto Konstanze do Rapto do serralho de Mozart, como Leonore, do Fidelio de Beethoven, e La Traviata, de Verdi, ou seja, como soprano ligeiro, dramático e lírico. Creio que não encontraríamos hoje uma cantora que ousasse apresentar em concerto os três papéis. Com essas possibilidades, ela também cantou ao vivo e gravou trechos da Norma...

Callas sofreu mais, provavelmente, em razão de outra variedade: a de doenças e problemas de saúde, como lipodema, enxaqueca, dermatomiosite, hérnias, pressão baixa, vertigens, hérnias, sinusite, miopia e glaucoma, problemas de audição, problemas ginecológicos, insônia, dor nossos ossos, fadiga, inflamação nos maxilares, deficiência crônica de vitamina B12, depressão, alergias, hipermobilidade etc. A soprano Ziazan, que mantém o canal Ghosts of Opera, criou um vídeo, "Diagnosing Callas - What REALLY happened to her voice?", em que ela interpreta (bem) o fantasma da grande cantora e lê a longuíssima lista de sintomas conhecidos, apresentando a hipótese de que Callas teria sofrido da síndrome de Ehlers-Danlos: uma deficiente produção de colágeno, que pode afetar tudo no corpo. O vídeo apoia-se extensamente na biografia que Lindsy Spence escreveu, "Cast a Diva" (um trocadilho), que é realmente informativa. Lemos nela que em 1953, quando Callas estava tentando perder peso (acabou conseguindo), foi procurar um médico chamado Coppa por causa de seus problemas hormonais e de metabolismo: teve de ouvir que os artistas eram meio malucos e que tudo estava "na cabeça dela"... 

Era o tipo de resposta que costumava receber para suas queixas. Outro exemplo dessa incompreensão, registrado em áudio, está nos comentários de Alfred Hubay sobre a estreia da soprano no Metropolitan: ela não estava bem de saúde, mas esse funcionário do Met preferiu achar que suas dificuldades ou eram psicológicas e/ou efeitos do declínio vocal. É curioso ouvir também que Callas (vários diziam isso) não teria conseguido emagrecer nas pernas; na verdade, ela tinha problemas linfáticos, que levavam ao inchaço dos membros inferiores.

Ainda sobre questões de "cabeça", um possível sintoma que Ziazan não lê, mas que encontramos na autobiografia de Zeffirelli, era o de que cabelo de Callas parecia "morto" no final da vida. O colágeno é importante também para o cabelo.

Ela parecia estar quase sempre doente, sem encontrar realmente ajuda dos médicos, e sua vida encontrou outras dificuldades: ela estava na Grécia durante a Segunda Guerra e enfrentou a escassez de comida, ameaças de morte tanto dos italianos fascistas quanto dos comunistas que lutavam tanto contra os fascistas quanto contra os ingleses, para quem ela trabalhava; a péssima relação com a família, e não só com a mãe, que a chantageou e difamou; a tentativa de estupro no conservatório de Atenas; a incompreensão dos críticos e dirigentes de ópera de sua voz e de seu estilo; o escândalo que a imprensa criou por ela ter cancelado por doença uma récita de Norma em Roma, que gerou a ameaças de morte e a necessidade de deixar a Itália; para não falar do que ocorreu após ter-se apaixonado por aquele armador grego: depois disso, a vida pessoal comprometeu seriamente a carreira artística. Ademais, a saúde piorou bastante, e os vídeos da década de 1960 mostram-na muitas vezes com o fôlego curto, lutando contra o apoio, a voz instável.

Mesmo que não possamos saber com exatidão por que ela sofreu com tantos problemas médicos, evidentemente a saúde frágil comprometeu a carreira da cantora, que morreu subitamente do coração aos 53 anos. Dito isso, o legado artístico que ela deixou foi tão intenso que continua a irradiar-se sobre o mundo da ópera. Nesse sentido, sua carreira ainda não terminou: estamos apenas nos primeiros cem anos de Maria Callas. Nós passaremos, mas outros verão, caso o Antropoceno não destrua tudo, o segundo século d.C.


P.S. de 17 de dezembro: Não é só a imprensa paulista que pública textos superficiais é com erros sobre Callas: a Gramophone também. A revista até encurtou a carreira da artista numa linha de tempo errônea e mal pensada.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A presença de Ana Maria de Almeida Camargo: 7 de dezembro no Centro Maria Antonia

 


No Centro Universitário Maria Antonia, dia 7 de dezembro de 2023, a partir das 15 horas, ocorrerá uma homenagem à historiadora Ana Maria Camargo, que faleceu neste ano. Como se sabe, sua contribuição para a Arquivologia e para as pautas de memória, verdade e justiça foi fundamental. Ela é um dos casos relativamente raros de pessoas que uniram a atividade acadêmica e a militância social.

Os palestrantes, que foram colegas e/ou alunos e/ou companheiros de militância da homenageada, falarão de sua trajetória profissional e política, que inclui o trabalho com os documentos do Brasil: Nunca Mais, projeto fundamental para o resgate da memória e para a redemocratização do país. 

O evento incluirá trechos de vídeos com Ana Maria Camargo discursando, projeção de fotos e uma surpresa final: um registro inedito da historiadora.

Esta foi a última foto que tirei dela, em 15 de abril de 2023, no lançamento do livro Feminismos, de Maria Amélia de Almeida Teles. No lado esquerdo, está a historiadora Janaína de Almeida Teles. Ela foi enviada para projeção no evento, que deverá ser o primeiro de muitos, tamanho é o impacto de sua carreira.



sábado, 2 de dezembro de 2023

"Consanguíneo": um réquiem escrito por Eduardo Quina

Eduardo Quina publicou durante a última pandemia Consanguíneo (Porto: Officium Lectionis, 2021). Quando o li, eu estava ensaiando o Requiem de Mozart no Coro da Cidade de São Paulo. Achei que se tratava de um encontro significativo, porque se trata de poesia sobre morte, mais especificamente da mãe. 

Os poemas são curtos e em versos livres: em geral, cada divisão do livro soa como um poema só, dividido em pequenas unidades, uma em cada página. Na primeira parte do livro, "Morrer ou enlouquecer", um Miserere, lemos a referência entre a relação entre mães e filhos:


da terra nascem inócuas flores:
não sobrevivem ao sangue puro das mães (p. 21)


selam as veias com sangue
para silenciar a dor dos filhos: (p. 25)


minha mãe estava em mim
como uma constelação paciente
que sangrava a minha dor: (p. 27)

O ponto alto destas referências é provavelmente este: embora mortas, as mães continuam a alimentar os filhos:

pedem perdão dentro das suas sepulturas:
no interior do seu ventre há ainda alimento:
é o corpo em decomposição (p. 32)

Neste caso, trata-se da fonte da poesia. Estamos, pois, em terreno dos mitos que ligam o poeta à morte, como o de Orfeu. Quina, por isso, não soa nada falso quando assume esta linguagem mais próxima do simbolismo:


[agora guardo em mim seres imóveis
em forma de espectros:
depois solto-os à feição de aves
para que espalhem inocentemente a morte
ou
um deus em forma de suicídio] (p. 34)

Em linguagens mais prosaicas, passagens como essa não teriam lugar. Não é o caso da poesia de Quina, permeada de figuras de linguagem.

A segunda parte do livro é intitulada a partir de Leopoldo Maria Panero ("O jogo da cabra cega ou 'essa beleza demente da infância' [Vestigia Dei]"), o que nos faz esperar que a linguagem seja arremessada para as fronteiras da razão. Algo disso acontece, de fato, mas a grande marca da seção é a violência dos temas, especialmente na ligação entre infância e Igreja:


num charco de flores
o verme
apodrece numa pequena
concentração
de luz

[a criança estilhaça-se impotente
contra os vitrais da igreja] (p. 41)


[ninguém fala a tua
língua puta
ó deus] (p. 45)

 Marca-se o anticlericalismo desta seção:


[é domingo:
                    deus descansa de todas as mortes]


A parte seguinte, "Natureza morta", continua o anticlericalismo da anterior e acusa o "usurário das promessas de deus". 
O livro traz uma nova divisão chamada "Maligno", destaca com as epígrafes da conhecidíssima frase de Adorno sobre poesia e Auschwitz e o artista português Rui Chafes: "A beleza é impossível sem as marcas da morte". De fato, há uma diferença: predomina a visão de "estamos mortos e ainda respiramos" e a escritura de uma "biografia insuportável da perda" desde a infância. A maternidade volta a aparecer, porém não na figura de uma pessoa, mas como fonte do aniquilamento: "um útero guarda ainda a aflição / de um corpo."
Em "Ausência (regresso a Orpheu)"; o mito é nominado no próprio título da seção. Esta parte me parece menos bem realizada: esta invocação explícita aos deuses é menos poderosa do que as outras partes faziam e o discurso poético perde intensidade. Uma passagem como "[afinal, o que pode a poesia?]" tanto enuncia o problema quanto é parte dele.
Em "Labirinto", concentra-se o discurso no símbolo da flor (que aparece por todo o livro, às vezes metonimicamente com as referências a pétalas). 

no corpo que sangra
subsiste uma flor
por entre os dedos lâminados
de impotência:
pétala a pétala
compões o rosário
do sofrimento:
    é o crime pelo fogo roubado. (p. 160)

Novamente, a referência ao mito no verso final (Prometeu) vem explicar a imagem, o que não é a melhor coisa a se fazer em poesia.
Esta seção tem subdivisões; depois do "Pórtico", chegam "Sombras", que citam o próprio poeta em epígrafe, suas "sombras mortas entre os dedos". Aqui, o complexo materno proporciona a força de passagens como esta:

depois, há um espaço em ti que pode ser um lugar:
e escondes-me no teu útero para
que te possas ausentar. (p. 174)

Estes versos parecem anunciar a poética do livro:

escrevemos na rudeza das mãos
a anatomia imprópria das sombras. (p. 185)

Na última subdivisão, "Sem saída", em que a epígrafe novamente revisita poemas anteriores seus, insiste-se no simbolismo com referências religiosas e/ou antirreligiosas: "a minha memória/ são as cicatrizes de deus."
Depois da "Cegueira", um "Epitáfio". São dois poemas, porém o último devora o anterior, que tem passagens explicativas a contrastar com as melhores passagens de Consanguíneo. O final é interessante: o gesto lembra o de Cecília Meireles na parte 7 de Elegia, outro poema fúnebre, que a poeta dedicou à avó Jacintha Garcia Benevides e publicou no fim de Mar absoluto. Nos dois casos, o poeta morre também. Cecília, porém, continua o poema.
O livro de Quina é longo, mas suas partes fortes compensam de longe as que caem na tentação de explicar ou reiterar o verso. 
Um réquiem, naturalmente, é uma missa e, por essa razão, pressupõe uma relação forte com o sagrado, seja para consagrá-lo, seja para lutar com ele, em revolta contra a morte. O poema final revela a fé de que deriva a força desta poesia -- ela só pode acreditar na dor:

dentro de ti a dor. a dor torta. situada.
como uma extensão de deus. (p. 207)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Eu e Tu" de Jorge Roque e o fôlego em xeque

Jorge Roque lançou Eu e Tu (Lisboa: Maldoror, 2021) ainda durante a pandemia. Em tempos de isolamento social, um livro com esse título poderia surpreender. Composto por breves textos em prosa, que oscilam entre o conto e o poema em prosa, ele se inicia em plena taberna com a visão de um bêbado com uísque, o que leva a reflexões sobre a escrita, e termina com um encontro de vizinhos no elevador.

Esses encontros seguem-se com mal-entendidos que estão "sempre na verdade" ("O Belo"), palavras duras ("A mãe, apanhada de surpresa e destroçada no seu amor de mãe, sim, porque uma mãe é uma mãe, sublinha respeitoso, nem pensa no que lhe responde: querido, eu amo‑te, mas com esse tumor que tens na cabeça não chegas ao natal", em "Uma grande anedota"), machismo ("É claro que as gajas chateiam sempre, retoma o fio do discurso, está‑lhes no sangue, não sabem estar quietas, ficar no seu lugar, têm de estar sempre a remexer‑se, a questionar, a interpretar", em "Adrenalina e testosterona"), mais bêbados com uísque ("O cavalo de Gary Cooper") e mais bebidas e jantares, até mesmo em casal ("Joaquinzinhos para dois").

Os cristãos fanáticos a insultar os passantes e a pregar também não conseguem passar bem o seu recado:  


O absurdo de prosseguir, enérgico e convicto, como se entre os ferros e o cimento dos pilares houvesse alguém que o ouvisse. E as suas palavras, justas ou injustas, lúcidas ou insensatas, extinguiam‑se no vento frio de janeiro sob o testemunho da rua deserta. Poderia até ao fim dos tempos perorar a sua razão, a sua justiça, a sua verdade. Para lá de todas as disputas, uma só certeza se podia alcançar: ninguém o ouviria. ("Jesus, filho de ninguém")


Barak Obama é invocado por causa de um cachorro chamado "Barak"; nessa história, ocorre uma triste partida, o que leva a este comentário: "A vida é tramada, disse‑lhe, para ultrapassar o silêncio. Se fosse um mundo cão não era mau, mas é pior este em que vivemos." 

Uma exceção no livro (e na obra de Jorge Roque), a centralidade de um personagem feminino, aparece em "A gargalhada", em que histórias de violência sexual são acompanhadas do "olhar com que o gordo, o empregado de mesa e eu lhe observaríamos as mamas, coxas e rabo". Em seguida, aparece mais uma dose de machismo na voz de frequentadores portugueses de restaurantes: "pois, que eu saiba, todos somos filhos de um homem e de uma mulher, por conseguinte, sem mulheres não haveria homens e vice‑versa, não era preciso as feministas virem com reivindicações parvas" ("Chulipas").

Machismo e xenofobia somam-se no bem intitulado "Os portugueses": "com as mulheres que agora há por aí, tão diferentes daquelas do seu tempo, todas cheias de santos e pecados, e não se referia às brasileiras ou às ucranianas, com essas nem era preciso engate, o que queriam era a autorização de residência, referia‑se a portuguesas, chavalas algumas".

Esse preconceitos parecem reforçar a incomunicabilidade que está no centro do livro, resumido nesta passagem: "Fala para se ouvir falar, é o que dói mais escutar. Fala para se ouvir a ser ouvido. Ninguém o ouve e ele, mesmo fingindo, sabe‑o." ("Náufrago")

Onda há sucesso na comunhão (significativamente, com animais não humanos, desprovidos da fala articulada) é a interessante culminação da filosofia na construção de uma "Capoeira" para gatos, em contraste com o patético de um professor de fala arrogante de "Guedes", história em que voltam o restaurante e seus personagens.

O final, "A luta", não se dá sem evocar de longe a conclusão de O tempo reencontrado, o último volume de Em busca do tempo perdido, de Proust. Aqui também temos um velho senhor a equilibrar-se com dificuldade. Em Proust, a partir daí temos uma impressionante imagem do tempo, com o solo distanciando-se dos pés. No breve texto de Jorge Roque, os passos estão contados; mas os vizinhos, separados por décadas de vida e alguns andares, acabam por ter um breve encontro. 

Nesse ponto é que se pode ler algo como uma alusão à pandemia de covid: "É uma vida, fôlego a fôlego calculada, basta o ar escasso consumido numa breve troca de palavras para que o frágil equilíbrio se desfaça e o peito arqueje em busca do precioso ar." 

Mas a questão é outra: a comunicação põe o fôlego em xeque. Por isso, apesar de nunca mencionar a pandemia, neste livro o problema do isolamento impõe-se como, talvez, uma condição vital.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Relançamento de Memória e sociedade, de Ecléa Bosi

 


Em 11 de novembro de 2023, às 16 horas, em São Paulo, ocorrerá o relançamento do clássico de Ecléa Bosi Memória e sociedade: lembranças de velhos. Nele falarão Amelinha Teles, Fabio Weintraub, Luciana Araújo, Paulo de Salles Oliveira, com mediação do historiador Tiago Bosi, neto da autora, falecida em 2017. O evento ocorrerá na Livraria Simples (Rua Rocha, 416).

Em 16 de agosto de 2023, ocorreu outro evento de relançamento, mas de cunho acadêmico, no Instituto de Psicologia da USP. Felizmente, ele foi filmado: começou a ser transmitido com som (embora fraco) depois de uma hora e vinte minutos, o que impediu o registro sonoro da apresentação do CoralUSP, mas não das falas da mesa, que podem ser vistas e ouvidas por meio desta ligação: https://www.youtube.com/live/GImAxTK4N6U?si=2gk0TUKYTSSg-Sm4&t=4832

Destaco na interessante mesa a fala da deputada federal Luiza Erundina, que conheceu e militou com Bosi (e se apresentou não como deputada, mas na condição de antiga amiga da autora), começa a falar perto de 1 hora e 33 minutos. Ela observou que o lema "não há democracia sem o poder popular" é a "perspectiva" da obra de Ecléa Bosi, o que é muito acertado. Mencionando a militância contra a ditadura militar de ambas, evocou, Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de Psicologia da USP e militante da ALN que, lembrou Erundina, "deu a vida pela liberdade": ela foi executada em 1972, depois de torturas que incluíram a "coroa de Cristo", uma fita de aço usada para esmagar o crânio.

Comento que, em outros espaços, a lembrança de um morto político suscitaria gritos de "presente"; isso não ocorre nesse ambiente da USP.

O livro traz as mencionadas lembranças de velhos com as análises da autora, configurando uma pioneira obra (no Brasil e no mundo) de memória social. Em outro momento de destaque da mesa, Fabio Weintraub, a partir de duas horas e 9 minutos do vídeo, fala da "comunidade de destino" estabelecida entre os depoentes e a autora: trata-se de um método da pesquisa, que significa, citando Bosi, "sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados". Daí, a "argúcia política" da análise que Ecléa Bosi faz da memória social, diz Fabio Weintraub.

A partir de 2 horas e 39 minutos, Luís Galeão destaca em Memória e sociedade a lembrança de Iara Iavelberg, que foi aluna do Instituto e nomeia o seu centro acadêmico. Ela foi amiga de Bosi. Guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária, Iavelberg foi outra morta política da ditadura militar, para quem o governo forjou uma versão oficial de morte por "suicídio", desmentida posteriormente por laudos.

Com efeito, é inegável o caráter político desta obra, editada pela primeira vez em 1979, no início da gestão do general ditador João Figueiredo. Esse caráter reflete, devo lembrar, a própria trajetória pessoal da autora. Ecléa e seu marido, falecido em 2020, Alfredo Bosi, engajaram-se na oposição à ditadura militar, mas isso é pouco falado, até por causa da discrição dos dois intelectuais a respeito de sua própria militância. Entre outras ações, eles esconderam militantes procurados pela polícia. Espero que essas histórias - e as memórias dos que os conheceram - ainda sejam resgatadas e contadas. Ela mesma resgatou tantas histórias alheias.


quinta-feira, 6 de julho de 2023

Desarquivando o Brasil CXCV: Zé Celso e os territórios do teatro e da liberdade

O homem de teatro morreu hoje, e o que posso dizer sobre ele é que, sempre que precisávamos de Zé Celso, José Celso Martinez Corrêa, ele estava lá.
Anos atrás, quando estava em São Paulo a maior ocupação urbana da América Latina, e ela estava sob ameaça de uma ação de reintegração de posse, Zé Celso apareceu para dar solidariedade. Fabio Weintraub fez o convite para ele se apresentar na Ocupação Prestes Maia e publicou fotos desse momento. O Oficina fez lá, em 20 de fevereiro de 2007, uma apresentação baseada em Canudos, com Zé Celso no papel de Antônio Conselheiro, na analogia entre a luta pela terra na peça e na luta pela moradia na cidade. No mesmo dia, o grande geógrafo Aziz Ab'Saber (um apoiador de primeira hora da ocupação e de sua biblioteca, organizada por Severino Manoel de Souza) falou sobre Canudos:

Naquele momento, pensei que a concepção de teatro de Zé Celso passava pela noção de territorialidade, o que lhe permitia participar de forma tão pertinente dos debates sobre o meio urbano e a habitação, e de compreender o tipo de espaço que é o Teatro Oficina - o que era mais uma razão para lutar por ele e pela obra de Lina Bo Bardi. A configuração do Oficina, com o palco como rua e o público naquelas arquibancadas, tantas vezes convocado a delas descer (e quantas vezes os artistas nelas sobem), parece-me acentuar o caráter político do teatro, não só pelos textos encenados, mas pelo próprio espaço da encenação, do rito.
Canudos, por sinal, foi um dos três maiores espetáculos que vi em teatro (salvo o teatro de ópera, que é outro gênero) na vida, e os outros dois não eram brasileiros.
Em outro momento em que pedimos ajuda a Zé Celso foi o lançamento em São Paulo de uma campanha que foi realizada nos idos de 5 de abril de 2014 em prol das terras e direitos indígenas, "Índio É Nós", terminaria com uma mesa com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl e a demógrafa e antropóloga Marta Azevedo. Elas não precisam de apresentação, claro. Eu fiz a mediação.
Kehl teria feito a última fala: ela aproveitou para convidar para o lançamento do livro de memórias de Augusto Boal e aproveitou para "reverenciar" Zé Celso, que estava assistindo. Ele levantou-se e falou, de improviso, entre outras coisas, que "O Shakespeare fala de ser ou não ser, o que é maravilhoso. Mas o Oswald fala de tupy or not tupy no sentido do corpo indígena, que todos humanos têm muito".
Ele tinha 77 anos. Disse que passou a ver o terreno do teatro Oficina como tekohá, mencionou a concepção revolucionária de Lina Bo Bardi e o conflito com Sílvio Santos, e a razão de insistir na luta: "Não é para mim. Eu não podia deixar que [...] aquela terra fechasse".
Marcelo Zelic passou por trás de Zé Celso para falar com Maria Rita Kehl. Logo depois, Zé Celso fez outra surpresa e terminou a fala. Depois disso, chamei-o de "xamã do teatro brasileiro", lembre que, dia 19, faríamos a "Marcha para refundação da cidade de Piratininga" com o pessoal Teatro do Oficina e chamei David Karai Popygua (o mesmo que, nove anos depois, faria o duplo indígena de Peri na ópera O Guarani, de Carlos Gomes), que chamou para os atos do seu povo em 17 e 24 de abril.
Por causa da campanha, nós queríamos em São Paulo fazer um ato com os Guaranis do Jaraguá no 19 de abril e chamamos algumas companhias de teatro para participar. A única que aceitou foi a maior, a mais antiga e a mais jovem de todas com que falamos, o Oficina, por causa do comprometimento de Zé Celso com as causas indígenas. Se bem me lembro, foi ele que deu a ideia de que o ato fosse uma "refundação" da "cidade de Piratininga".
Saímos do Vão do MASP (depois eu leria um ficcionista contemporâneo escrevendo em nome próprio, fora dos livros, que "lugar de índio não é na Paulista"; os Guaranis já fizeram VÁRIOS atos lá), com Letícia Coura puxando com sua forte voz "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, com uma estrofe nova escrita por Fabio Weintraub, que era um dos organizadores da campanha.
Descemos a Consolação, paramos no Cemitério para reverenciar Oswald de Andrade, fomos até o Parque Augusta, que estava sendo ameaçado de destruição pelo capital imobiliário. A mobilização para conservá-lo durou alguns anos e foi vitoriosa. Lembro de David identificando, dentro do Parque, árvores da Floresta Atlântica.
Boa parte do pessoal ficou lá, onde havia uma programação própria da campanha pelo Parque. Os que restaram seguiram até o Bexiga e o Oficina. João Baptista Lago fez um vídeo com Zé Celso e os outros artistas do Oficina: https://www.youtube.com/watch?v=9MAnqDrIIpM. A performance incluiu os Choros 10 de Villa-Lobos e cantos antropofágicos.
Zé Celso estava bem, cantou e dançou. Também nesse momento víamos sua adesão à causa indígena 
pela questão da luta territorial.
Em 2014, vi sua peça Walmor y Cacilda - O RoboGolpe. Cinquenta anos depois do golpe que derrubou João Goulart, ele via e encenava a atualidade do autoritarismo e a resistência da cultura. Escrevi uma nota naquela ocasião, destacando a questão das terras indígenas:

Zé Celso, sempre antenado com o presente, inclui os índios desde o início da peça. Para ele, e isso é explicitado no "poema primal" que lê perto do final da peça (levanta-se nesse momento; é impactante, pois estava em cadeira de rodas até então), o núcleo do golpe é o "direito absoluto de propriedade": em nome dele, e contra as reformas da base, foi dado o golpe, em nome dele os índios são espoliados de suas terras, e o próprio Oficina está sendo ameaçado (há décadas) pelo grupo de Silvio Santos.

Já no início da peça (no vídeo, depois dos 28 minutos), os atores declamaram "Sem reintegração de posse/ A terra é de Oxóssi". Contra os "assassinos da mata selvagem, nossa mãe geratriz".

Em 2017, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) autorizou que prosseguisse o processo de autorização da construção das torres do Sílvio Santos - um destombamento, de fato. Outro dia mesmo escrevi sobre OUTRO destombamento na região, o que parece que se tornou uma especialidade dos soi-disant órgãos de defesa do patrimônio em São Paulo.
Naquele ano, o Oficina estava remontando O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Em 1967, Zé Celso foi o primeiro a montar essa peça. Como escrevi na época, tanto naquele momento quando na remontagem, com o próprio Renato Borghi voltando meio século depois ao papel de Abelardo I, Oswald era encenado depois de um golpe de Estado. Por causa de seu teatro, o Oficina foi considerado subversivo e foi destacado em panfleto do Ministério da Educação, o conhecido "Como eles agem". Segundo o documento, "é o teatro também utilizado como poderosa arma ideológica e de dissolução dos bons costumes"; mencionam-se os exemplos de O, Calcutá e Hair, e o Oficina como um dos grupos teatrais "acobertados sob o rótulo de 'Arte'", eles "movimentam-se no sentido de disseminar a ideologia comunista através de suas peças":





A peça referida é Na selva das cidades, de Brecht, que o grupo encenou com direção de Zé Celso já em 1969. O documento está no Arquivo Nacional.
A encenação, segundo artigo de Patricia Morales Bertucci, era crítica da ditadura justamente por meio da  apropriação dos materiais urbanos:

[...] foi uma intervenção no espaço simbólico do bairro do Bixiga, pois a arquiteta Lina Bo Bardi se apropriou dos objetos abandonados pelos antigos moradores dos cortiços desocupados pelo Estado, dos restos das demolições e do material de construção da Ligação Leste-Oeste no entorno do Teatro Oficina. Com isso, o grupo transformou a materialidade urbana em linguagem, o que considero como uma forma artística crítica de oposição simbólica da dominação do espaço pela ditadura

Tratava-se de restos produzidos pelas intervenções urbanas do prefeito nomeado pela ditadura, Paulo Maluf. É muito interessante que o Oficina tenha feito desses resíduos recusados do desenvolvimentismo um território de crítica e liberdade.
Na nota que escrevi em 2014, incluí alguns trechos de seu depoimento dado em uma das vezes em que foi preso pela ditadura, em 1978. Uma das prisões anteriores foi a de 1974, ano, como se sabe, da Revolução dos Cravos, que deu fim à ditadura salazarista em Portugal. Zé Celso foi para lá depois da prisão e, naquele país, teve suas atividades e declarações acompanhadas pelos serviços de informação, como soía acontecer com os exilados, banidos e pessoas consideradas perigosas para o regime que estavam no exterior.




Trata-se de um documento confidencial do Ministério da Aeronáutica de 6 de dezembro de 1974, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Não verifiquei se a citação de Zé Celso no jornal português Diário de Lisboa está correta, mas é muito provável que esteja (deixo para algum eventual leitor eventualmente verificá-la). 

Afirmou ainda que, em PORTUGAL, "a liberdade está na rua" e que essa liberdade deve ser aproveitada para criar um Teatro novo, para se demonstrar "as condições que favorecem o fascismo". 

Um teatro como o Oficina, que faz da rua seu território, é capaz de nela soltar a liberdade para combater o fascismo, ainda um problema no Brasil. Imagino que a Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, com o viúvo Marcelo Drummond e os outros artistas, continuará a saber fazê-lo.


quarta-feira, 7 de junho de 2023

Alberto Pimenta homenageia Enzensberger: Foge a nuvem com o tempo

   


Em uma enquete de poucos anos atrás, indiquei Alberto Pimenta e Hans Magnus Enzensberger como poetas realmente jovens, um pouco, talvez, provocando gerações que nasceram mais recentemente. Só um pouco, no entanto. O que me encanta neles era o fato de rejeitarem o conformismo, que é algo que envelhece, enquanto muitos autores jovens apenas no sentido cronológico limitam-se a ajustar-se a conformidades novas ou nem tanto.
O escritor alemão morreu em 24 de novembro de 2022 aos 93 anos. Pimenta, como se sabe, tem muitos laços com a cultura germânica, pois foi professor na Universidade de Heidelberg durante seu exílio e chegou a publicar um interessante livro de poesia visual em alemão, Verdichtungen.
Pimenta, além disso, admira a obra de Enzensberger; em 2019, por ocasião dos 90 anos do autor, publicou a antologia bilíngue 66 Poemas escolhidos e traduzidos por Alberto Pimenta pelas Edições do Saguão, provavelmente a melhor que existe em português. Transcrevo este trecho do posfácio:

[...] muito jovem, Enzensberger foi um dos dinamizadores do renovador propósito literário que recebeu a designação de Grupo 47 - a que o famigerado político de extrema-direita F.J. Strauss chamava as varejas. Enzensberger foi diferente de todo o Grupo, a língua de Enzensberger é só a língua de Enzensberger. Admirar estes poemas é começar por chegar aí.

O sentimento infunde este poema novo, Foge a nuvem com o tempo, de dezembro de 2022, editado por ele e Rui Miguel Ribeiro. Uma elegia ao poeta alemão; digo "poeta" porque, se ele, como Pimenta, escreveu em prosa e foi um importante ensaísta, o assunto do poema é principalmente a poesia, além da impermanência das coisas.
Divide-se em três partes: a primeira, "Esperei", uma navegação pela história da poesia ("pelo meio das ondas/ ou da água do despejo/ esse é sempre o caminho." De Dylan Thomas a Homero, passando por Safo, Camões, Petrarca; para os mais recentes, nessas andanças marítimas, não encontra boas palavras:

peixe reparado
poesia congelada.
Aqui um, ali outro
pescador de pérolas;
são já raros,
continuaram sempre
a meter-se àquele áspero mar
onde um dia se acha
a pérola da vida
e outro dia se morre;
assim tu, por exemplo


Enzensberger, a quem ele se dirige, é uma exceção; mas sua imagem ergue-se dos mares, toma a forma de nuvem e se vai, embora ainda se ouça o que o autor alemão disse.
A segunda parte, mais breve e escrita em versos mais curtos, "Quis entender", soa como um debate interior; a irresolução gramatical de frases que se iniciam e logo são cortadas sugere um diálogo incrédulo diante da presença de Enzensberger.
Enfim, acredita-se na presença, que é o objeto da terceira parte, "Esperei até ao fim", a mais lírica. Enzensberger está imóvel, "a pensar talvez em Ingeborg/ ou nos teus amigos comunistas franceses/ todos mortos". Estará morto?
Outra elegia de Pimenta, Tanto fogo e tanto frio: o último sonho de Olímpio (Lisboa: &etc, 2007, que incluía um texto de Vitor Silva Tavares), em homenagem a Olímpio Ferreira, terminava com um gesto do silêncio. Não contarei aqui o final do poema novo, que envolve o silêncio de alguns e o canto de outros; digo, porém, que ele me parece uma réplica ao que Enzensberger escreveu no poema "Leichter als Luft" ("Mais leve que o ar"), que Pimenta traduziu naquela antologia; ele assim termina:

Muita coisa fica de qualquer modo
a pairar no ar.
O mais leve de tudo talvez seja 
o que sobra de nós
ao estarmos já debaixo da terra.

De fato, se há um poeta à altura de responder a Enzensberger, a jogar com a dialética terra/ar, bem como canto/silêncio, é Alberto Pimenta. 

domingo, 28 de maio de 2023

O Grupo ANIMA: Valeria Bittar sobre música antiga, música brasileira e a necessidade de hierofanias

Em 18 de maio último, assisti a uma atividade do barítono Hugo Pieri, do grupo ANIMA, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Em quinze de junho, Gisela Nogueira, do mesmo grupo, estará lá com sua viola de arame, também de forma gratuita.

O ANIMA, claro, é uma das maiores referências da música (todos os gêneros combinados) no Brasil. No início deste milênio, entrevistei por telefone Valeria Bittar para a extinta revista eletrônica portuguesa Ciberkiosk. Bittar estava lá no 18 de maio, mas não tive coragem de dizer que eu já a tinha entrevistado há mais de duas décadas, até porque os textos da revista já cumpriram o destino das coisas digitais e evaporaram.

Eu não tinha encontrado, ademais, o arquivo da  entrevista no computador; há alguns minutos descobri-lhe o esconderijo. Como o grupo está a lançar o disco Mar Anterior pelo selo SESC-SP, acho oportuno republicá-lo.

O ANIMA tem hoje outra página na internet: http://www.animamusica.art/; e este canal no YouTube: https://www.youtube.com/@GrupoAnimaOficial/videos.


 Grupo ANIMA


 

«A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada.»


A música antiga já possui uma história no Brasil, mas ainda não uma tradição; para uma tradição configurar-se, é necessário desenvolver um perfil próprio, o que não se pode fazer com a simples cópia dos modelos europeus, propósito deliberado de vários músicos, nesse campo em que a "interpretação autêntica" é vista com especial prioridade.

Em sentido contrário dos demais conjuntos especializados no Brasil, o conjunto ANIMA claramente destaca-se por sua proposta de conjugar o repertório europeu, principalmente o ibérico, com a tradição oral brasileira e compositores brasileiros contemporâneos afinados com essa tradição.

Dessa forma, interpretam simultaneamente Machaut e as composições de José Eduardo Gramani (um dos fundadores do grupo, falecido em 1998), como no primeiro disco, Espiral do Tempo, de 1997. Ou, então, no segundo disco, Especiarias, combinam na mesma faixa a música italiana do século XIV (La Rotta, uma das mais belas melodias medievais) com Ó mana (também conhecida como Caicó, da tradição oral brasileira, empregada por Villa-Lobos na sua quarta Bachianas e gravada por músicos populares como Milton Nascimento e Ney Matogrosso).

Afora esses dois discos, de produção independente, Anima participou de Trilhas, de 1994, com os grupos Oficina de Cordas, Trem de Corda, Duo Bem Temperado, e de Teatro do Descobrimento, disco da meio-soprano Anna Maria Kieffer lançado em 1999.

Certos conjuntos de música antiga brasileiros demonstram uma dependência demasiadamente pronunciada dos modelos europeus. Anima possui um perfil próprio, que se reflete no repertório e nos instrumentos, combinação harmônica do europeu (cravo, flautas doces segundo modelos do século XVI) com o árabe (zarb - percussão iraniana, bendir – percussão turca, mejuez – instrumento sírio) e o brasileiro (viola brasileira, rabecas brasileiras, triângulo, pandeiro, kulutas – instrumentos de origem indígena).

Anima está na internet no endereço http://www.animamusica.art.br . Composto por Dalga Larrondo (percussão), Isa Taube (voz), Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras), Patricia Gatti (cravo), Paulo Freire (viola brasileira) e Valeria Bittar (flautas doces, kulutas e mejuez), foi com Valeria Bittar, em nome do grupo, que tive uma longa conversa telefônica.

 

MUSICOLOGIA E MÚSICA: CADA MACACO NO SEU GALHO

Uma das virtudes do conjunto é a de não serem acadêmicos na abordagem da música antiga. Essa ousadia pode soar estranha para expectativas já condicionadas do que deve ser a música antiga (1), razão pela qual perguntei a Valeria Bittar sobre a questão do rigor musicológico e da interpretação autêntica:

- Pelo que entendi, vocês não querem ser museológicos, nem arqueológicos, nem acadêmicos!

VB - É. A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada. [...] a memória auditiva, toda memória, seja tátil, visual, é uma coisa em constante transformação. Saramago fala exatamente isso [...] E essa questão de que eu estou tocando originalmente, isso é um problema do século XIX [...] a ideia de que tem que tocar a música antiga como se tocava naquela época é uma grande ilusão e é uma posição romântica.

- Na verdade, é anacrônico?

VB - É totalmente anacrônico. É uma contradição ao próprio propósito, você entende? É que essa estética de tocar [.....] é uma concepção do século XIX. Ela não resiste, acabou. Com a possibilidade da reprodução mecânica, o intérprete vai ficar muito para trás. Porque, se você tem o computador, você tem o gravador, você tem o CD, tem todas essas possibilidades tecnológicas de edição agora, então o intérprete não tem função nenhuma. Então existe hoje uma reação a essa concepção romântica. A memória musical é uma coisa muito permeável, maleável.

- O Harnoncourt foi um dos pioneiros da interpretação autêntica desse repertório. Mas hoje ele toca música barroca com instrumentos modernos, mistura os instrumentos, para ele o que importa é soar bem.

VB - Eu acho que o Harnoncourt é a pessoa ideal para a gente confiar. Ele tem uma experiência musical muito grande e ele fala isso baseado na experiência. Ele é um grande mestre. O Harnoncourt fez tudo. Fez tudo do Bach [.....]

 

A FORMAÇÃO EM MÚSICA ANTIGA E O BRASIL

Todos os integrantes de Anima estudaram na Europa, com exceção da cantora Isa Taube, que estudou jazz nos Estados Unidos. As diferenças na formação musical dos integrantes, segundo Valéria Bittar, eram uma "virtude do grupo".

Conversamos da dificuldade de o músico ter uma formação em música antiga no Brasil; de fato, no mundo acadêmico, ela não existe, pois "as instituições de ensino baseiam-se na música do século dezenove" e que "o músico brasileiro só era preparado para ser solista ou funcionário público".

Valéria Bittar, no entanto, entrou em contato com a música antiga no Conservatório, e sua prática com o choro muito a ajudou. Disse-lhe achar que hoje o choro é música de câmera e concordou, ressaltando como esse estilo "tem alma própria".

- Desde a sua formação, você estava em contato com a música brasileira. Isso é um dado diferencial de vocês. Porque vocês combinam a música renascentista, medieval, com a tradição oral brasileira, mas também com compositores contemporâneos brasileiros.

VB - Compositores contemporâneos que são inspirados nessa tradição brasileira.

- Dos outros grupos brasileiros, o que distingue vocês é uma proposta brasileira. Vocês até se permitem juntar a música do Caicó, "Ó mana", com "La Rotta".

VB - [........] a literatura medieval e a música medieval andam muito juntas e estão vivas, ainda hoje, em diversas manifestações da tradição oral. Principalmente aqui no Brasil.

- Se eu for comparar o trabalho de vocês, por exemplo, com o do Movimento Armorial, do Quinteto Armorial, eles tinham um trabalho muito bom, mas acho o de vocês mais livre. Vocês não são dogmáticos.

VB – É porque queremos através da música brasileira, sair do regionalismo.

 

MÚSICA ANTIGA E MERCADO FONOGRÁFICO:

 

Valeria Bittar lembra que a música antiga tornou-se "mercantil", "era um movimento" e "chegou nas grandes gravadoras, chegou no mercado". A própria proliferação de gravações, como "a mais nova gravação da Missa em Si Menor de Bach", refletiria esse quadro, o que não seria nada mais do que uma decorrência ainda do Romantismo, ao se querer sempre uma "coisa nova".

Além do rótulo "música antiga", lembramos deste, bastante infame, que é world music, nome cunhado pela ignorância geográfica e musical de estadunidenses.

- Esse próprio nome, world music, ele propriamente não é nada, é só uma marca.

VB - É, é um rótulo, que engloba tudo e não engloba nada.

- É, não quer dizer nada. No disco de vocês vem "world music", mas...

VB - Isso aí é a distribuidora.

- Explique-me: eles são gravados pela Sony, ou a Sony distribui?

VB - A Sony não distribui e não grava. Ela faz a prensagem dos discos. Mas a gente é obrigado a colocar o nome, além de pagar a conta.

- Vocês não são artistas da Sony.

VB - Não, de jeito nenhum.

- Dá para sentir. Também, se fossem, não estariam fazendo esse trabalho!

VB - Nem com aquele encarte maravilhoso.

- Seriam aqueles encartes sem informação alguma que a Sony faz no Brasil (2).

VB - Informação é o que menos interessa.

É o que menos interessa para esse sistema, é claro, em que a música é desprovida de todo valor especificamente cultural.

 

ANIMA E O MUNDO:

Perguntei sobre as apresentações do grupo, que já fez recitais na França e nos Estados Unidos; no início do ano, tocou no festival Rock’n Rio na Tenda Raízes. Em agosto de 2001, realizou uma turnê pelo Mercosul: apresentou-se na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Sobre este último país, que tem uma grande herança cultural indígena, Valeria Bittar afirmou que "dava um banho no Brasil em matéria de cultura e memória".

Em 2002, o grupo fará apresentações nos EUA e, depois, na Europa. Ainda no ano que vem:

VB - O Anima promove workshops em alguns festivais. A gente irá fazer de quatro a cinco workshops na Carolina do Norte. E nos apresentaremos na Universidade do Missouri, em Kansas City. De lá a gente vai para a Filadélfia e para Los Angeles. A gente vai fazer a música de peregrinos. Música de peregrinação até a luz. Música de natal, música do natal rural brasileiro, da Idade Média portuguesa e espanhola, o Cancioneiro de Upsala, as Cantigas de Santa Maria, o Llibre Vermeil.

 

A MÚSICA E O SÍMBOLO:

 

Anima distingue-se também de grupos como o Quinteto Armorial porque se propõe a, segundo Valeria Bittar, por meio da "música brasileira, sair do regionalismo". Como fazê-lo? Nesse momento, entra em cena a questão do símbolo.

Pois, se o grupo pode combinar o Ay Luna do Cancioneiro de Upsala (3) com A Lua Girou, da tradição oral brasileira (gravada também por músicos populares como Ney Matogrosso), no disco Especiarias, o faz menos por uma questão musicológica do que pela permanência do símbolo lunar na música.

VB - A gente faz uma fusão com o natal rural brasileiro, que é pouco conhecido: Bumba-meu-boi, Reisados, vamos terminar o ciclo de natal na Festa de Reis.

- É o repertório do próximo disco?

VB - Em parte, sim. Mas para o próximo disco a gente está fazendo outro trabalho.

- Mais ibérico?

VB - Sim. E com mais pé no Brasil rural, menos industrializado.

- Você acha que é um repertório que está se perdendo?

VB - Acho que sim. Principalmente com essa pós-globalização, essa tecnologia da rapidez. da informação, acho que ele está se fechando em pequenos nichos. Mas não acho que esse tipo de repertório um dia venha a se perder. Porque ele é muito intrínseco ao ser humano. Ele transcende o cultural, ele permanece instalado no homem.

- Por isso vocês se chamam Anima?

VB - Acho que sim... Então não é uma coisa somente cultural. Persiste uma necessidade do homem de ritual, de hierofanias, os mitologemas desses rituais. Mário de Andrade que sabia bem disso. Ele tinha uma visão profunda, ele ultrapassava a musicologia, ia até a psicologia. E há outros pensadores que nos inspiram: Carl Gustav Jung. Você encontra, além do Jung, o Mircea Eliade, que fala das necessidades anímicas, o Jordi Savall, Erich Neumann [........]

 

Contudo, é possível que o símbolo fale por intermédio da música? O símbolo pode falar em música, isto é, ela expressaria o que dele não podemos dizer e o faz permanente? Diante de certos trabalhos musicais, como o de Anima, respondemos sim.

Setembro, 2001.
Pádua Fernandes

 

NOTAS:

(1) Como exemplo, o interessante livro de Kristina Augustin, Um olhar sobre a música antiga: 50 anos de história no Brasil, editado no Rio de Janeiro pela autora em 1999, apresenta o grupo de forma confusa, dizendo, de forma surpreendente, que as "atividades" do grupo "ainda estão muito relacionadas com as da Música Antiga" (p. 84), o que demonstra uma clara incompreensão da proposta artística do Anima.

(2) Prática feita com a música brasileira, é claro, trata-se de uma multinacional, e também (é de pasmar) com a música estadunidense; como exemplo, foi lançada uma série "Best price gold" (embora no Brasil o idioma oficial seja o português) em que os títulos simplesmente não possuem atribuição de autoria, mesmo clássicos da canção popular dos Estados Unidos, como Just in time, Alfie...

(3) Cancioneiro ibérico do século XVI que teve a sua primeira gravação mundial completa em 1997, pela Camerata Antiqua de Curitiba, regida pelo pioneiro da música antiga no Brasil, Roberto de Regina.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Quando o cantor se interrompe


Quando o cantor se interrompe,

a voz ainda continua?

(por quem? por quanto tempo?)

Se o cantor fecha os lábios,

abre-se ainda a boca da voz?


Abre-se para o mundo,

e o mundo se fecha:

o cantor é interrompido

seja pelo decreto, seja pelo câncer,

(o poder e a metástase

imitam-se mutuamente)

seja pelo mercado, seja pela bomba,

(igualam-se em estrondo

os produtos e a devastação)

e pouco resta à palavra

senão automatismos à venda.


O cantor foi interrompido,

cessaram os mecanismos do fôlego;

toda a atmosfera

ressoa como o deserto.


(contracústica, infra-

-diafragmática, a voz conspira

multicostal sobre o risco)

(não a voz sob o risco,

porém a música,

que entrou sem ingresso

no espetáculo do mundo)


A voz, que mande notícias,

ela suspendeu os informes

que garantiam o fluxo

entre o cantor e o mundo.


(um coro só de objetos não sonoros,

que cantores poderiam igualá-los

na solidez e na pontaria?)

(ou um coro só de ausências,

todo feito à imagem do público?)


O cantor sob interrupção 

não pode entregar a vida,

deixa que a voz o faça.


(explodida a voz, ouvimos

enfim o cantor, ou os estrondos

vêm de outra fonte: a música, talvez?)

(o mundo não se organiza em coro

e decreta que a ousadia de somar vozes

pagará um preço muito caro)


Somente não interrompe o cantor

o silêncio,

que o ouve agora.