Jorge Roque lançou Eu e Tu (Lisboa: Maldoror, 2021) ainda durante a pandemia. Em tempos de isolamento social, um livro com esse título poderia surpreender. Composto por breves textos em prosa, que oscilam entre o conto e o poema em prosa, ele se inicia em plena taberna com a visão de um bêbado com uísque, o que leva a reflexões sobre a escrita, e termina com um encontro de vizinhos no elevador.
Esses encontros seguem-se com mal-entendidos que estão "sempre na verdade" ("O Belo"), palavras duras ("A mãe, apanhada de surpresa e destroçada no seu amor de mãe, sim, porque uma mãe é uma mãe, sublinha respeitoso, nem pensa no que lhe responde: querido, eu amo‑te, mas com esse tumor que tens na cabeça não chegas ao natal", em "Uma grande anedota"), machismo ("É claro que as gajas chateiam sempre, retoma o fio do discurso, está‑lhes no sangue, não sabem estar quietas, ficar no seu lugar, têm de estar sempre a remexer‑se, a questionar, a interpretar", em "Adrenalina e testosterona"), mais bêbados com uísque ("O cavalo de Gary Cooper") e mais bebidas e jantares, até mesmo em casal ("Joaquinzinhos para dois").
Os cristãos fanáticos a insultar os passantes e a pregar também não conseguem passar bem o seu recado:
O absurdo de prosseguir, enérgico e convicto, como se entre os ferros e o cimento dos pilares houvesse alguém que o ouvisse. E as suas palavras, justas ou injustas, lúcidas ou insensatas, extinguiam‑se no vento frio de janeiro sob o testemunho da rua deserta. Poderia até ao fim dos tempos perorar a sua razão, a sua justiça, a sua verdade. Para lá de todas as disputas, uma só certeza se podia alcançar: ninguém o ouviria. ("Jesus, filho de ninguém")
Barak Obama é invocado por causa de um cachorro chamado "Barak"; nessa história, ocorre uma triste partida, o que leva a este comentário: "A vida é tramada, disse‑lhe, para ultrapassar o silêncio. Se fosse um mundo cão não era mau, mas é pior este em que vivemos."
Uma exceção no livro (e na obra de Jorge Roque), a centralidade de um personagem feminino, aparece em "A gargalhada", em que histórias de violência sexual são acompanhadas do "olhar com que o gordo, o empregado de mesa e eu lhe observaríamos as mamas, coxas e rabo". Em seguida, aparece mais uma dose de machismo na voz de frequentadores portugueses de restaurantes: "pois, que eu saiba, todos somos filhos de um homem e de uma mulher, por conseguinte, sem mulheres não haveria homens e vice‑versa, não era preciso as feministas virem com reivindicações parvas" ("Chulipas").
Machismo e xenofobia somam-se no bem intitulado "Os portugueses": "com as mulheres que agora há por aí, tão diferentes daquelas do seu tempo, todas cheias de santos e pecados, e não se referia às brasileiras ou às ucranianas, com essas nem era preciso engate, o que queriam era a autorização de residência, referia‑se a portuguesas, chavalas algumas".
Esse preconceitos parecem reforçar a incomunicabilidade que está no centro do livro, resumido nesta passagem: "Fala para se ouvir falar, é o que dói mais escutar. Fala para se ouvir a ser ouvido. Ninguém o ouve e ele, mesmo fingindo, sabe‑o." ("Náufrago")
Onda há sucesso na comunhão (significativamente, com animais não humanos, desprovidos da fala articulada) é a interessante culminação da filosofia na construção de uma "Capoeira" para gatos, em contraste com o patético de um professor de fala arrogante de "Guedes", história em que voltam o restaurante e seus personagens.
O final, "A luta", não se dá sem evocar de longe a conclusão de O tempo reencontrado, o último volume de Em busca do tempo perdido, de Proust. Aqui também temos um velho senhor a equilibrar-se com dificuldade. Em Proust, a partir daí temos uma impressionante imagem do tempo, com o solo distanciando-se dos pés. No breve texto de Jorge Roque, os passos estão contados; mas os vizinhos, separados por décadas de vida e alguns andares, acabam por ter um breve encontro.
Nesse ponto é que se pode ler algo como uma alusão à pandemia de covid: "É uma vida, fôlego a fôlego calculada, basta o ar escasso consumido numa breve troca de palavras para que o frágil equilíbrio se desfaça e o peito arqueje em busca do precioso ar."
Mas a questão é outra: a comunicação põe o fôlego em xeque. Por isso, apesar de nunca mencionar a pandemia, neste livro o problema do isolamento impõe-se como, talvez, uma condição vital.