Escrevi esta resenha em 2016 para um sítio que, aparentemente, não existe mais. Enquanto não escrevo novamente sobre o autor, deixo-a aqui.
Mais
poético do que o poético...
Pádua Fernandes
... que bem
pode ser um dos sentidos do título Mais
cotidiano que o cotidiano,
do último livro de poesia de Alberto Pucheu, publicado pela Azougue
em 2013, uma vez que todos os seus livros, ao menos desde sua segunda
estreia, em 1993, buscaram utilizar poeticamente materiais da
linguagem cotidiana. Não deveríamos esperar menos do autor que, em
Escritos
da indiscernibilidade,
havia dito que “a linguagem, por fundamento e definição, é
poética, mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”,
trecho destacado por Renato Rezende em resenha na qual escreveu que
Pucheu “expande os limites do poético”.
É certo que
essa expansão integrava o projeto do modernismo no Brasil, como
escreveu Miguel Saches Neto na apresentação do livro de 2013, e
(acrescento) pode ser identificada em autores do século XIX. Resta
ver como Pucheu a realiza, e que tipo de novidade sua literatura
continua a trazer.
Entendo que
essa expansão pode-se dar, nesta obra, por meio: a) do eu lírico
multiplicado e/ou alheio (especialmente pelo que chama de
“arranjos”); b) do desguarnecimento de fronteiras (para usar uma
expressão cara ao poeta) entre poesia e outros discursos, operação
que é, em si, poética; c) da dissolução do eu na natureza e no
corpo; d) da busca do inarticulado.
Essas quatro
linhas da poesia de Pucheu, que se cruzam e se recombinam, já
apareciam com graus variados em livros anteriores. Mais
cotidiano que o cotidiano
mantém os arranjos, poemas que o autor afirma serem totalmente
composto por recortes de discursos alheios e que aparecem com esse
nome desde A
vida é assim,
justamente na parte homônima deste último livro.
Originalmente,
a seção desta obra de 2001 fazia significativa referência a sua
segunda coletânea (e estreia oficial), a plaquete Na
cidade aberta,
mas a referência foi suprimida na reunião de quase todos os seus
primeiros livros de poesia, A
Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007).
Deve-se lembrar que A
cidade aberta
tinha como epígrafe exatamente um “poema colhido na boca de um
transeunte na marina da Glória”
e terminava com poemas produzidos a partir de falas recolhidas na
cidade, método já antigo na poesia de Pucheu.
Também
suprimido na poesia reunida foi o significativo posfácio a A
vida é assim
escrito pelo grande poeta português Alberto Pimenta, que bem viu
nessa poesia “um memento da liquidação lenta do eu, ‘tornado
consciente do arrepio da própria limitação e finitude’
(Adorno)”.
O uso de
frases alheias, retiradas do cotidiano das ruas, dos meios de
transporte poderia ser uma forma de o poeta, a partir de seus
materiais, apresentar a vida tal como ela é, se isso fosse possível,
e de dizer, pelo seu próprio modo de produção, que “a vida é
assim”. De certa forma, é viável fazê-lo, mas apenas por meio de
uma invenção, e nisso temos a poesia.
Na publicação
anterior ao livro do poema que se tornou, em A
vida é assim,
o “Arranjo para mensagens eletrônicas” (que seria um arranjo de
frases da correspondência eletrônica passiva do poeta), temos um
curioso adendo que não foi incluído no livro de 2001, tampouco na
poesia reunida:
Caros
amigos, resolvi fazer um poema, quero dizer, um arranjo, com
fragmentos de mensagens eletrônicas recebidas por mim nesses últimos
dias. Uma das coisas que mais me provocam é experimentar o quanto de
«não-poético», de cotidiano, de ordinário, a poesia consegue
suportar. Talvez se lembrem de «na cidade aberta nº 3» e de «Poema
para a maior audiência do país». O primeiro, com vozes de
vendedores ambulantes que circulavam no trem e com o aviso de seus
destino e horário de partida. O outro, uma disposição de frases
que foram ditas no programa do Ratinho por diversas pessoas [...]
Essa escrita, composta apenas com frases alheias, vem me perseguindo
desde o começo. Descubro, com ela, uma possibilidade da qual só sou
capaz enquanto arranjador, afrouxando, assim a unidade do eu lírico,
a subjetividade daquele que escreve e a força do princípio
conjuntivo. [...]
Essa parte do
texto possui um caráter demasiadamente explicativo, o que deve ter
levado a sua não publicação no livro. No entanto, é interessante
lê-la pelo que o poeta escolheu falar dos próprios procedimentos, e
pelo que ela revela a contrapelo do autor. Temos aí uma tensão
entre ser ninguém (“quem escreve jamais deixará de ser ninguém”,
escrevera em Escritos
da frequentação,
de 1995) e entre uma superafirmação da subjetividade do poeta
arranjador, que, afinal, manipula os discursos alheios. A autoria, no
entanto, sempre está posta: na escolha da matéria, na seleção dos
elementos e na sua disposição.
Creio que se
pode aplicar à poesia de Pucheu o que o ensaísta Pucheu explica da
poesia de Leonardo Gandolfi:
[...]
em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma
criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral
finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita,
ainda que desejosamente fragilizada.
Apesar da
tentação homonímia, sem dúvida a noção de arranjo musical é
pobre para pensar a questão; ele é mais do que um arranjador.
Poder-se-ia inicialmente pensar que temos aí mais o poeta como
regente do que como compositor, e que o regente, de qualquer forma,
cria sua própria interpretação do material dado. No entanto, a
subjetividade envolvida na criação dos arranjos de Pucheu é muito
maior do que aquela que um maestro pode dar a uma composição
alheia, pois o material com que o maestro lida já era considerado
musical, porém as frases que escolhe não eram necessariamente
poesia antes de ele lhe dar o seu tratamento de “arranjador” –
que é, na verdade, um tipo de poeta e, por isso, mostra-se análogo
ao compositor.
É certo que
na tendência forte a uma intertextualidade explícita com textos
poéticos na poesia brasileira desde os anos 1990 temos, certas
vezes, algo parecido com esse procedimento do arranjo. No entanto,
esses outros poetas com um emprego forte da intertextualidade, em
geral, estão presos ao gênero literário e raramente vão para as
falas das ruas; preferem, muitas vezes, discursos mais nobres, mais
consagrados, sem se guiar por falas de outra extração, mais
cotidiana, sem atender à divisa que Pucheu escrevera em Ecometria
do silêncio:
“se
inclassificável, é poesia”.
Ele é capaz de citar ao mesmo tempo Aristóteles e vendedores de
bananada, mais ou menos como, na primeira metade do século passado,
Varèse podia colocar sirenes no meio do discurso musical.
Em Mais
cotidiano que o cotidiano,
o “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento
(antivoz)” combina as falas de dois autores de atos de terrorismo
não estatal, Wellington Menezes de Oliveira, do Rio de Janeiro, e
Anders Behring Breivik, da Suécia, tentando construir um discurso
contínuo fascista independente das fronteiras. O “Arranjo para
tornar o mundo cada diz menos violento (pós-voz)” é uma sequência
dos nomes das vítimas de ambos.
Nesses
arranjos, opera-se um desguarnecimento da poesia com outros
discursos, o que é feito também pelo ready
made
“Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento, II”,
que transcreve a fala do comandante-geral da Polícia Militar do Rio
de Janeiro após a violenta repressão das autoridades estaduais
contra as manifestações populares em julho de 2013. Nesse caso, os
procedimentos desta poética são menos os de artesania textual do
que os de arte conceitual, de performance.
Também
apresenta uma poética de performance
o poema atribuído a outrem (um amigo de longos anos que foi por ele
supervisionado no pós-doutorado, o poeta Caio Meira), “Perfil
parcial de um procedimento, escrito por Caio Meira”. Ele trata nada
menos do que da suposta vida do poeta Alberto Pucheu e de como ele
teria concebido a técnica dos arranjos antes de teóricos como
Marjorie Perloff se ocuparem de poéticas desse tipo. No entanto,
trata-se do texto menos bem sucedido do livro: embora, de fato, tenha
êxito em parecer de outra pessoa, o estilo e a frase não oferecem
nem de longe o horizonte de pensamento dos outros textos de Pucheu.
A frase de
Pucheu, meio verso, meio prosa, como vemos desde Ecometria
do silêncio,
de 1999, apresenta, em regra, uma argumentação sem sobressaltos,
uma voz baixa, contínua, como se ele quisesse tornar indistintos o
pensamento e a respiração. Essa característica rítmica tem
relação, creio, com a questão do inarticulado, outra das linhas
desta poesia. Não que ela ignore sobressaltos ou um acorde final
surpreendente; veja-se no poema que publicou em O
Globo
sobre a posse de Lula na presidência da república, recolhido em
Mais
cotidiano que o cotidiano:
“Poema para ser lido na posse do presidente (antevoz)” vai
realizando uma reflexão enquanto o eu lírico anda na rua, pelas
calçadas, cruzando com os corpos, tratando desses corpos:
[...]
São corpos dúbios,
quando
dançam o funk sob a mira
dos
AR-15, quando fogem dos tiros
saltando
atleticamente por telhados,
caixas
d’água, correndo por becos,
quando
se explodem na terra ou no ar
contra
o concreto de um edifício
ou
quando se jogam das alturas
do
mesmo edifício. São corpos funcionais,
como
nas caixas lotadas dos supermercados,
dentro
das britadeiras fritados sobre o asfalto
do
sol, dentro da cozinha da minha casa,
ao
meu ouvido, na central de telemarketing.
São
corpos... São corpos que, em algum momento,
esquecidos,
anônimos, sobem e descem uma rua,
nada
mais. [...]
Ele já havia
escrito que, “em longas caminhadas,/ quem enxerga são as
pernas.”;
neste importante poema da literatura brasileira contemporânea
(goste-se ou não do homenageado), o eu lírico mostra-se consciente
de sua posição de classe, o que nem sempre os comentaristas da obra
de Pucheu percebem.
Esses corpos são feitos de vazios, de faltas, e acabam simbolizados
em “a poesia/ do dedo que falta na mão do presidente.” A
mutilação se deve a algo mais cotidiano do que o cotidiano no
Brasil, os acidentes do trabalho, que se multiplicam amparados em
outra falta: não têm efetividade alguma as previsões penais sobre
segurança do trabalho, em razão da (in)eficácia do direito
burguês, diferida segundo a classe social. Essas faltas se
materializam na mão daquele presidente, que foi alvo de deboche de
setores que lhe fizeram oposição e que, nesse gesto mais do que
mesquinho (debochar de uma mutilação que, na verdade, é uma marca
de classe social), mostraram também seu desprezo pela situação do
trabalho no país.
É uma das
ocasiões em que a opção pelo cotidiano gera o poético em alta
intensidade. Creio que, num registro cômico, é o mesmo que ocorre
em “Transcrição ipsis
litteris
de uma fala em uma banca”, um momento de autoficção em que ao
menos esta passagem é metapoética:
[...]
estou vendo o Fábio ali na última fileira que me chama de
Professor, o Domingos, aqui do lado, me chama muitas vezes de amado,
a minha namorada me chama de Betô, de Querido e de outros nomes que
não vêm ao caso. Eu acato todos esses nomes. Neste momento, eu lhe
digo que eu falo com esses nomes todos, mas falo também com o que há
entre um e outro desses nomes. São todos apelidos e eu respondo a
todos. Eu respondo a todo e qualquer chamado.
O poeta é o
que deseja acolher todos os nomes, ele deseja ser a própria cidade
aberta, embora a própria cidade apresente diversos fechamentos.
Um momento em
que ocorre o contrário, um fechamento e uma fuga à cidade, são as
raras ocasiões em que Pucheu resolve brincar de Borges,
avizinhando-se do beletrismo. “Édipo e o enigma” tem mesmo um
fecho banal: “E se nós todos formos simplesmente/ os que nunca
sabemos o que somos?”.
Uma estratégia
para essa abertura está em outra linha desta poesia, a dissolução
do eu na natureza e no corpo que com ela se funde. Já se encontrava
em Ecometria
do silêncio
uma intenção como esta: “só encontro o movimento do que me cala:
o amarelo do peixe no aquário do shopping, a musculatura operária,
o cérebro no impacto do soco, a punção do trocarte e o momento
seguinte ao acidente consumado”.
Os poemas
sobre boxe cumpriram essa função certa época em que os jornalistas
noticiaram, por um breve momento, que poetas podiam lutar boxe. O
belo “Minhas Amizades de Hoje são Feitas como Antigamente”,
recolhido na poesia reunida, não revela, no entanto, nenhuma ruptura
na poética de Pucheu, o que ele trouxe de novo foi um motivo (no
sentido de motivo musical), não novas estruturas:
[...]
O menor vacilo
custa
alguns dentes, um filete de sangue no nariz,
uma
dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso.
Pouco
falam do que pensam ou sentem.
O
conhecimento que um tem do outro é passado
pelos
poros, pelos suores que se misturam
a
cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo
se
esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio,
pela
velocidade dos jabs e dos tapas defensivos
tirando
o punho do caminho da face, pela porrada
do
explodir da luva nos músculos compactos e protetores.
É
dessa maneira que hoje faço meus amigos.
O corpo, quase
mudo, fala por meio dos golpes, e nesse jogo pode ser deformado. Em
Mais
cotidiano que o cotidiano,
o boxe não é mais o motivo; temos, em vez dele, o jet-ski, o tow-in
e o surfe, com suas ameaças de dissolução dos corpos, na primeira
seção do livro, intitulada justamente “Tow-in”. Ela termina com
um “Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o
crítico literário e o poeta”.
O título do
último poema da seção muda tudo o que foi lido. O poema é
composto, segundo a nota, por falas de surfistas: “Sem a ajuda da
outra pessoa a algumas centenas de metros, o surfe de onde gigante é
suicídio. [...] O surfe com reboque fez o impossível ser surfável.
[...] No tow-in, você deixa seu parceiro escolher a onda. Era um
monstro gigante atrás de meu parceiro e ele era apenas um grão de
areia diante dessa boca enorme.”.
É
interessante que da fala de esportistas não rivais, e sim parceiros,
o poeta anuncie uma relação entre crítico e poeta. Talvez, no
entanto, ela seja direta demais. Se a poesia é essa natureza
ameaçadora, entre crítico e poeta, quem reboca quem? A poesia é um
esporte radical que pode engolir os dois? Ou é a crítica quem
naufraga nesse arranjo, que bem pode virar um compadrio de grupos
literários?
Pucheu entende
a crítica de caráter poético e criador, tentando a
indiscernibilidade entre o crítico e o teórico. Ademais, ele
precisa da empatia com a obra para escrever sobre ela; escreve sobre
os poetas de que gosta, e não dos outros – algo mais comum na
crítica de artes plásticas. Pode-se desconfiar, porém, de que a
última parte do poema não ficou à tona, após as quatro primeiras,
parecidas demais. Prefiro-a como foi publicada em 2011 na Babel
Poética, em duas partes, precedida de “O que [alguns críticos]
fizeram com a poesia brasileira e o contemporâneo”, que é
abertamente um texto sobre a crítica de poesia. Nele, Pucheu
refere-se rapidamente a avaliações da poesia contemporânea feitas
por João Adolfo Hansen, Silviano Santiago, Alcir Pécora, Iumna
Maria Simon, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima e outros,
qualificando-as de “momentos com pretensões de medalhões
eruditos”.
O contraste entre as duas seções torna o conjunto mais
interessante, e a imagem do tow-in, bem mais surpreendente.
No tocante à
busca do inarticulado, que se articula à dissolução do eu, ela é
mais anunciada como desejo do que realizada; no poema “Em outras
palavras”, lemos que “talvez, o melhor que ele conseguisse fazer
fosse um murmúrio indecifrável de todas as frases soando juntas,
homogeneamente monótonas, ao mundo de cada palavra que não quisesse
se sobrepor às suas vizinhas.”.
Trata-se de uma difícil proposta de poética, mais facilmente
realizável na música.
Essa linha de
força da poesia de Pucheu chega mesmo a se opor ao que os defensores
de animais chamam de especismo. Em “Iaque”, que evoca o conhecido
“Poema em vão (ou Poema Ungulado)” de A
fronteira desguarnecida,
lemos que “Há dias em que gostaria de falar de mim com a sensação
de um iaque ao atravessar um despenhadeiro do Himalaia. Há dias em
que eu gostaria de não me reconhecer em nada língua em que falo.”.
No “Poema em
vão”, não havia esse desejo de identificação com outras
espécies animais (neste caso, com os rinocerontes): “O que dele me
aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. [...] Nunca escutei
sua voz, que do silêncio anuncia estrondos.”.
O livro seguinte, nesse sentido, representou um avanço, com o “Poema
ungulado, nº 2” : “[...] um guindaste se apropria do meu sexo, o
chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar,
guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.”.
Mais adiante,
no “Poema ungulado, nº 3”, Pucheu logrou inventar a
identificação desse inarticulado com a origem do discurso: “O
rinoceronte, um vírus em nossas quatro coronárias,/ ainda nos unia.
Desta vez, em mim,/ era um estranho corpo impalpável,/ contra o
qual, carne a não-carne, eu lutava, mesmo sabendo/ que iria perder.
Digo: perder-me em mim mesmo [...]”.
Este último
poema é de amor, tema que parece suscitar o inarticulado como
metáfora para os jogos do corpo, inclusive os sexuais. Mais
cotidiano que o cotidiano
menciona uma “sintaxe esburacada” do amor, e o inarticulado nos
uivos concorrentes: os que os corpos emitem e os que cercam os
corpos, em “O livro de hoje do amor”:
[...]
se é tão difícil
separar
os corpos agora, para que,
então,
não escutar os uivos dos corpos
de
modo que eles possam se sobrepor aos outros uivos
que,
por fora dos corpos, insistem em se fazer escutados?
Esse
inarticulado adquire uma dimensão social no marcante poema “Luiz
Carlos Marques da Silva”, que havia sido publicado em 2011 antes de
ser recolhido em Mais
cotidiano que o cotidiano.
O título é o nome de um senhor em situação de rua cuja história
foi contada em figurinhas, entre outras de pessoas em situação
análoga, por Rubens Pileggi no projeto Nowhereman.
No poema, não ouvimos propriamente o que conta Marques da Silva;
ouvimos primordialmente o lugar de onde o outro fala, o fundo do poço
– a descrição desse lugar de onde o outro fala é a própria
mensagem, até a ironia final:
[...]
ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima
vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de
não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contrabandeado
para esse evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no
chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na
qual, trazendo-nos o fundo do poço, do qual jamais saía, ele me
falava.
Aqui,
tornar-se aberto para a cidade significa “aprender a se camuflar de
fumaça, asfalto, lixo”,
e até aceitar ter sua fala contrabandeada pelos artistas de classe
mais alta do que a dele, o que inclui o próprio Pucheu.
Mais
cotidiano que o cotidiano
reafirma a trajetória única de Pucheu na poesia brasileira; sua
continua a provocar o espanto, isto é, a convocar o poético,
lembrando que o seu contrário, para este autor, não é a prosa, mas
“o próprio poético, quando, previamente estabelecido, mesmo
cansado, quer se reproduzir”.