O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Sobre Alberto Pucheu, "Mais poético do que o poético"

Escrevi esta resenha em 2016 para um sítio que, aparentemente, não existe mais. Enquanto não escrevo novamente sobre o autor, deixo-a aqui. 


Mais poético do que o poético...


Pádua Fernandes



... que bem pode ser um dos sentidos do título Mais cotidiano que o cotidiano, do último livro de poesia de Alberto Pucheu, publicado pela Azougue em 2013, uma vez que todos os seus livros, ao menos desde sua segunda estreia, em 1993, buscaram utilizar poeticamente materiais da linguagem cotidiana. Não deveríamos esperar menos do autor que, em Escritos da indiscernibilidade, havia dito que “a linguagem, por fundamento e definição, é poética, mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”, trecho destacado por Renato Rezende em resenha na qual escreveu que Pucheu “expande os limites do poético”1.

É certo que essa expansão integrava o projeto do modernismo no Brasil, como escreveu Miguel Saches Neto na apresentação do livro de 2013, e (acrescento) pode ser identificada em autores do século XIX. Resta ver como Pucheu a realiza, e que tipo de novidade sua literatura continua a trazer.

Entendo que essa expansão pode-se dar, nesta obra, por meio: a) do eu lírico multiplicado e/ou alheio (especialmente pelo que chama de “arranjos”); b) do desguarnecimento de fronteiras (para usar uma expressão cara ao poeta) entre poesia e outros discursos, operação que é, em si, poética; c) da dissolução do eu na natureza e no corpo; d) da busca do inarticulado.

Essas quatro linhas da poesia de Pucheu, que se cruzam e se recombinam, já apareciam com graus variados em livros anteriores. Mais cotidiano que o cotidiano mantém os arranjos, poemas que o autor afirma serem totalmente composto por recortes de discursos alheios e que aparecem com esse nome desde A vida é assim, justamente na parte homônima deste último livro.

Originalmente, a seção desta obra de 2001 fazia significativa referência a sua segunda coletânea (e estreia oficial), a plaquete Na cidade aberta, mas a referência foi suprimida na reunião de quase todos os seus primeiros livros de poesia, A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Deve-se lembrar que A cidade aberta tinha como epígrafe exatamente um “poema colhido na boca de um transeunte na marina da Glória”2 e terminava com poemas produzidos a partir de falas recolhidas na cidade, método já antigo na poesia de Pucheu.

Também suprimido na poesia reunida foi o significativo posfácio a A vida é assim escrito pelo grande poeta português Alberto Pimenta, que bem viu nessa poesia “um memento da liquidação lenta do eu, ‘tornado consciente do arrepio da própria limitação e finitude’ (Adorno)”3.

O uso de frases alheias, retiradas do cotidiano das ruas, dos meios de transporte poderia ser uma forma de o poeta, a partir de seus materiais, apresentar a vida tal como ela é, se isso fosse possível, e de dizer, pelo seu próprio modo de produção, que “a vida é assim”. De certa forma, é viável fazê-lo, mas apenas por meio de uma invenção, e nisso temos a poesia.

Na publicação anterior ao livro do poema que se tornou, em A vida é assim, o “Arranjo para mensagens eletrônicas” (que seria um arranjo de frases da correspondência eletrônica passiva do poeta), temos um curioso adendo que não foi incluído no livro de 2001, tampouco na poesia reunida:


Caros amigos, resolvi fazer um poema, quero dizer, um arranjo, com fragmentos de mensagens eletrônicas recebidas por mim nesses últimos dias. Uma das coisas que mais me provocam é experimentar o quanto de «não-poético», de cotidiano, de ordinário, a poesia consegue suportar. Talvez se lembrem de «na cidade aberta nº 3» e de «Poema para a maior audiência do país». O primeiro, com vozes de vendedores ambulantes que circulavam no trem e com o aviso de seus destino e horário de partida. O outro, uma disposição de frases que foram ditas no programa do Ratinho por diversas pessoas [...] Essa escrita, composta apenas com frases alheias, vem me perseguindo desde o começo. Descubro, com ela, uma possibilidade da qual só sou capaz enquanto arranjador, afrouxando, assim a unidade do eu lírico, a subjetividade daquele que escreve e a força do princípio conjuntivo. [...]4


Essa parte do texto possui um caráter demasiadamente explicativo, o que deve ter levado a sua não publicação no livro. No entanto, é interessante lê-la pelo que o poeta escolheu falar dos próprios procedimentos, e pelo que ela revela a contrapelo do autor. Temos aí uma tensão entre ser ninguém (“quem escreve jamais deixará de ser ninguém”5, escrevera em Escritos da frequentação, de 1995) e entre uma superafirmação da subjetividade do poeta arranjador, que, afinal, manipula os discursos alheios. A autoria, no entanto, sempre está posta: na escolha da matéria, na seleção dos elementos e na sua disposição.

Creio que se pode aplicar à poesia de Pucheu o que o ensaísta Pucheu explica da poesia de Leonardo Gandolfi:


[...] em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada6.


Apesar da tentação homonímia, sem dúvida a noção de arranjo musical é pobre para pensar a questão; ele é mais do que um arranjador. Poder-se-ia inicialmente pensar que temos aí mais o poeta como regente do que como compositor, e que o regente, de qualquer forma, cria sua própria interpretação do material dado. No entanto, a subjetividade envolvida na criação dos arranjos de Pucheu é muito maior do que aquela que um maestro pode dar a uma composição alheia, pois o material com que o maestro lida já era considerado musical, porém as frases que escolhe não eram necessariamente poesia antes de ele lhe dar o seu tratamento de “arranjador” – que é, na verdade, um tipo de poeta e, por isso, mostra-se análogo ao compositor.

É certo que na tendência forte a uma intertextualidade explícita com textos poéticos na poesia brasileira desde os anos 1990 temos, certas vezes, algo parecido com esse procedimento do arranjo. No entanto, esses outros poetas com um emprego forte da intertextualidade, em geral, estão presos ao gênero literário e raramente vão para as falas das ruas; preferem, muitas vezes, discursos mais nobres, mais consagrados, sem se guiar por falas de outra extração, mais cotidiana, sem atender à divisa que Pucheu escrevera em Ecometria do silêncio: “se inclassificável, é poesia7. Ele é capaz de citar ao mesmo tempo Aristóteles e vendedores de bananada, mais ou menos como, na primeira metade do século passado, Varèse podia colocar sirenes no meio do discurso musical.

Em Mais cotidiano que o cotidiano, o “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento (antivoz)” combina as falas de dois autores de atos de terrorismo não estatal, Wellington Menezes de Oliveira, do Rio de Janeiro, e Anders Behring Breivik, da Suécia, tentando construir um discurso contínuo fascista independente das fronteiras. O “Arranjo para tornar o mundo cada diz menos violento (pós-voz)” é uma sequência dos nomes das vítimas de ambos.

Nesses arranjos, opera-se um desguarnecimento da poesia com outros discursos, o que é feito também pelo ready made “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento, II”, que transcreve a fala do comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro após a violenta repressão das autoridades estaduais contra as manifestações populares em julho de 2013. Nesse caso, os procedimentos desta poética são menos os de artesania textual do que os de arte conceitual, de performance.

Também apresenta uma poética de performance o poema atribuído a outrem (um amigo de longos anos que foi por ele supervisionado no pós-doutorado, o poeta Caio Meira), “Perfil parcial de um procedimento, escrito por Caio Meira”. Ele trata nada menos do que da suposta vida do poeta Alberto Pucheu e de como ele teria concebido a técnica dos arranjos antes de teóricos como Marjorie Perloff se ocuparem de poéticas desse tipo. No entanto, trata-se do texto menos bem sucedido do livro: embora, de fato, tenha êxito em parecer de outra pessoa, o estilo e a frase não oferecem nem de longe o horizonte de pensamento dos outros textos de Pucheu.

A frase de Pucheu, meio verso, meio prosa, como vemos desde Ecometria do silêncio, de 1999, apresenta, em regra, uma argumentação sem sobressaltos, uma voz baixa, contínua, como se ele quisesse tornar indistintos o pensamento e a respiração. Essa característica rítmica tem relação, creio, com a questão do inarticulado, outra das linhas desta poesia. Não que ela ignore sobressaltos ou um acorde final surpreendente; veja-se no poema que publicou em O Globo sobre a posse de Lula na presidência da república, recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano: “Poema para ser lido na posse do presidente (antevoz)” vai realizando uma reflexão enquanto o eu lírico anda na rua, pelas calçadas, cruzando com os corpos, tratando desses corpos:


[...] São corpos dúbios,

quando dançam o funk sob a mira

dos AR-15, quando fogem dos tiros

saltando atleticamente por telhados,

caixas d’água, correndo por becos,

quando se explodem na terra ou no ar

contra o concreto de um edifício

ou quando se jogam das alturas

do mesmo edifício. São corpos funcionais,

como nas caixas lotadas dos supermercados,

dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto

do sol, dentro da cozinha da minha casa,

ao meu ouvido, na central de telemarketing.

São corpos... São corpos que, em algum momento,

esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua,

nada mais. [...]8


Ele já havia escrito que, “em longas caminhadas,/ quem enxerga são as pernas.”9; neste importante poema da literatura brasileira contemporânea (goste-se ou não do homenageado), o eu lírico mostra-se consciente de sua posição de classe, o que nem sempre os comentaristas da obra de Pucheu percebem10. Esses corpos são feitos de vazios, de faltas, e acabam simbolizados em “a poesia/ do dedo que falta na mão do presidente.” A mutilação se deve a algo mais cotidiano do que o cotidiano no Brasil, os acidentes do trabalho, que se multiplicam amparados em outra falta: não têm efetividade alguma as previsões penais sobre segurança do trabalho, em razão da (in)eficácia do direito burguês, diferida segundo a classe social. Essas faltas se materializam na mão daquele presidente, que foi alvo de deboche de setores que lhe fizeram oposição e que, nesse gesto mais do que mesquinho (debochar de uma mutilação que, na verdade, é uma marca de classe social), mostraram também seu desprezo pela situação do trabalho no país.

É uma das ocasiões em que a opção pelo cotidiano gera o poético em alta intensidade. Creio que, num registro cômico, é o mesmo que ocorre em “Transcrição ipsis litteris de uma fala em uma banca”, um momento de autoficção em que ao menos esta passagem é metapoética:


[...] estou vendo o Fábio ali na última fileira que me chama de Professor, o Domingos, aqui do lado, me chama muitas vezes de amado, a minha namorada me chama de Betô, de Querido e de outros nomes que não vêm ao caso. Eu acato todos esses nomes. Neste momento, eu lhe digo que eu falo com esses nomes todos, mas falo também com o que há entre um e outro desses nomes. São todos apelidos e eu respondo a todos. Eu respondo a todo e qualquer chamado11.


O poeta é o que deseja acolher todos os nomes, ele deseja ser a própria cidade aberta, embora a própria cidade apresente diversos fechamentos.

Um momento em que ocorre o contrário, um fechamento e uma fuga à cidade, são as raras ocasiões em que Pucheu resolve brincar de Borges, avizinhando-se do beletrismo. “Édipo e o enigma” tem mesmo um fecho banal: “E se nós todos formos simplesmente/ os que nunca sabemos o que somos?”12.

Uma estratégia para essa abertura está em outra linha desta poesia, a dissolução do eu na natureza e no corpo que com ela se funde. Já se encontrava em Ecometria do silêncio uma intenção como esta: “só encontro o movimento do que me cala: o amarelo do peixe no aquário do shopping, a musculatura operária, o cérebro no impacto do soco, a punção do trocarte e o momento seguinte ao acidente consumado”13.

Os poemas sobre boxe cumpriram essa função certa época em que os jornalistas noticiaram, por um breve momento, que poetas podiam lutar boxe. O belo “Minhas Amizades de Hoje são Feitas como Antigamente”, recolhido na poesia reunida, não revela, no entanto, nenhuma ruptura na poética de Pucheu, o que ele trouxe de novo foi um motivo (no sentido de motivo musical), não novas estruturas:


[...] O menor vacilo

custa alguns dentes, um filete de sangue no nariz,

uma dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso.

Pouco falam do que pensam ou sentem.

O conhecimento que um tem do outro é passado

pelos poros, pelos suores que se misturam

a cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo

se esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio,

pela velocidade dos jabs e dos tapas defensivos

tirando o punho do caminho da face, pela porrada

do explodir da luva nos músculos compactos e protetores.

É dessa maneira que hoje faço meus amigos14.


O corpo, quase mudo, fala por meio dos golpes, e nesse jogo pode ser deformado. Em Mais cotidiano que o cotidiano, o boxe não é mais o motivo; temos, em vez dele, o jet-ski, o tow-in e o surfe, com suas ameaças de dissolução dos corpos, na primeira seção do livro, intitulada justamente “Tow-in”. Ela termina com um “Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta”.

O título do último poema da seção muda tudo o que foi lido. O poema é composto, segundo a nota, por falas de surfistas: “Sem a ajuda da outra pessoa a algumas centenas de metros, o surfe de onde gigante é suicídio. [...] O surfe com reboque fez o impossível ser surfável. [...] No tow-in, você deixa seu parceiro escolher a onda. Era um monstro gigante atrás de meu parceiro e ele era apenas um grão de areia diante dessa boca enorme.”15.

É interessante que da fala de esportistas não rivais, e sim parceiros, o poeta anuncie uma relação entre crítico e poeta. Talvez, no entanto, ela seja direta demais. Se a poesia é essa natureza ameaçadora, entre crítico e poeta, quem reboca quem? A poesia é um esporte radical que pode engolir os dois? Ou é a crítica quem naufraga nesse arranjo, que bem pode virar um compadrio de grupos literários?

Pucheu entende a crítica de caráter poético e criador, tentando a indiscernibilidade entre o crítico e o teórico. Ademais, ele precisa da empatia com a obra para escrever sobre ela; escreve sobre os poetas de que gosta, e não dos outros – algo mais comum na crítica de artes plásticas. Pode-se desconfiar, porém, de que a última parte do poema não ficou à tona, após as quatro primeiras, parecidas demais. Prefiro-a como foi publicada em 2011 na Babel Poética, em duas partes, precedida de “O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e o contemporâneo”, que é abertamente um texto sobre a crítica de poesia. Nele, Pucheu refere-se rapidamente a avaliações da poesia contemporânea feitas por João Adolfo Hansen, Silviano Santiago, Alcir Pécora, Iumna Maria Simon, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima e outros, qualificando-as de “momentos com pretensões de medalhões eruditos”16. O contraste entre as duas seções torna o conjunto mais interessante, e a imagem do tow-in, bem mais surpreendente.

No tocante à busca do inarticulado, que se articula à dissolução do eu, ela é mais anunciada como desejo do que realizada; no poema “Em outras palavras”, lemos que “talvez, o melhor que ele conseguisse fazer fosse um murmúrio indecifrável de todas as frases soando juntas, homogeneamente monótonas, ao mundo de cada palavra que não quisesse se sobrepor às suas vizinhas.”17. Trata-se de uma difícil proposta de poética, mais facilmente realizável na música.

Essa linha de força da poesia de Pucheu chega mesmo a se opor ao que os defensores de animais chamam de especismo. Em “Iaque”, que evoca o conhecido “Poema em vão (ou Poema Ungulado)” de A fronteira desguarnecida, lemos que “Há dias em que gostaria de falar de mim com a sensação de um iaque ao atravessar um despenhadeiro do Himalaia. Há dias em que eu gostaria de não me reconhecer em nada língua em que falo.”18.

No “Poema em vão”, não havia esse desejo de identificação com outras espécies animais (neste caso, com os rinocerontes): “O que dele me aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. [...] Nunca escutei sua voz, que do silêncio anuncia estrondos.”19. O livro seguinte, nesse sentido, representou um avanço, com o “Poema ungulado, nº 2” : “[...] um guindaste se apropria do meu sexo, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.”20.

Mais adiante, no “Poema ungulado, nº 3”, Pucheu logrou inventar a identificação desse inarticulado com a origem do discurso: “O rinoceronte, um vírus em nossas quatro coronárias,/ ainda nos unia. Desta vez, em mim,/ era um estranho corpo impalpável,/ contra o qual, carne a não-carne, eu lutava, mesmo sabendo/ que iria perder. Digo: perder-me em mim mesmo [...]”21.

Este último poema é de amor, tema que parece suscitar o inarticulado como metáfora para os jogos do corpo, inclusive os sexuais. Mais cotidiano que o cotidiano menciona uma “sintaxe esburacada” do amor, e o inarticulado nos uivos concorrentes: os que os corpos emitem e os que cercam os corpos, em “O livro de hoje do amor”:


[...] se é tão difícil

separar os corpos agora, para que,

então, não escutar os uivos dos corpos

de modo que eles possam se sobrepor aos outros uivos

que, por fora dos corpos, insistem em se fazer escutados?22


Esse inarticulado adquire uma dimensão social no marcante poema “Luiz Carlos Marques da Silva”, que havia sido publicado em 2011 antes de ser recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano. O título é o nome de um senhor em situação de rua cuja história foi contada em figurinhas, entre outras de pessoas em situação análoga, por Rubens Pileggi no projeto Nowhereman. No poema, não ouvimos propriamente o que conta Marques da Silva; ouvimos primordialmente o lugar de onde o outro fala, o fundo do poço – a descrição desse lugar de onde o outro fala é a própria mensagem, até a ironia final:


[...] ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contrabandeado para esse evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poço, do qual jamais saía, ele me falava23.


Aqui, tornar-se aberto para a cidade significa “aprender a se camuflar de fumaça, asfalto, lixo”24, e até aceitar ter sua fala contrabandeada pelos artistas de classe mais alta do que a dele, o que inclui o próprio Pucheu.

Mais cotidiano que o cotidiano reafirma a trajetória única de Pucheu na poesia brasileira; sua continua a provocar o espanto, isto é, a convocar o poético, lembrando que o seu contrário, para este autor, não é a prosa, mas “o próprio poético, quando, previamente estabelecido, mesmo cansado, quer se reproduzir”25.

1 REZENDE, Renato. Dois poetas vigorosos de nosso tempo. O Globo. Caderno Prosa e Verso, 31 jul. 2004.

2 PUCHEU, Alberto. Na Cidade Aberta. Rio de Janeiro: UERJ, 1993, p VI.

3 PIMENTA, Alberto. ...Assim é também a poesia. In: PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 58.

4 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000, n. 1, p. 85.

5 PUCHEU, Alberto. Escritos da frequentação. Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995, p. 16.

6 PUCHEU, Alberto. Apoesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014, p. 112.

7 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 41.

8 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 33.

9 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 11.

10 Pode-se lembrar de Mariana Ianelli, que celebra afetivamente uma “literaturavida” na obra de Pucheu, “libertando-se do pessimismo por uma resistência maior, um princípio de alegria”, sem pensar nas condições políticas e sociais dessa resistência e desse princípio, no entanto problematizadas por esta mesma poesia (IANELLI, Mariana. Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2013, p. 32).

11 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 54.

12 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 83.

13 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 11.

14 PUCHEU, Alberto. A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p. 235-236.

15 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 19-20.

16 PUCHEU, Alberto. O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e com o contemporâneo. Babel Poética. Santos, ano II, n. 6, ago./set. 2011, p. 23.

17 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 44.

18 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 47.

19 PUCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 34.

20 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 16.

21 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 29.

22 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 94.

23 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 40.

24 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 39.

25 PUCHEU, Alberto. Escritos da indiscernibilidade. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, p. 24.

domingo, 29 de junho de 2025

Desarquivando o Brasil CCXIII: Lady Tempestade, o teatro e a advocacia de presos políticos



Li a peça de Sílvia Gomez Lady Tempestade, publicada pela Cobogó em 2025, e vi a montagem de Yara de Novaes no dia 26 de junho último: uma obra importante sobre a ditadura militar a partir da experiência histórica de uma advogada, Mércia de Albuquerque, que defendeu presos políticos em Pernambuco, falecida em 2003, e recebeu na peça essa bela alcunha de intempérie.

Os advogados de presos políticos dessa época eram um punhado de profissionais que, em regra, acabaram também sendo sequestrados (como elas mesma) e, em geral, contavam com nenhum ou quase nenhum apoio da OAB (que nem é citada na peça: Sobral Pinto, em revanche, é homenageado). As mulheres, como ela, que fizeram esse trabalho tiveram também de enfrentar a misoginia do sistema de repressão. 

Como o filme Ainda estou aqui, a obra produz seu impacto não só por traduzir, mesmo que apenas parcialmente, a densidade da matéria histórica, mas por servir de veículo para uma grande atriz. No filme de Walter Salles, as lacunas, imprecisões e até erros históricos quando a história avança para os anos 1990 e o século XXI não chegam a diminuir a impressionante presença de Fernanda Torres. 

A peça é bem melhor nesse aspecto. A dramaturgia é simples: uma atriz recebe de certo homem os diários de Mércia Albuquerque, resiste mas fica obcecada pela leitura, o filho dela também passa a lê-los até que ela veste roupa de advogada e incorpora a personagem, que conta em primeira pessoa as próprias histórias. A montagem de Yara de Novaes não mantém a divisão em dois atos que a a autora previu.

Assim como Andréa Beltrão interpretava brilhantemente todos os personagens em espetáculo anterior, a sua Antígona, ela interpreta a advogada, os "gafanhotos" (os agentes da repressão), familiares das vítimas e outros personagens. Ela compartilha o palco com o filho, que faz o curto papel do filho da advogada, e com espectadores que assistem do palco (é a função que cumprem, de testemunhas).  

Com uma atriz menos dotada, a narrativa de histórias, que inclui anunciar as várias passagens riscadas do diário, não funcionaria. Aliás, já via vários atores sem técnica precisarem de... amplificação para se apresentar no Teatro Anchieta, do SESC-SP!  Não é o caso de Beltrão.

A atriz-personagem desincorpora depois a advogada, mas é visitada pelo fantasma de Mércia (somos lembrados de que o teatro "é gentil com os fantasmas"). Elas dialogam brevemente e a fantasma vai-se. 

Ao som do segundo movimento da Sétima de Beethoven (antes, ouvimos o trecho da Nona em que o coro canta "Freude, schöner Götterfunken"), há ainda mais um gesto teatral (não previsto no texto publicado da peça) com os papéis que fotografei acima, talvez páginas do projeto Brasil: Nunca Mais.

Não li ainda os diários da advogada. No livro da peça, os textos aproveitados estão em negrito.

Como as mães são a grande referência na obra, e os mortos não são apresentados com nome completo, quem não conhece a história não saberá que o filho de Rosália é Jarbas Pereira Marques; eis sua foto no volume III da Comissão Nacional da Verdade:




Ele foi uma das vítimas do Massacre da Chácara São Bento, que atingiu militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), traídos por Cabo Anselmo. Não vemos essa explicação na peça, mas a descrição, pela advogada, da luta das mães e dos corpos destroçados. Gregório Bezerra, em revanche, é evocado com o nome completo: sua tortura em público no Recife logo após o golpe de 1964 é a cena que desperta a vocação da advogada.
Com efeito, um dos méritos do espetáculo é a ausência de didatismo: o público também não é informado de que o José cujo corpo ela enfim consegue encontrar para ser enterrado pela família em Belo Horizonte chamava-se José Carlos Novaes da Matta Machado: eis o seu perfil elaborado pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco.
Mércia não é citada aí, mas no da Comissão Nacional da Verdade, sim:




O teatro cumpre, assim, seu papel na esfera pública de fazer o público interessar-se e pesquisar o assunto. Trata-se, por sinal, de um dever da cidadania.
Ao contrário da dramaturgia, as instituições do país não se mostraram ainda à altura da coragem de Mércia, que já imaginava uma justiça de transição avant la lettre (o conceito nem existia) neste enfrentamento:

O senhor sabe que um dia esta ditadura vai acabar, não sabe?
Que ditadura, minha senhora?
E quando ela acabar, nós nos encontraremos no tribunal.

Não aconteceu. A justiça encontra solo mais propício nos palcos do que no Judiciário.

domingo, 4 de maio de 2025

Inanição, mudez e o inarticulado: Escrevo seu nome no arroz, de Caetano Romão

Nós que lemos Um nome inteiro disposto à montaria (7 Letras, 2021), poemas que formam uma história de amor entre dois homens, imaginávamos que Caetano Romão poderia escrever um romance. Quem ler Escrevo seu nome no arroz (Fósforo, 2025) logo perceberá que é obra de um poeta, pelo que faz com o estilo ("Meu coração está com dor de garganta", por exemplo). Por sinal, um dos poucos momentos não verossímeis do livro ocorre quando o narrador/protagonista diz que "Só temos palavras cruzadas em casa", e não livros.


O autor no lançamento na Livraria Simples, em São Paulo. 

Mencionamos o gênero do primeiro livro não para insinuar que o autor entrou como um peixe fora d'água no campo da prosa de ficção, mas para afirmar que ele é uma das comprovações do que Fernando Pessoa dizia: é preciso ser poeta para escrever bem. 

Os fatos da história são simples: dois irmãos enterram a mãe no quintal da casa logo no início do livro. Depois disso, vão degringolando mentalmente, especialmente o mais velho, que deixa de falar. A terra murmura, coisas mudam de lugar, eles ainda ouvem a mãe. O mais jovem ainda é capaz de sair da casa, falar com estranhos com quem tem encontros fugazes (um especialista em lepidópteros, uma artista em fase de autorretratos). Nenhum encontro amoroso acontece. O mais velho surta mais seriamente e não recebe ajuda, o que precipita o final.

Há outras questões no livro. Ele é quase um romance de tese sobre a voz: os dois jovens ouvem vozes além do murmúrio da terra. O protagonista, que é gago, reclama que a dentadura da mãe já não diz nada. Porém diversas coisas se manifestam em linguagens não articuladas, que são apreciadas porque "um alfabeto é rasgo que jamais cicatriza". Quando finalmente surge um assobio, ele comenta: "Tenho escutado murmúrio, sussurro, gemido. Agora, assobio, nunca. Pelo jeito, a terra anda mais cheia de fôlego.". O irmão quer saber o que as vozes falam; o protagonista responde: "Dizer não necessariamente é dizer alguma coisa.". Há uma busca interessante pelo inarticulado nesta obra.

Parece-me que hoje há mais casos na literatura brasileira de tentar dar a voz aos seres não humanos, inclusive a elementos geológicos, como é o caso de Krakatoa de Veronica Stigger. Na primeira parte desse último livro, a voz de vulcões, do carvão, da água, do gelo, do fogo e outras ressoam depois do fim do mundo. Na obra de Stigger, a questão do Antropoceno é central: o quanto a crise trazida pelos humanos reverte em catástrofe para eles (nós) mesmos.

A proliferação de vozes no livro de Caetano Romão, embora seu cenário seja o meio rural, não se origina disso nem mesmo da devastação produzida pelo latifúndio (hoje chamado de "agronegócio"). Há uma crise do humano aqui, no entanto ela ocorre em escala individual, doméstica. Quando o irmão deixa de falar, o protagonista se pergunta se "por acaso cresceu grama sobre o seu vocabulário". 

Doméstica, talvez uterina. A crise é desencadeada pela morte da mãe, que é enterrada onde moram. De veze em quando, eles vão ao "buraco de mamãe" para varrer as folhas. O quarto dela fica intocado: o jovem gato, trazido pelo irmão mais velho, pega a dentadura da falecida e gera um pequeno incidente (curiosamente, é ele quem ganha a capa do livro). Em princípio, é a morta, e não o gato quem faz imperar a desordem:


Mamãe está tão real que até faz tremer os copos sobre a mesa. Tento fazer alguma piada para desviar a atenção, mas não dá muito certo. Simão rosna para mim e dá uma mordida no seu pão com cebola, depois de encharcar ele na canja.

Hoje ela está impossível: a louça inteira se sacode fazendo pirraça, como se houvesse um terremoto debaixo da terra.


A casa acaba se tornando um grande útero da mãe morta onde os irmãos vão regredindo, um mais seriamente do que o outro. Além disso, o irmão mais jovem deixa transparecer uma atração homoafetiva pelo mais velho (Simão), que deixa de falar e de comer. Procurando-o, depois que foge de casa, ele vai encontrando as roupas jogadas no caminho e faz este comentário: "A cueca, amassada rente à cerca, sorriu para mim fazendo promessas". O que é feito com o grão de arroz onde foi escrito o nome do protagonista (o título do livro, note-se) confirma o erotismo subjacente.

Este é um romance do incesto, mais sutil na abordagem no tema do que Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, por apostar no inarticulado para revelá-lo. Tema tabu, os textos da orelha e da quarta capa sequer o mencionam.

No útero, os dois irmãos disputam pela mãe. Quando o mais velho adoece, o protagonista, embora saiba que "só um doutor para vasculhar Simão e dizer se ele tem voz alojada no fígado", não chama ninguém e assume os cuidados paliativos.

Em certo momento, ele diz que traria, entre outras coisas improváveis, inseticidas, ratoeiras, pastas de naftalina para o irmão, doente, já "inerte no sofá", sentir-se "próspero". É evidente que ele deseja destruí-lo. A curiosa escolha do adjetivo é bastante reveladora: como se sabe, o personagem homônimo de Shakespeare em A tempestade foi destronado e exilado pelo irmão.

Um dos dados mais interessantes do romance é que essas ações monstruosas contrastam com a permanente delicadeza da linguagem do protagonista. Ele se apresenta como um jovem frágil e conta de uma festa em que sofreu deboche e foi o irmão que teve de apanhar de vários para defendê-lo. 

Um monstro sutil. No final, o delicado é que obtém a vitória de ficar sozinho na casa/útero, o que se reflete na voz: o mais difícil trava-língua é enfim dito sem gagueira nenhuma. Como este romance.


domingo, 27 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXII: Caderno de ossos, de Julia Codo e a Vala de Perus

O romance Caderno de ossos (Companhia das Letras, 2025), de Julia Codo, trata da Vala de Perus. Curiosamente, as três últimas notas que escrevi neste blogue abordam acontecimentos recentes ligados a essa vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos, alguns deles de militantes políticos.

Em 21 de março, publiquei sobre o pedido de desculpas que a União Federal faria no dia 24 subsequente; em 29, decidi escrever sobre como ele ocorreu, em razão da deficiente cobertura da imprensa; finalmente, depois de os trabalhos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp) terem levado à identificação de Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva, expliquei algo, em razão das falhas do jornalismo, sobre como ela aconteceu

Opera Mundi, que entrevistou Edson Teles, da coordenação do CAAF, e Sumaúma, com Eliane Brum revisitando o caso de Grenaldo, que ela ajudou a desvendar em 2003, foram muito melhores na abordagem. Também o foi este livro de Julia Codo que, impresso em março de 2025, não abordou esses acontecimentos recentes, mas explicou bastante do processo de identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus até o governo de J. Bolsonaro, que o sabotou.

Codo resolve adotar um tom didático para explicar a história da Vala, a abertura dela no governo de Luiza Erundina, a negligência da Unicamp, a criação do CAAF, as ações do presidente Bolsonaro e da ministra Damares contra a identificação dos desaparecidos. Cito esta passagem sobre as audiências de conciliação na Justiça Federal, da época em que a União tentou tirar os remanescentes ósseos da guarda do CAAF, que havia realizado identificações em 2018:


O governo federal argumentou que a manutenção do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e o envio das amostras para Haia geravam muitos gastos e que a migração das ossadas para a Polícia Civil de Brasília traria uma grande economia. Os representantes da Comissão dos Familiares disseram que aquilo era inaceitável, que a transferência provocaria perda de tempo e novos atrasos na identificação dos restos mortais e que a troca na equipe, treinamento de pessoal, remoção e transporte adequado do material também gerariam gastos aos cofres públicos.  


O que poderia ser um defeito, o didatismo, acaba se revelando a força do livro, que não se justifica de outra forma. O romance, narrado em primeira pessoa, alterna as passagens da protagonista contando o que está vivendo com retrospectivas de sua infância e juventude, bem como relances da história de sua tia Eva, a desaparecida que talvez esteja entre os remanescentes ósseos da Vala. Não há contraste, porém: é tudo muito parecido e pouco interessante: é bastante evidente que o casamento dela não vai durar, tampouco o avô conseguirá viver muito mais tempo. Sabemos todos que empreiteiras participavam ou se aproveitavam da repressão: não há revelação alguma quando a antiga militante, Celeste, conta para a sobrinha de Eva o que todo muito sabia. 

Essa escrita centrada no eu acaba por se revelar burguesa demais para o tema. Quando a protagonista vai para a Marcha do Silêncio em 2019 em São Paulo (o evento aparece sem o nome), ela percebe sua própria "falsa empatia" e seu "engajamento episódico". Infelizmente, o romance mimetiza a personagem, em vez de trazer um olhar crítico.

Como a protagonista não é extremamente sagaz, pululam passagens sem sutileza ou profundidade: é um exemplo a explicação sobre as pesquisas ante mortem e post mortem que é logo seguida de uma analogia simplória no campo amoroso. Vejam esta passagem do amor post mortem: "Quando a ruptura é abrupta: síndrome do coração partido, também chamada cardiomiopatia do estresse. Quando a ruptura é lenta: negação, insônia, gastrite.".

As reflexões da protagonista assemelham-se às frases que revisa para seu trabalho on-line de citações motivacionais para um aplicativo, bem como às interpretações de sonhos que ela consulta em um portal da internet. O estilo alheio também pode ser a pessoa. 

A tentativa de introduzir a personagem de uma vidente perto do final não chega a mudar o panorama; Clarice Lispector em A hora da estrela criou uma personagem análoga para precipitar aquele desfecho completamente genial em que se entrelaçaram as dimensões sociais e individuais daquela história. Neste livro de Julia Codo, temos apenas uma tentativa de adiar o final com mais um episódio; o fim do romance, porém, já ocorreu páginas antes de ele terminar.

Principalmente, nada ficamos a saber sobre Eva, a desaparecida. O romance não chega a constituir o que ela fazia em termos políticos, tampouco quem ela era. Essa lacuna poderia ter sido explorada de forma interessante, mas acaba se tornando um simples vazio, e não um buraco negro a gerar outros universos. A propósito, a autora também incluiu passagens didáticas sobre Astronomia, como a singela comparação da passagem dos dias durante a pandemia com os efeitos da atração gravitacional de um buraco negro.

Nesse sentido, o olho de resina da desaparecida, que a protagonista descobre e passa a levar consigo, é o próprio romance: ele também não consegue dar a ver. Infelizmente, esse isomorfismo tampouco é explorado pela autora.

Boa parte da história se passa em 2019: chega 2020 e a pandemia, que é reduzida, neste livro, a um pretexto para oficializar o fim do casamento e confirmar o isolamento social da protagonista. Dito isso, os efeitos sobre o trabalho do CAAF são descritos. O antropólogo forense com quem ela teve um namorico explica:


Estamos fazendo o trabalho remoto que dá para fazer: manter o contato com os familiares, fazer textos e vídeos informativos. E acompanhar as audiências online do gabinete do juiz.

[...]

Para quem não quer que o processo ande, a pandemia é uma ótima justificativa: não tem condição sanitária, e pronto. Mesmo sendo um laboratório de cem metros para dois profissionais. Daria perfeitamente para trabalhar.


O didatismo pelo menos dá algum valor de documento ao romance e o relaciona ao direito à memória e à verdade, pois foi exatamente isso o que ocorreu com aquele Centro da Unifesp.

Em pelo menos dois momentos em que o livro se aproxima de algo mais sério, ele recorre a frases nominais. Isso é interessante: a Vala de Perus irrompe e a escrita se transforma: "Uma vala com a largura de uma retroescavadeira. Trinta e dois metros de comprimento, quase três de fundura. Um dia de 1976. Uma exumação em massa numa noite muito fria ou muito quente. [...]". 

Não dura muito. Poderia ter sido uma poética para o desconhecido. Da forma como ficou, temos apenas a sintaxe de um caderno de notas, e não de ossos.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXI: Duas novas identificações de desaparecidos políticos e a desinformação da imprensa

Dia 15 de abril de 2025, à noite, foi liberada pelo Comitê Científico do Projeto Perus a informação de que foram identificados os remanescentes ósseos de dois desaparecidos políticos: DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA (e não "da Silva"), assassinados pela ditadura militar em 1971 e 1972, respectivamente.
Seus corpos foram ocultados em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. A chamada "Vala de Perus" somente foi aberta em 1990, no governo da prefeitura Luiza Erundina e representou uma grande materialidade do caráter da ditadura militar, com os mais de mil corpos lá escondidos ilegalmente.
Logo teremos o aniversário de 35 anos da abertura da Vala, mas poucos desaparecidos foram identificados desde então. Agora, temos seis. No dia 16, fez-se o anúncio público das novas identificações na Reitoria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Recentemente escrevi sobre o recentíssimo, de 24 de março, pedido de desculpas da União pela negligência na identificação. Naquele momento, não gostei da cobertura da imprensa. Desta vez, acho que foi pior. Fica a impressão de que ela não tem acompanhado a questão e, por isso, não a compreende bem.
Foi interessante ver que profissionais da informação não sabiam ou não lembravam que teria havido uma identificação de Casemiro em 1991 pela Unicamp. Emocionante ver reportagem televisiva afirmando que ele foi identificado em 1991 e que agora o DNA foi confirmado. Comovente ler na imprensa que em 1991 não existiriam exames de DNA...
Escrevo esta pequena nota apenas a partir de informações que vieram à luz, de 1990 até 2025 pelos Familiares, pelas Comissões da Verdade, imprensa e universidades, sem entrar, claro, em informações confidenciais. 
A equipe da Unicamp chefiada por Badan Palhares falhou na errônea identificação de Denis Casemiro em 1991. Como foi explicado no ato do dia 16, o DNA dos remanescentes ósseos que foram enterrados em Votuporanga como se fossem de Denis Casemiro não corresponde ao da família Casemiro, tampouco ao de nenhuma das famílias de desaparecidos cujos dados até o momento constam dos bancos de dados genéticos. Uma vez que não foram colhidos os dados de todas, talvez eles sejam de outro desaparecido político.
Foram outros remanescentes que foram identificados agora como pertencentes a Denis Casemiro.
Em 1991, a Unicamp usou um método de sobreposição de imagens de fotos dos desaparecidos vivos com os crânios, bem como verificação da tipagem sanguínea. A Agência Pública explicou aqui: https://apublica.org/2025/04/vala-de-perus-exame-de-dna-corrige-identificacao-de-desaparecido-anunciada-em-1991/
Ao contrário do que diz a matéria, existiam exames de DNA em 1991, porém a Unicamp não os fazia, pois eram muito caros. Continuam sendo, por sinal: também por motivos econômicos, antes de enviar qualquer amostra para coleta, é necessário avaliá-la rigorosamente segundo critérios antropométricos, trabalho feito pela equipe de pesquisa post mortem do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp). A análise genética é feita no exterior, em um laboratório na Holanda, o ICMP (International Commission on Missing Persons).
Como foi largamente divulgado em 1991, a Unicamp achou seis pontos coincidentes entre a foto de Denis e o crânio e bastou-se. Também foi divulgado na imprensa da época que eram QUINZE os pontos principais que eles buscavam.
De qualquer forma, como se viu na cerimônia, não havia muita chance de a Unicamp conseguir identificar corretamente por meio desse método porque, conforme se viu tanto em 1991 quanto depois, inclusive na recente matéria da Agência Pública, a equipe usou uma foto antiga de Denis Casemiro, de 1962, tirada quando ele tinha apenas 18 anos.
É a foto que está publicada no Dossiê Ditadura, dos Familiares, na Comissão Nacional da Verdade e na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":



Por algum motivo que me escapa, é a foto que boa parte da imprensa agora decidiu reproduzir. 
No entanto, quando foi assassinado pelo DEOPS-SP, ele não era mais assim. O CAAF-Unifesp divulgou a notícia com foto mais recente dele, obtida no fim do ano passado pela pesquisa ante mortem:


Ela está guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Fundo do DEOPS-SP. Esta é a imagem que se encontra nos álbuns policiais (quem viu "Ainda estou aqui", o filme de Walter Salles, deve lembrar das cenas de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, folheando os álbuns de suspeitos - era exatamente assim que acontecia).
A foto não tem data, mas se pode imaginar que ela tenha sido tirada perto de seu assassinato, pois faz recordar de seu semblante quando morto (quem tiver estômago, pode ver essas fotos do laudo necrológico na ligação para a Comissão "Rubens Paiva" que deixei acima). Nos dois álbuns onde ela pode ser vista, há muitas fotos tiradas depois do sequestro pelas forças da repressão.
Portanto, para Denis Casemiro, tivemos a restituição de seu corpo e de sua imagem, o que faz valer o direito à memória e à verdade, e caminhamos um pouco mais dentro do campo da justiça de transição.
Grenaldo de Jesus Silva era um caso que tinha muita probabilidade de ser encontrado em Perus, pois havia registro de ele ter sido enterrado no Cemitério Dom Bosco. Quando abriram clandestinamente a Vala, em 1976, seu corpo foi lá escondido. A ditadura fez espalhar uma versão oficial de que ele teria se suicidado depois de ter tentado sequestrar um avião e seria um criminoso. No entanto, ele foi um perseguido político, foi expulso da Marinha em 1964, tendo antes recebido a pena mais alta entre os membros do movimento dos marinheiros. 
Os militantes contra a ditadura não acreditaram no falso suicídio e, desde a campanha pela anistia, incluíram seu nome entre os mortos e desaparecidos da ditadura.


A foto pode ser vista no perfil elaborado pela Comissão "Rubens Paiva": https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/grenaldo-de-jesus-da-silva. Nele, também pode ser ler a notável matéria de Eliane Brum que revelou a verdade sobre o assassinato de Grenaldo, bem como o fato de que ele tinha sido descoberto e estava sendo perseguido, por isso tentou fugir do país por via aérea.
Ele pôde ser encontrado porque, em setembro de 2024, uma nova equipe entrou no CAAF-Unifesp e o trabalho de identificação pôde ser retomado, mesmo com contratos com prazo determinado e posições precárias. Em 2018, a equipe antiga logrou fazer duas identificações; depois, contudo, chegou o governo do Inelegível e o trabalho ficou quase paralisado; ademais, como o professor Edson Teles, vice-coordenador do CAAF explicou no ato do dia 16 de abril, aquele governo federal tentou retirar os remanescentes ósseos da Unifesp, o que poderia gerar um novo desaparecimento, pois o trabalho anterior sobre eles se perderia.
O anúncio da histórica identificação de DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA foi realizado na presença da Ministra de Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. Na mesa, falaram Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do governo federal; Samuel Ferreira, coordenador cientifico do trabalho de identificação e perito da Polícia Civil, Edson Teles, professor de Filosofia da Unifesp e um dos coordenadores do CAAF (com a historiadora Joana Barros); Amelinha Teles, pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; a Reitora da Unifesp, Raiane Patrícia Severino Assumpção e, finalmente, a Ministra Macaé Evaristo, que prometeu ajudar financeiramente os trabalhos. Sua fala foi bem sintetizada na matéria do Ministério: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/abril/estado-brasileiro-identifica-novas-vitimas-da-ditadura-e-reforca-compromisso-com-justica-de-transicao
Para terminar esta nota, não tenho nada melhor do que sugerir escutar Amelinha Teles (consegui gravar o início de sua manifestação no ato), que presenciou esta história desde a abertura da Vala, em 1990, elogiou Eliane Brum (uma jornalista rara) por sua atuação no caso de Grenaldo e explicou de maneira bem clara: "a Unicamp nos traiu": 



sábado, 29 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCX: A União se desculpa pela Vala de Perus e a imprensa esquece dos movimentos sociais

Finalmente ocorreu o pedido de desculpas do Estado brasileiro "pela negligência na condução da identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus", que foi acordado nas audiências de conciliação do processo judicial sobre esses trabalhos de identificação. Essa vala clandestina em São Paulo, no Cemitério Dom Bosco, foi usada pela ditadura militar para ocultar corpos de vítimas do Esquadrão da Morte, militantes políticos, mortos da epidemia censurada de meningite e indigentes. Ela foi descoberta em 1990, mas até agora, aparentemente, apenas cinco desaparecidos foram identificados.

Os remanescentes ósseos foram retirados em 1.049 sacos. Hoje o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp estima que eles compreendem 1062 casos, acondicionados em 1065 caixas.

Recordo, como escrevi antes, que o governo do Estado de São Paulo, que também foi negligente, recusou-se a fazer esse pedido, razão pela qual esse tema saiu da esfera conciliatória em relação a esse ente estatal. É bem possível que seja obrigado a fazê-lo por decisão judicial.

A cobertura da imprensa foi mais ou menos homogênea entre as notícias que consegui encontrar. A EBC parece ter dado o tom, com o foco na Ministra Macaé Evaristo. Não houve diferença significativa entre os veículos situados mais politicamente à direita (como o G1 e a Folha) ou à esquerda (como A Ponte e O Vermelho): todos ignoraram o fato de que a cerimonialista do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aparentemente esqueceu que estava prevista a fala dos movimentos da comunidade de Perus e que Fofão, da Comunidade Cultural Quilombaque, teve que tomar o microfone para que a programação combinada na audiência na Justiça Federal fosse efetivamente seguida.




Foi ignorada também a carta de reivindicação da criação de um memorial, que ele entregou à Ministra.

Outro momento descartado pelos jornalistas foi a chegada de Antônio Pires Eustáquio, o funcionário do Serviço Funerário que revelou a localização da Vala em 1990. Tínhamos a informação de que ele não apareceria devido a problemas de locomoção (o local não é de fácil acesso). No entanto, ele conseguiu aparecer depois do pedido de desculpas da União e fez uma breve intervenção, que eu filmei:



É interessante vê-lo dizer que, a despeito das várias ameaças de morte que sofreu, conseguiu sobreviver "por causa da democracia". 

A imprensa em geral seguiu a orientação estadocêntrica do próprio evento. Embora o Ministério tivesse o nome dos familiares presentes e dos desaparecidos correspondentes, eles não foram anunciados, embora a cada pausa fosse trombeteada a presença de, por exemplo, alguma chefe de gabinete de vereadora que tivesse acabado de chegar ao evento. E eram vários: de André e Maurício Grabois, de Gilberto Olímpio Maria, Hiram de Lima Pereira, Jaime e Lúcio Petit da Silva, João Maria Ximenes de Andrade, entre outros que não vi e já me desculpo por não citar. Os movimentos sociais de cultura e os de memória, verdade e justiça tampouco receberam o destaque merecido.

O público era grande e muita gente ficou em pé: a estrutura montada pelo Ministério para o evento foi subdimensionada. Entre os presentes no público do evento, estavam Ricardo Ohtake, o artista do monumento da Vala; Teresa Lajolo, a relatora da CPI de Perus em 1991; Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na qual foi realizada a audiência de criação do órgão que faz a identificação dos remanescentes ósseos (depois dos anos de negligência da Unicamp, da USP e da UFMG): o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. Eles não discursaram nem tiveram assento à mesa.

A fala de Gilberto Molina, representando os familiares, foi um ponto alto da cerimônia: ele tratou do "velório de quarenta anos" por que a família passou até a identificação de seu irmão, Flávio Molina. Ressaltou que outras famílias seguem esperando os resultados há meio século.

Ele recebeu esta placa da Ministra e a concedeu para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, movimento da sociedade civil que também lá estava assistindo ao evento. Agradeço a Criméia Almeida ter-me permitido tirar esta foto.



Comprei, no dia seguinte, dois tabloides, O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, bem como o jornal O Globo. Todos falaram do 24 de Março na Argentina, com ênfase nas medidas anunciadas por Milei, que está tentando tornar a teoria dos dois demônios uma doutrina oficial. 

Nenhum desses três veículos de imprensa mencionou os eventos análogos no Brasil, nem mesmo o pedido de desculpas. De fato, sem essa imprensa não estaríamos tão atrasados em matéria de justiça de transição.

Abaixo, copio a carta entregue pela comunidade de Perus na cerimônia exigindo a construção de um memorial, outra medida essencial de justiça por seu caráter educativo em memória e direitos humanos. Faço notar que o IPDMS, exceção no campo da pesquisa jurídica no país, instituição acadêmica a que pertenço, assinou-a.




PELA CONSTRUÇÃO DE UM MEMORIAL DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS E DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS




A/C Excelentíssima Senhora Ministra dos Direitos Humanos




Nós, integrantes do Território do Interesse da Cultura e da Paisagem Jaraguá-Perus Anhanguera e coletividades signatárias, por meio desta, solicitamos, em caráter de urgência, a implementação de um Memorial para a Reparação Histórica, referente aos mortos e desaparecidos políticos pelo crime de Estado dos governos ditatoriais, que servirá também como um espaço de formação e defesa permanente dos Direitos Humanos, no Cemitério Municipal Dom Bosco, localizado na Estrada do Pinheirinho, 860, em Perus, São Paulo.

Em 04 de Setembro de 1990, foi realizada a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, da qual foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos vítimas do aparato repressivo do período da ditadura civil-militar no Brasil. O evento foi um marco na luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos na medida em que se deu início ao processo de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, das inúmeras violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade que tinham a pretensão de serem ocultados pela ditadura.

A luta pelo direito à memória, entendido aqui como a preservação da história, da identidade e da verdade, garante que fatos históricos, especialmente aqueles relacionados a regimes autoritários e violações de direitos, não sejam esquecidos ou distorcidos. É uma luta pela promoção da justiça, reparação histórica e pela construção de uma sociedade mais democrática.

É de suma importância ressaltar que a construção de um Memorial para a Reparação Histórica referente aos mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Civil-Militar desempenhará papel crucial na luta pelo direito à memória, não apenas no campo simbólico, mas também material. Isso porque, um espaço físico de memória transforma a história, a memória e o sofrimento causado pelo Estado, em algo tangível e acessível. A função não é apenas honrar o passado, mas também educar, inspirar e fortalecer a luta por justiça, verdade e democracia no presente e no futuro. Sem esses espaços efetivos, corre-se o risco de que as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura caiam no esquecimento ou sejam interpretadas de forma conveniente, permitindo que ciclos de violência e opressão se repitam.

O processo de construção desse Memorial em Perus e de tantos outros que gostaríamos de ver edificados pelo país, devem seguir princípios basilares como transparência, estímulo à participação social e ampliação da discussão sobre direito à memória e aos direitos humanos. Deverá sobretudo ser realizada por meio de articulação interfederativa - aos entes responsáveis, e com constante comunicação com a sociedade civil em todas as fases do processo.

Dessa forma, passados 35 anos da abertura da vala de Perus, a construção de um espaço físico tem como objetivo a manutenção e defesa da memória, justiça e verdade da trajetória política brasileira. É um passo importante para reafirmar no presente e para as gerações futuras que “os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.


São grupos e coletividades signatárias desta carta:

Território do Interesse da Cultura e da Paisagem - Jaraguá-Perus Anhanguera - TICP-JPA
Agência Queixadas
Agrupamento Debate CUTista - SINPEEM Independente e de Luta
Associação dos Aposentados Perus
Associação dos Professores da PUC - APROPUC-SP
Bando Undirê
Bloco Carnavalesco "Os Zatt'revidos" de Pirituba
Bloco D. Yayá
Campanha Tolstói
Canal Fala Escola
Casa do Hip Hop Perus
CEB's São José
Centro de Memória Queixadas - Sebastião Silva de Souza
CEU EMEF Perus
CEU EMEI Jorge Amado
CIEJA PERUS I
Coletivo Anhanguera Luta & Resistência
Coletivo Brigada pela Vida
Coletivo Código da Arte
Coletivo Favelô
Coletivo Janela Aberta
Coletivo Literário Sarau Elo Da Corrente
Coletivo Mães do Morro
Coletivo Matriarcal PanAfricanista Yaa Asantewaa
Coletivo Paulo Freire Noroeste
Coletivo Paulo Freire São Paulo
Coletivo Periferia no Foco
Coletivo Perus tem Rock!
Coletivo Povo De Luta Perus/Anhanguera, Taipas, Jaraguá E Pirituba
Coletivo Revolução Materna
Coletivo Rock de Subúrbio
Coletivo Salve Kebrada
Coletivo Slam do Pico
Coletivo Vozes da Base
Comunidade Cultural Quilombaque
CPDOC Guaianás
DOC_ARTE: Práticas Documentais e Arte
EMEF Philó Gonçalves dos Santos - EcoParque Escola Philó
EMEF Prof. Remo Rinaldi Naddeo
Espaço Cultural Morro Doce
Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo
Frente Popular em Defesa da Escola Pública de SP
Grupo Capoeira Raiz Da Resistência Núcleo Zumba
Grupo de Estudos em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo - GEPSIPOLIM
Grupo de Estudos Sobre Conflitos Internacionais - GECI
Grupo de Pesquisa Imagens, Metrópolis e Culturas Juvenis
Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar - GP LACE
Grupo de Teatro TONAEJA
Grupo Pandora de Teatro
Instituto Cultural Bola de Fogo
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS
Instituto DIPI
Instituto Pólis
Instituto Reeducação Para Todos Os Povos/Guerreiros Da Vila Da Paz
Laboratório de Estudos de Saúde e Sexualidade - LESSEX
Morada Jaraguá Okênozune
Movimento Cultural das Periferias
Movimento Negro Unificado de São Paulo - MNU/SP
Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento
Movimento Renova Sinesp
Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Atividade, Subjetividade - NUTAS
Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão - NETRAB
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprofundamento Marxista - NEAM
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos - NCAF
Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão - NEXIN
Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade
Núcleo de Preservação da Memória Política - NÚCLEO MEMÓRIA
Núcleo do PSOL Perus
Observatório do Futuro - FAFICLA
Ocupa Ramp
Ocupação Artística Canhoba
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Perus/Anhanguera
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Pirituba
Periferia Preta
PLPs- Promotoras Legais Populares
Projeto Arte de Subúrbio
Projeto Brincadas
Rede Cultural Anhanguera
Rede Paulista de Educação Patrimonial - REPEP
Rede Viva Periferia Viva
Reduto do Rap
Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo - SINPEEM
Sindicato Dos Trabalhadores Na Indústria Do Cimento, Cal E Gesso De São Paulo
Street Roots
Tapijás Coletivo Artístico
Tempero de Oyá
Territórios, Memórias e Identidades
União de Mulheres de São Paulo
Vereador Nabil Bonduki - PT
Vereador Toninho Véspoli - PSOL