O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 2 de novembro de 2025

Nuno Rau, a Prosa da cidade e a memória dos estilhaços

Prosa da cidade (São Paulo: Patuá, 2025) é um interessante livro que trata, à primeira vista, do Rio de Janeiro, mas também da poesia e do corpo em tempos de crise e descarte do urbano, do poético e dos corpos daqueles a quem, se o chão desaparecer, só lhes restará "agarrar-se pelo pescoço à corda das certezas". 

O interessante projeto gráfico de Alessandro Romio inverte a posição da orelha, escrita por Afonso Henriques Netto. O livro ainda conta com quarta capa de Mar Becker e um ensaio de Leonardo Almeida Filho, além de uma "(quase) advertência" do autor no início e um pedido aos leitores no final a respeito das obras retratadas nas fotos.



No entanto, ainda há o que falar sobre Prosa da cidade. Em primeiro lugar, quero concordar com o autor e discordar da recensão de Eduardo Sinquevisque, que considera que as fotos do livro são poemas. Trata-se, em vez disso, de um livro de poemas com fotos do próprio poeta, mas não de algo como a edição original de Paranoia, com poemas de Roberto Piva e fotos de Wesley Duke Lee. Nela, poesia e fotografia estão em relação intersemiótica e ambos são autores do fotolivro; os poemas e as fotos, ademais, têm a força e a autonomia para serem publicados separadamente.

Prova-o o desastre da edição nova do Piva pela Companhia das Letras (sigo aqui a recensão de Fabio Weintraub, "Um coração que não para de crescer"): ela escolheu, e fora de ordem, somente algumas das fotografias: tratou-as como mera ilustração, banalizando a proposta original. Mais valia ter publicado apenas os poemas, como fez a editora Globo no início deste século. O IMS, lembro, respeitou-a quando publicou neste século Paranoia.

As fotos de Nuno Rau não têm o mesmo propósito (de qualquer forma, a qualidade da impressão não permitira aquela relação intersemiótica: teríamos que ter as condições gráficas de um livro de arte): elas estão lá com um papel de arqueologia da escrita: aquelas paisagens urbanas são parte do que animou esta poética.

Em segundo lugar, o título: de vez em quando, um livro de poemas recebe a palavra prosa no título: Prosas seguidas de odes minimas, de José Paulo Paes, de José Paulo Paes, e Prosa, de Eduardo Sterzi, são exemplos das últimas décadas da poesia brasileira.

João Alexandre Barbosa, na apresentação do livro de Sterzi, compreendeu que título era uma referência à Estética de Hegel: o confronto entre a idade da poesia dos antigos e a idade da prosa dos modernos; daí, segundo Erich Heller, também citadom a marginalidade do poeta na Era Moderna. Sterzi, nas suas notas de autor, aposta que teremos lido nessa sua estreia "aquilo que é vulgar, trivial,/ positivo ou material". Essa proposta, evidentemente, não é nova, mas moderna.

Parece-me que Prosa da cidade aposta nisto, no vulgar, no trivial, que é o que ele busca dizer; para isso, ele não se detém no Rio de Janeiro (Mar Becker, na contracapa, chega a dizer que este Rio é também "todas as cidades do mundo"). O objetivo não se limita a fixar paisagens nem momentos pitorescos da cidade. Trata-se da aposta de que é urbano o espaço criado pela escrita, por ser público e aberto às dissemelhanças. O primeiro poema, "Paisagem de cidades imaginárias", da seção "Marco zero" (revela-se que é um livro de arquiteto), destaca essa questão:


e você aí nessa cidade-fantasma
com o braço erguido
em frente ao muro, no espaço
do instante em que o grafite
incompreensível que sua mão
projeta é toda a sua
vida.


No ensaio que cumpre o papel de posfácio, Leonardo Almeida Filho destaca as várias referências ao Modernismo brasileiro (por exemplo, entre as cidades listadas no poema que citei, está Pasárgada), porém essa não me parece ser uma novidade, ou o que há de mais interessante no livro: a "pós-política literária", mera paródia de Drummond inserida após esse texto, confirma que o essencial do livro aconteceu em outro lugar.

Um terceiro ponto que gostaria de destacar é o verso de Nuno Rau: em geral, os poemas foram escritos em verso branco e livre, com um uso de enjambement que se combina ao procedimento de começar sentenças com maiúscula no interior do verso sem nenhum ponto final que as preceda. Transcrevo, como exemplo, o final de "um artefato acende os edifícios da praça quando explode":


tudo parece explodir Não: não parece Tudo
explode e voam estilhaços que são lâminas no céu
das suas certezas Sim, agora você já pode se perder
de si pela cidade - essa antologia
infinita, sem fronteiras
nem bunkers

Ocorre aí uma pausa, mas não a do ponto final: às vezes, elas parecem sugerir que a frase anterior continua, mas sem ser ouvida. Em outros momentos, elas parecem introduzir novas vozes e quebrar o caráter em geral monológico dos poemas. Acentua-se, dessa forma, também o caráter fragmentário do discurso.

Este poema, da seção "uma cidade, as cidades todas", e o primeiro parecem delimitar o campo do livro, entre o grafito que constrói o urbano e a cidade que cria antologias das coisas por explodi-las. Um dos poemas traz a visão de um anjo arrastando-se na cidade, "aqueles tijolos de um vermelho antigo sangram no bairro industrial". Esta é a cidade:


[...] Entre
despejos, catástrofes e flores febris, a asa
é um aleijão, inútil
como um poema que cicatriza
na pele da memória enquanto
anoitece, [...]

Já estamos no quarto e último ponto: a memória, que aparece aqui na dimensão da ferida (lembrança do corpo) e dos fragmentos (lembrança da matéria em geral), na sua dialética com a morte e o esquecimento. Das coisas e da história sobram os vestígios: "a história narrada no vazio vertical/ de quem foi triturada pelos dentes rudes/ das britadeiras e contabilizada em vagões/ lentos como lotes de vestígios [...]" no belo "uma pedreira".

Essa energia de destruição e desagregação decorre do capital. Este livro é abertamente anticapitalista e, no irônico "neolib", trata da repressão e dos massacres de hoje, feitos em nome da ordem vigente: 


pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
dos garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.

a noite alcança a cidade maravilhosa.


Nuno Rau explicita a posição de classe do eu lírico desse poema: é daqueles que desejam a prisão ou a morte desses meninos (noto, por sinal, que a recente chacina no Alemão e na Penha confirma a atualidade da questão). 

Cidade maravilhosa, provavelmente devo explicar, é um velho epíteto do Rio de Janeiro, que recebe, com sua douta classe média, outro poema especialmente dedicado: "nênia para a classe média brasileira":


Copacabana não tem mais nenhuma livraria. [...] Há trinta anos eram quatro ou cinco, sem contar um ou dois sebos. O bairro de classe média mais adensado do Brasil não tem nenhuma livraria. [...] Seis igrejas católicas, duas igrejas messiânicas, duas igrejas batistas, três sinagogas e nenhuma livraria. Quatorze escolas municipais, onze escolas estaduais e vinte e cinco escolas particulares pontuam ruas e praças, mas nenhuma livraria. [...]

 

Nênia, evidentemente. Devo dizer que, na última vez em que fui a Copacabana, encontrei duas livrarias, inclusive o ótimo sebo Mar de Histórias, mas, de qualquer forma, o número seria ridiculamente pequeno para o tamanho do bairro e não daria conta de um quarteirão da calle Corrientes em Buenos Aires. 

O poema menciona templos das chamadas religiões do Livro, que congregam fiéis que... não leem. E a educação? Rau nem menciona o campus da Universidade Estácio de Sá: o chamado ensino superior não logrou entrar no poema.

Nesse poema, a destruição da cultura do livro é um tema, não uma forma. Mas a fragmentação e o estilhaçamento podem ter esse papel, quando o poeta é habilidoso. Vemos isso acontecer nas anamorfoses da seção com o simpático título "chapa quente". Elas já haviam sido publicadas com outro projeto gráfico: https://www.instagram.com/p/CIyVPNYnV4K/?img_index=2

Sandro Ornellas destacou os sonetos dessa seção como o ponto mais forte de Prosa da cidade. Penso, porém, que o procedimento de despedaçá-los em fragmentos seja o que lhes concda, paradoxalmente, sua força.

Uma poesia que se alimenta de sua própria destruição. Naturalmente, o tema da morte pulsa na Prosa da cidade, como na curiosa oração ao suicídio de "paradise park prayer": "se o chão desaparecer agarrar-se pelo pescoço à corda das certezas". É o trecho que citei no começo desta nota. A palavra suicídio não aparece, salvo como "centro oculto" ou resposta de um poema como "o que você faria se não tivesse medo?":


até o centro oculto, ali
onde o segredo pode
ser o não haver nada

Ou esta paisagem: "do oitavo andar à frente/ [...]/ desejava o salto até perder de vez/ o que fosse", de "vista sobre a cidade sem horizonte". Ou este mergulho adiado: "[...] das conversas que você trava/ com o mar, todas falando da morte [...]" ("respire fundo e conte até dez").

O que me conduz a um curioso poema, um dos primeiros, em que o verbo suicidar aparece em nota: "uns tragos com j. de souza". O título parece indicar um momento alegre num bar, no entanto o poema começa desta forma: "Vou para um mundo negro/ feito um cego". A sequência de versos não esclarece realmente do que se trata, e os tragos alcoólicos nunca aparecem até o verso final, em caixa alta: "PRIVADO DA MEMÓRIA ESTOU FELIZ".

A perplexidade do leitor não dura muito, pois o poema é composto dos versos livres e uma nota de rodapé, que é uma citação direta de matéria do jornal The Intercept brasileiro sobre um dos antigos centros de tortura, execução extrajudicial e desaparecimento de corpos da ditadura militar: o DOPS do Rio de Janeiro. Escrevi há poucos dias que esse local continua ainda tão, digamos, simbólico para as autoridades brasileiras que Bernard Duhaime, relator da ONU, foi impedido em abril de 2025 de visitá-lo.

A sociedade civil quer devidamente torná-lo um local de memória. O Estado quer trancá-lo no esquecimento e viola seus compromissos internacionais para tentar manter a desmemória. 

A nota do poema de Nuno Rau cita o assassinato de José de Souza, um homem negro, ferroviário e sindicalista, que teria se atirado da janela do DOPS, "suicidando-se" segundo a versão oficial da ditadura, depois de ter sido sequestrado pelos agentes da repressão dias depois do golpe de 1964. 

Seu caso foi denunciado já nos anos 1960 por Marcio Moreira Alves no livro de 1966 Torturas e torturados:




Marcio Moreira Alves seria cassado poucos anos depois, com o AI-5, e teve de deixar o país. O outro sindicalista mencionado chama-se, na verdade, Antogildo Pascoal Viana. José de Souza foi incluído, décadas depois, no Dossiê Ditadura da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; este é o começo da seção sobre o sindicalista:



Naturalmente, o caso de José de Souza  foi analisado no volume III do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (Antogildo também está relacionado nas duas obras). A nota no poema de Nuno Rau não cita essas referências, mas corretamente lembra que, em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte.

O poema, assim, relembra o "J. de Souza" sem deixar, paradoxalmente, de usar procedimentos de desmemória, pois o texto principal, digamos assim, nada menciona, louva o esquecimento e o que ocorreu é empurrado... para a nota. 

A estratégia de incorporar esses procedimentos é de uma grande astúcia poética, bem mais original do que um diálogo imaginário com o sindicalista morto no DOPS. A astúcia também possui caráter político, por chamar atenção para a força social do esquecimento - o que alguns chamam de uma persistente amnésia coletiva a respeito dos crimes de lesa-humanidade (usei essa expressão em meu Ilícito absoluto). É interessante que Nuno Rau o faça com uma citação literal de matéria jornalística: o ready-made, neste caso, é um contraponto a fake news.

Para enfatizar o caráter político deste livro, o autor deixa para perto do final a "queima de arquivo (epílogo)": 


[...] combustível
fóssil da memória
que abre
a brecha
no lacre dos
calendários por
onde os estilhaços
passam
até atingir
e incinerar
depois da implosão
a carne do seu
pensamento, [...]


Nuno Rau sela o livro com a fragmentação da matéria e da memória, que ele buscou encenar nesta poética insurgente.


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