O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A poesia e o dia de amanhã, ou os quatro primeiros livros de Alberto Pimenta voltam pela 7 Nós

No âmbito do relançamento da obra de Alberto Pimenta pela editora 7 Nós, irrompeu uma caixa de título epicurista: Tetra Phármakos. Ela contém os quatro primeiros livros, todos de poesia: O Labirintodonte (1970), Os Entes e os Contraentes (1971), Corpos estranhos (1973) e Ascensão de dez gostos à boca (1977). Quem os leu, poderá confirmar a atualidade desses livros; quem não os conhece, descobrirá um poeta novo, de uma novidade que não se esgota.



As novas capas dos livros foram desenhadas por Maja Marek. Não achei indicação se ela fez o mesmo trabalho para a bela caixa. Foram todos originariamente publicações do autor; os três primeiros, do tempo de exílio durante o salazarismo. 1977 foi o ano em que Alberto Pimenta pôde retornar a Portugal, realizou o happening Homo sapiens (ocasião em que se trancou na jaula dos macacos no Zoológico de Lisboa) e lançou também o Discurso sobre o filho-da-puta.

O happening e o Discurso logo tiveram circulação internacional: o primeiro foi repetido em alguns países, o segundo tornou-se o livro de Pimenta mais traduzido e o primeiro a ser lançado no Brasil: primeiro pela Codecri e depois, no início deste século, pela Achiamé. Em 2020, durante a pandemia, a revista Serrote publicou-o como ensaio.

Nenhum desgosto nisso, claro. No entanto, o outro livro de 1977, Ascensão de dez gostos à boca, é um dos pontos culminantes da poesia de Pimenta e da poesia tout court da segunda metade do século XX. Nele encontramos um de seus mais conhecidos poemas, "black & white":



Trata-se de um poema visual, isto é, de poesia que não pode ser declamada: um exemplo do que o ensaísta Alberto Pimenta chamou de O silêncio dos poetas, célebre ensaio que trata, entre outros temas, da poesia concreta brasileira. Ele foi publicado pela primeira vez na Itália e em italiano; no mesmo ano, 1978, sairia primeira edição portuguesa. A Cotovia republicou-o em 2003, ampliado com "Reflexões sobre a função da arte literária" e "A dimensão poética das línguas". As Edições do Saguão trouxeram-no novamente ao público português, acrescido dos outros ensaios e de "Liberdade e aceitabilidade da obra de arte literária", com revisão de Rui Miguel Ribeiro (o editor da 7 Nós) e Mariana Pinto dos Santos. Ainda não vi essa edição nova, de 2025. 

Lembro destes escritos teóricos porque Pimenta é um exemplo raro de poeta genial (uma raridade em si mesma) que também é um ensaísta extraordinário. No Brasil, não há ninguém análogo.

Como escrevi no posfácio à antologia que organizei de Alberto Pimenta, A encomenda do silêncio, a poesia de Alberto Pimenta nasceu como Minerva: pronta e armada. Este vem de O Labirintodonte, o primeiro livro, já totalmente pykante:




Esta derrisão aconteceu ainda durante a guerra colonialista dos portugueses contra os povos que dominou até 1974. Os Entes e os Contraentes, o segundo livro, inclui este poema pungente sobre a guerra:



Um tom de deboche para os generais, mas outro, bem diverso, para os soldados, de quem só ficou a impossibilidade de monumento.
De Corpos estranhos, desafortunadamente deixei escapar da antologia o impressionante "epilogação". Incluo aqui o final do poema, que segue uma sequência temporal de tensão crescente:



Se destaco esses poemas de inconformidade política e social, é porque parte da crítica da época não soube ver outra coisa nessa poesia senão o caráter experimental da forma, e nem sempre gostou da experimentação: João Gaspar Simões detestou, Pimenta lembra-o no texto de apresentação ao Labirintodonte para a reedição de 2010, mantido nesta de 2025. 
Ao menos algo foi visto, poderia alguém dizer, mas não eu: em vez, digo que algo já começava a ser recalcado, e o incômodo crescente da obra multifacetada de Alberto Pimenta levaria ao que chamei de inexistência. O caráter inconformista no conteúdo e na forma foi mantido por Pimenta até hoje: ele nunca se acomodou. 
Nesse sentido, pois, de intervenção na pólis, esta poesia não parece conduzir-se pela ética de Epicuro, apesar do título da caixa. Tampouco no tratamento do sexo, em razão de Epicuro adotar, ao contrário do que fez Pimenta em toda sua obra, uma "atitude muito restritiva em relação ao prazer sexual", como lembra Foucault (cito o curso no Collège de France Subjectivité et vérité, de 1980-1981).

A 7 Nós republicou os livros tal como foram lançados originalmente. Em 1990, época da Poesia quase incompleta, reunião da poesia e de outros textos, Pimenta havia cortado poemas e alterado títulos: "epilogação" ganhou o adjetivo "teutónica", indicando onde ocorreu a execução extrajudicial. Já "his master's voice", de Os Entes e os Contraentes, foi renomeado para "democracicia". Aqui, incluo-o no título primeiro:



Trata-se de outro de seus poemas de maior difusão e uma de suas assinaturas poéticas de insurgência, ainda nos tempos do salazarismo. A alteração posterior do título sugere que a questão da vigilância e da repressão, tão premente durante a ditadura, permaneceu após a democratização.

A própria questão do fascismo (com suas desventuras, amargas ou ridículas) permaneceu, podemos acrescentar. Esta poesia, cinco décadas depois, não somente continua contemporânea, como permanece confrontando-se com problemas que, socialmente, não foram resolvidos. Esta caixa traz nova oportunidade para que possamos aprender com este poeta, que nos oferta um "conselho" (da Ascensão); um aviso, em verdade:


não te sentes capaz de entender
o dia de hoje, baby?
espera que ele seja o dia de ontem.

não te sentes capaz de entender
o dia de ontem, baby?
espera que ele seja o dia de amanhã.

não te sentes capaz de entender
o dia de amanhã, baby?
espera que ele seja o dia de hoje.

Um comentário:

  1. Grande poeta!
    40 poemas de Alberto Pimenta, traduzidos para italiano e francês neste site:
    https://carmina-it-lusitana.blogspot.com/p/alberto-pimenta.html#ancora

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