O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Direito versus literatura II: Anais de um simpósio, antropofagia e academicismo

Participei em 2010 do interessante Simpósio em Direito e Literatura na UFSC, organizado pelo grupo de pesquisa Literato, que tem orientação do professor Luis Carlos Cancellier de Olivo. Descobri, acidentalmente, que os anais já haviam sido publicados pela Fundação Boiteux - não fui avisado, e não se vê notícia disso no blogue do grupo de pesquisa, que não é atualizado há mais de três meses.
Há três volumes, todos disponíveis na internet. Ainda não os li por completo. Vi algumas das apresentações. Trata-se de um campo epistemologicamente difícil, e pode-se ver nos anais do pior (o uso de pseudociência como referência teórica, como Capra) até o melhor. No volume 2, há um texto meu sobre justiça de transição na obra de Julián Axat, que espero que não esteja entre os piores trabalhos.
Não está entre os melhores, certamente, ao contrário da conferência de Alexandre Nodari sobre direito antropofágico, que retoma reflexões anteriores. Sugiro que leiam sua dissertação de mestrado, "a posse contra a propriedade": pedra de toque do direito antropofágico.
O problema de Nodari neste trabalho específico são as "técnicas de apropriação artística" em Oswald de Andrade, partindo da inscrição que esse autor fez em Serafim Ponte Grande, oferecendo a obra ao domínio público de forma bem mais radical do que o posterior Creative Commons (a editora Globo, na edição atual, escondeu essa inscrição no livro, violando, desde o modo de produção, a originalidade do autor): "Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas". No seu blogue, Nodari também adota essa divisa.
No texto, ele não aborda, nas referências a Pontes de Miranda, à sua visão elitista e aristocrática da lei. Gostaria que ele enfrentasse um dia como a ideia do jurista de que o povo é só um "instrumento de verificação" pode se conciliar com a "posse contra a propriedade" de Oswald de Andrade, ou se aquele é outro dos pontos de contato com o fascismo da época.
Para entender o que significaria o direito antropofágico, vejam esta passagem da página 143:

Enquanto os efeitos da literatura dependem de um diálogo, ou melhor, da participação do leitor – no mínimo, o ato da leitura –, no Direito, o “então”, os efeitos, já estão prescritos e independem de um outro (que só pode se limitar a tentar ligar o “se” ao “então”, que só pode subsumir) – é isso que se expressa no princípio de que o desconhecimento da lei não pode ser invocado. Ao tomar a literatura como paradigma da vida, a Antropofagia propõe uma nova forma de direito, propõe mostrar que há outros modos de lidar com o “se”, modos que não passam por um nexo obrigatório entre o texto e a sanção, entre um “se” e um “então”. Na posse, no galimatias, no direito sonâmbulo, revelam-se os pontos cegos em que o Direito é tão incerto quanto a literatura. Neles, a subsunção jurídica revela seu caráter ficcional, de artifício – ainda que faça coisa julgada, sancionando um “então” completamente disparatado ao “se” prescrito.

Trata-se de uma forma consequente e corajosa (custou a Nodari ter que pesquisar em outra área) de enfrentar o desafio de pensar o direito e a literatura e de imaginar caminhos para a insurgência.
Trata-se também de uma reflexão rara em mais de um sentido: é muito espantoso, à primeira vista, como esse campo é tão incipiente no Brasil; em uma aula que dei em 2011, um professor de Niterói chegou a dizer que literatura é para "enfeitar", declaração que só pode vir de um não-leitor, de um iletrado programático.
Em um segundo exame, tudo se explica. O bacharelismo, no Brasil, acompanhou-se historicamente de um beletrismo que tem tanto de literatura quanto uma imitação de plástico da Vênus de Milo com os dois braços tem com a arte grega.
É comum que profissionais da área jurídica escrevam, por exemplo, poemas bem diletantes - abundam antologias do tipo "florilégios do tribunal". A literatura, no entanto, só aparece nesses momentos como um prazer social, um pretexto para o compadrio, um exercício de prestígio.
Um exemplo dessa poesia está na obra de Ives Gandra da Silva Martins que, como de esperar, ama os parnasianos e a geração de 45. Na ligação, podem ser lidos alguns dos poemas do conhecido tributarista. São fracos ou fraquíssimos, mas também interessantíssimos. Leiam o soneto a Selmo Vasconcelos; "Nos longínquos limites do Brasil,/ Surge figura em que o talento é manto,/ Que no seu gesto impávido e viril,/ A beleza difunde a todo o canto.", até "Ele tem na cultura eternos elos/ Sendo seu nome Selmo Vasconcellos."
Esse tipo de literatura ecoa, séculos após, a academicista. As academias foram das primeiras manifestações de socialização da literatura escrita no Brasil colonial. Alfredo Bosi, na História concisa da literatura brasileira, alerta que "talvez tenham sido mais relevantes as suas contribuições para a História e a erudição em geral que o pesado rimário gongórico compilado por seus versejadores."
De fato, aqueles florilégios ecoam-na também na sua falta de qualidade literária.
Boa parte desse rimário era de adulação a grandes nomes. Vejam este louvor duplo, do jurista Fernando José da Cunha Pereira ao General português Gomes Freire de Andrada e ao secretário da Academia Fluminense, outro jurista, Manuel Tavares de Siqueira e Sá:

Quem pod'rá (meu Tavares sempre Insigne)
Descrever vosso engenho tão fecundo;
Quando para uma empresa tão difícil
Os Tassos, e os Camões seriam curtos?

Como o Metro pod'rá elogiar-vos
(Meu Grão Poeta, meu Jurisconsulto)
De quem as Cabralinas influências
Ressecaram fatais climas adustos?

[...]
Razão, porque a Academia Fluminense,
Com extra natural celeste impulso,
Vos fez seu venerando Secretário;
Por se especializar convosco em tudo.

Nem o Ínclito Herói, que celebrava,
Do Hespério terror, pasmo do Luso;
Podia cabalmente elogiar-se,
Sem o vosso socorro, e o vosso influxo.

Conheço ser de Gomes grande o Nome,
Serem inexpressáveis seus triunfos,
Mas para decifrar Virtudes tantas,
Só Vós, Preclaro Sá, Sábio e Preagudo.


O sexto verso é, provavelmente, dos mais involuntariamente engraçados da literatura universal. A meta-adulação é impressionante: Cunha Freire canta o outro jurista porque só aquele é capaz de cantar adequadamente o general, tarefa que exigiria mais talento do que o de Tasso e o de Camões...
Os outros poemas em homenagem a Gomes Freire, nessas atas de 1752 da Academia dos Seletos, não chegam a essa metalinguagem eufórica da subliteratura.
Nesse propósito de reduzir a língua e a literatura a uma simples arte de adular, temos obviamente uma política conformista que informa esses autores. Em nenhum momento, claro, tratava-se de questionar o jugo colonial ou apenas os talentos administrativos e militares do general, que foi governador e capitão-general do Rio de Janeiro.
Essa postura permanece nos rimários de vários profissionais do direito de hoje. Tomar a literatura a sério, com ela questionar o direito - isso não! Tal indelicadeza com o poder (com o povo, o trato é outro) foge às tradições do direito nacional...

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