O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LVI: A construção social do direito à verdade, do Dia à Semana

Esta nota foi escrita para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/).
Eu havia feito um breve relato da comemoração em São Paulo do Dia Internacional do Direito à Verdade, em 24 de março, que teve a presença da integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) Maria Rita Kehl: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/desarquivando-o-brasil-liii-blogagem.html. No dia seguinte, os jornais Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo, que li em suas versões impressas, ignoraram-no.
A EBC, bem ao contrário daqueles veículos, está engajada em prol da questão e publicou matéria sobre a comemoração em São Paulo: http://www.ebc.com.br/cidadania/galeria/videos/2013/03/dia-internacional-do-direito-a-verdade-e-lembrado-em-sao-paulo
A CNV apresentou aqui o relato das atividades, anunciando a campanha "O passado não pode ser modificado. Mas conhecê-lo pode mudar o seu futuro.": http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/230-cidadaos-celebram-com-arte-o-dia-da-verdade-em-sp-e-no-rj.


Na foto, vê-se o Bloco do Ilú Obá De Min, que encerrou os trabalhos em São Paulo. Todos os artistas, lembrou Kehl, trabalharam gratuitamente, como militantes.
Para quem não conhece o texto de Brecht lido pela Companhia do Latão, aqui se pode ler uma tradução feita por Ernesto Sampaio: http://dir.groups.yahoo.com/group/ImagoDays2/message/23557
A  Resolução da Assembleia Geral da ONU, que instituiu o Dia, pode ser lida nesta ligação: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/65/196&Lang=S
Para a imprensa, foi preparada esta mensagem, que apresenta o direito à verdade como tendo dupla natureza, individual e coletiva: http://www.un.org/es/events/righttotruthday/
Isso faz todo o sentido, pois ele se refere a uma verdade histórica, e a história é feita coletivamente; o direito somente poderia tratá-la como um direito difuso. Também a memória, mesmo a individual, é construída no âmbito de molduras coletivas, como bem explicou Maurice Halbwachs:

Consideremos agora a memória individual. Ela não é inteiramente isolada e fechada. Um homem, para evocar seu próprio passado, frequentemente necessita de apelar às lembranças dos outros. Ele se refere a marcos que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. Além disso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, que ele toma emprestado de seu meio. [La mémoire collective, édition critique établi par Gérard Namer, Paris: Albin Michel, 1997, p. 98]
O direito também é construído coletivamente, e isso inclui os direitos individuais: o que chamamos hoje de garantias individuais são o resultado de um processo histórico, coletivo, de transformação dos instrumentos jurídicos, e que segue em curso.
Essa construção pode ocorrer a partir de fontes materiais e formais externas e internas. No caso do direito à memória e à verdade e dos mecanismos de justiça de transição, os precedentes de comissões da verdade vêm desde Uganda em 1974. As práticas no campo humanitário concorreram para fortalecer juridicamente essas iniciativas.
O preâmbulo da Resolução 65/196 da Assembleia Geral da ONU cita especialmente artigos de dois tratados internacionais. Um deles, do Direito Internacional Humanitário, é o Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais. O Procotolo (nome que geralmente se dá a uma tratado internacional que complementa ou modifica outra tratado) é de 1977 (fonte: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dih-prot-I-conv-genebra-12-08-1949.html). Cito-o por completo, da tradução para o português europeu, apesar de referir-se especificamente à situação de guerra:


SECÇÃO III
Pessoas desaparecidas e mortas
Artigo 32.º
Princípio geral
Na aplicação da presente secção, a actividade das Altas Partes Contratantes, das Partes no conflito e das organizações humanitárias internacionais mencionadas nas Convenções e no presente Protocolo é motivada, em primeiro lugar, pelo direito que as famílias têm de conhecer o destino dos seus membros.
Artigo 33.º
Pessoas desaparecidas
1 - Desde que as circunstâncias o permitam, e o mais tardar a partir do fim das hostilidades activas, cada Parte no conflito deve procurar as pessoas cujo desaparecimento tiver sido assinalado por uma Parte adversa. A citada Parte adversa deve comunicar todas as informações úteis sobre essas pessoas, a fim de facilitar as buscas.
2 - A fim de facilitar a recolha das informações previstas no número precedente, cada Parte no conflito deve, relativamente às pessoas que não beneficiem dum regime mais favorável em virtude das Convenções ou do presente Protocolo:
a) Registar as informações previstas no artigo 138.º da Convenção IV sobre as pessoas que tiverem sido detidas, presas ou de qualquer outra forma mantidas em cativeiro durante mais de duas semanas devido às hostilidades ou à ocupação, ou que tenham morrido durante um período de detenção;
b) Na medida do possível, facilitar e, se necessário, efectuar a procura e registo de informações sobre essas pessoas se tiverem morrido noutras circunstâncias devido a hostilidades ou ocupação.
3 - As informações sobre as pessoas cujo desaparecimento foi assinalado em aplicação do n.º 1 e os pedidos relativos a essas informações serão transmitidos directamente ou por intermédio da Potência protectora, da Agência Central de Pesquisas do Comité Internacional da Cruz Vermelha, ou das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Quando essas informações não forem transmitidas por intermédio do Comité Internacional da Cruz Vermelha e da sua Agência Central de Pesquisas, cada Parte no conflito procederá de maneira que elas também sejam fornecidas à Agência Central de Pesquisas.
4 - As Partes no conflito esforçar-se-ão por acordar sobre as disposições que permitam às equipas procurar, identificar e retirar os mortos nas zonas dos campos de batalha; estas disposições podem prever, em caso de necessidade, que essas equipas sejam acompanhadas por pessoal da Parte adversa quando desempenharem a sua missão nas zonas que estiverem sob controlo dessa Parte adversa. O pessoal dessas equipas deve ser respeitado e protegido quando se consagrar exclusivamente a tais missões.

O Estado Brasileiro é parte deste tratado; nesta ligação, temos o mapa dos Estados que aderiram às Convenções de Genebra e a seus Protocolos: http://www.icrc.org/por/assets/files/annual-report/current/icrc-annual-report-map-conven-a3.pdf
No tocante à Convenção internacional para a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados, que entrou em vigor em 2010, temos previsão análoga, que extrapola os casos de guerra (http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direito-a-memoria-e-a-verdade/convencoes/convencao-internacional-desaparecimento-forcado/view):


Artigo 24
1. Para os fins da presente Convenção, o termo “vítima” se refere à pessoa desaparecida e a todo indivíduo que tiver sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado.
2. A vítima tem o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida. O Estado Parte tomará medidas apropriadas a esse respeito.
3. Cada Estado Parte tomará todas as medidas cabíveis para procurar, localizar e libertar pessoas desaparecidas e, no caso de morte, localizar, respeitar e devolver seus restos mortais.
O preâmbulo já mencionava o direito ("Afirmando o direito de toda vítima de conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e difundir informação com este fim;"). O Brasil também é parte deste tratado. Mesmo não entrando no mérito da Constituição de 1988, vejam como artigos que tentam argumentar que não há algo como o direito à verdade no direito brasileiro (por exemplo: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direito-a-memoria-e-a-verdade/convencoes/convencao-internacional-desaparecimento-forcado/view) simplesmente partem do simples desconhecimento das normas aplicáveis.
Por vezes, além do direito vigente, é esquecido, também pelos juristas brasileiros, que se comprazem em reproduzir uma cultura jurídica isolacionista e infensa aos direitos humanos, que, muitas vezes, nas organizações internacionais temos a iniciativa para diversas medidas que, em seguida, acabam por fazer parte dos direitos nacionais.
A resolução do Dia Internacional, um exemplo de soft law (por ser uma simples resolução, não tem, por si, o efeito obrigatório de uma convenção internacional),já está a inspirar iniciativas congêneres no Brasil. Em rápida pesquisa, pude ler o projeto de lei para instituir o Dia do Direito à Verdade, no Pará, do deputado estadual Edmilson Rodrigues (PSOL) (http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/edmilson-apresenta-projeto-de-lei-que-institui-o-dia-estadual-pelo-direito-a-verdade/) e, no Ceará, o que foi apresentado pela deputada estadual pelo Ceará Eliane Novais (PSB) (http://www.elianenovais.com.br/images/conteudo/file/projetoLei118.pdf).
Este último tem uma justificativa interessante:
O objetivo não é apenas o de dispor, ao fim do processo, de uma data oficial de referência para a celebração do direito à verdade, mas ainda o de levantar a discussão sobre a matéria a partir da própria tramitação de proposições legislativas destinadas a consagrar tal data nos vários âmbitos da Federação. A discussão do conteúdo do Projeto de Lei ora apresentado não deve limitar-se, portanto, ao âmbito do Congresso Nacional. Ele se articula com um conjunto de proposições legislativas de conteúdo semelhante, a serem apresentadas, tanto quanto possível, em todas as casas legislativas do país, de maneira a potenciar a mobilização nacional pela verdade e pela dignidade. Não por acaso a proposta se afirmou quando do lançamento da Rede Legislativa pela Memória, Verdade e Justiça, no dia 28 de março de 2012, na Câmara dos Deputados.
Trata-se mesmo de uma rede de construção dos direitos, nas quais os legisladores nacionais, as organizações internacionais têm um papel, mas também os artistas, encenando e dando palavras a desejos de justiça, como fizeram os que participaram das comemorações do 24 de março. Eles também concorrem para a imaginação do direito.
Dentro dessa rede, que mostra uma demanda social pela memória e pela verdade, temos esta Semana Nacional de Memória e Direitos Humanos, de 1 a 6 de abril, organizada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, com diversos eventos pelo país. A programação pode ser consultada aqui: http://semanadh.nucleomemoria.org.br/
Para se juntar à programação, é necessário entrar nesta ligação e preencher o formulário: http://semanadh.nucleomemoria.org.br/contato-para-aderir.php O lançamento do livro de Renan Quinalha, Justiça de transição: contornos de um conceito, que me concedeu entrevista há pouco, é um desses eventos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/04/desarquivando-o-brasil-lv-entrevista-e.html

P.S.: A disposição de arquivos históricos na internet é um fator extremamente positivo neste contexto de demanda social pela memória e a verdade. Hoje, o Arquivo Público do Estado de São Paulo pôs no espaço virtual uma parcela do acervo do DEOPS/SP. Paulo Sergio Pinheiro, ouvi-o na Rádio CBN, elogiou São Paulo por sair "na frente" com a iniciativa. Isso não é exatamente correto: desde o ano passado, o Arquivo Público Mineiro disponibiliza o arquivo da polícia política de Minas: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/search.php.


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