O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LVII: Vigiando os trabalhadores


A ABIN vigia também os sindicatos, revelou o Estado de S.Paulo (http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,documento-da-abin-confirma-a-vigilancia-de-sindicalistas,1018786,0.htm), desmentindo as afirmações errôneas do general responsável pelo Gabinete da Segurança Institucional da Presidência, José Elito. Neste caso, trata-se de sindicatos de portuários mobilizados contra a MP dos portos.
No tocante ao Movimento Xingu Vivo e aos índios, estas são as últimas notícias sobre a possível espionagem federal, "Xingu Vivo questiona ABIN sobre espionagem. ABIN nega. Suposto agente confirma": http://www.xinguvivo.org.br/2013/04/08/xingu-vivo-questiona-abin-sobre-espionagem-abin-nega-suposto-agente-confirma/
O general José Elito e o diretor-chefe da ABIN, Wilson Roberto Trezza, deverão ser convocados para prestar informações na Câmara dos Deputados: http://pt.globalvoicesonline.org/2013/04/11/brasil-espionagem-belomonte-suape-abin/
Trata-se de mais pinceladas de um quadro que inclui a alteração inconstitucional da Força Nacional de Segurança Pública (ver artigo de João Rafael Diniz: http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/; parece-me haver, no caso, violação do princípio federativo), que é usada para reprimir grevistas (http://candidoneto.blogspot.com.br/2013/04/forca-nacional-confina-grevistas-em.html).
Há uma antiga tradição dos órgãos de segurança brasileiros em reprimir movimentos dos trabalhadores. Lembremos dos operários anarquistas da República Velha, alguns expulsos clandestinamente pela polícia de São Paulo em 1917 (sobre o assunto, pode-se ler, de Christina Roquette Lopreato, O espírito da revolta: a greve geral anarquista de 1917, publicado em 2000 pela Annablume). A perseguição aos anarquistas suscitou uma incoerente jurisprudência de expulsão do Supremo Tribunal Federal.

Escrevo esta nota, porém, não sobre esse tempo, tampouco sobre o de Vagas, e sim sobre a ditadura militar. Uma campanha por reajustes salariais poderia então ser classificada como uma das "Vulnerabilidades, no Campo Psicossocial, que afetam a  manutenção das Instituições, da Lei e da Ordem", de que é exemplo este relatório confidencial de 1975, elaborado pelo Ministério do Exército, que pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Já o citei nesta conferência: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/10/desarquivando-o-brasil-xxi-o.html
Existem diversos relatórios de espionagem em organizações sindicais. O problema não se restringia à eventual presença de comunistas nessas entidades: uma simples reivindicação trabalhista poderia ser encarada como um ato contra a ordem.


Dessa forma, a polícia política participou da repressão a greves. Entre diversos casos, escolhi um episódio em que a Auto-Viação Tânia telefonou ao DEOPS de São Paulo queixando-se de que metade dos trabalhadores havia faltado ao serviço, provavelmente em virtude do descontentamento com o reajuste salarial, o que teria estimulado pelo sindicato. O caso foi remetido à Divisão de Ordem Social do DEOPS.
Não pesquisei o que aconteceu depois. O documento, Relatório do Plantão do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do período das 12 horas do dia 13 de junho de 1976 ao mesmo horário do dia seguinte, também pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Tratava-se de um regime que se marcou pela acelerada concentração de renda e pela fraude nos índices de inflação para prejudicar os reajustes dos trabalhadores (obra do Ministro da Fazenda de Médici, Delfim Neto, que continue a ser um nome de prestígio para o partido que controla a atual administração federal).
O caráter de classe da ditadura militar era bem marcado, o que ressalta a importância de esclarecer os laços da repressão com o empresariado nesse período.



Interessava aos órgãos de repressão e ao empresariado a vigilância. Outro exemplo da preocupação em controlar os trabalhadores estava no Conceito Estratégico Nacional de 1969, documento ultrassecreto que pode hoje ser lido no Portal Memórias Reveladas. Ele foi concluído nos últimos dias do governo de Costa e Silva, e previa que seria mantidos "os documentos legais básicos de interesse da Segurança Interna, destinados a assegurar a continuidade da obra revolucionária": a Constituição Federal, a Lei de Segurança Nacional (atualmente, vigora outra, aprovada na época do General Figueiredo), a Lei de Imprensa (que foi considerada não recepcionada pela Constituição de 1988 em razão do julgamento da ADPF n. 130 pelo Supremo Tribunal Federal em 2009) e a Lei de Greve (a lei federal nº 4330 de 1964, revogada em 1989 pela de nº 7783).

É nessa época em que teremos a notável jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que ergueu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), decreto-lei do Estado Novo (que segue vigente), acima da Constituição da República e dos tratados internacionais, assunto que abordei em minha tese.
A Constituição de 1969 (que alguns consideram simplesmente uma gigantesca emenda à de 1967) previa a liberdade sindical, e a Convenção n° 110 da Organização Internacional do Trabalho também o fazia para "trabalhadores em plantações". No entanto, a CLT previa a tutela dos sindicatos, exigindo a autorização e o reconhecimento oficiais para sua existência.
A Convenção acabou sendo denunciada pelo Estado brasileiro em 1970 (ou seja, o Brasil deixou de fazer parte desse tratado, coisa bem compreensível, levando-se em conta que Médici estava no poder).
Em 1977, o STF julgou procedente a representação de inconstitucionalidade n° 803 contra o decreto que publicou a Convenção. Permito-me citar este velho trabalho, Produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira, disponível no Portal Domínio Público:


A orientação hermenêutica do Supremo Tribunal Federal era bem oposta: a de, por meio da lei federal (cuja ratio passa, numa inversão do sistema jurídico, a determinar o sentido constitucional), impedir a efetividade do princípio da autonomia dos trabalhadores. Não se trata apenas de irracionalidade; ocorre uma forma de produção legal da ilegalidade, já há muito praticada. Marx, na célebre análise da Constituição francesa de 4 de novembro de 1848, revelou como a letra da Constituição, aludindo a “direitos democráticos”, era negada pela lei eleitoral: a constituição previa que todos os franceses que pudessem exercer direitos políticos eram elegíveis, mas deixava à lei a tarefa de determinar quem poderia exercer esses direitos.
Com isso, houve uma brutal redução do eleitorado, devido ao voto censitário, que excluiu as classes trabalhadoras da participação política. Desta forma Marx refere-se aos “detalhes” legais que negam os princípios constitucionais:

As eternas contradições deste absurdo de uma Constituição mostram de forma suficientemente clara que, embora a burguesia em palavras possa ser democrática, mas não em suas ações, ela reconhecerá a verdade de um princípio, mas nunca o implementará – e a verdadeira “constituição” francesa não se encontra na Carta, que nós interpretamos, e sim nas leis orgânicas promulgadas acima do fundamento constitucional, as quais nós brevemente esboçamos ao leitor. Os princípios estavam à mão – os detalhes foram deixados para o futuro, e com esses detalhes a descarada tirania foi de novo erguida como lei! 124

No julgamento da representação, o Ministro Eloy da Rocha discordou da posição isolacionista dos outros Ministros: “Quando a Constituição preceitua que a lei regulará a constituição do sindicato obsta a que convenção internacional a regule?”; “O argumento da maioria é este: a convenção não pode revogar lei ordinária”.
De fato, o julgamento deixou clara a posição de que o direito internacional, na medida que trouxesse direitos sociais (na área de acordos tributários, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotaria posição bem outra, sustentando a eficácia interna de tratados mesmo diante de normas internas posteriores que lhes eram contrárias, devido ao artigo 98 do Código Tributário Nacional), somente poderia ser eficaz se não contrariasse as normas infraconstitucionais já existentes. Nessa área, portanto, o Tribunal fez com que lei anterior ao tratado o anulasse.


Para tornar mais preciso o que escrevi, devo notar que o caso brasileiro era ainda pior do que o da constituição francesa analisada por Marx, pois o próprio texto constitucional francês autorizava a limitação legislativa - sua formulação era restritiva aos cidadãos que gozassem de direitos políticos. A restrição era própria do liberalismo dessa época, que diferenciava cidadãos ativos e passivos - estes, desprovidos do exercício de direitos políticos, o que ocorria, em regra, por meio do voto censitário, isto é, a exigência de um patrimônio mínimo para votar e ser votado. O mesmo ocorria no Brasil imperial.
No caso da ditadura militar, o texto constitucional não previa a limitação do decreto-lei. Tivemos, portanto, não só a primzaia de decreto-lei sobre a constituição, como a prevalência desse decreto-lei, teoricamente infraconstitucional, sobre tratado internacional ratificado posteriormente! Nada disso permitiria a aprovação daqueles magistrados, se estudantes em graduação na época, na disciplina de Direito Constitucional I. Ou em Direito Internacional Público. Ou em Direitos Humanos... Para não falar em Hermenêutica Jurídica.
Infelizmente, como autoridades, aqueles magistrados detinham o poder de reprovar o constitucionalismo no Brasil, e foi o que esse tribunal tantas vezes fez após a intervenção que sofreu pela ditadura militar, munida dos poderes do AI-5.
Por isso, leio com espanto teses de que o formalismo jurídico teria sido o grande problema do direito na época da ditadura. Pelo contrário, se esse formalismo houvesse sido levado a sério, as liberdades e os trabalhadores teriam tido um ganho.
Ouso dizer o mesmo para os tempos de hoje.

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