O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Desarquivando o Brasil LXXX: Delfim Neto, ou a política econômica como instrumento de repressão


Em curiosa entrevista dada ao jornal O Globo, "Delfim Neto sobre atuação no regime militar: 'Não tenha nada do que me arrepender'", o ex-ministro exercitou o negacionismo puro e simples, típico dos representantes (sobreviventes) de sua geração que militaram pelo autoritarismo.
Certos militares da reserva, ano passado, divulgaram um comunicado pouco antes do aniversário do golpe, muito preocupados com a apuração dos crimes da última ditadura, tentando negar-lhe seu caráter autoritário.
A entrevista revela o mesmo gesto de negação do caráter ditatorial do regime: dizer de Médici apenas que "todo governo gosta de um pouco de publicidade", em época de feroz censura, de não menos intensa propaganda governamental (o que incluía o louvor às políticas econômicas), em que o governo tinha o poder de manipular as notícias como quisesse, é de uma insensatez ímpar.
Os economistas serão os primeiros a rir da alegação de que não houve manipulação de preços pela gestão de Delfim Neto, e sim apenas uma melhoria posterior do cálculo de inflação.
A afirmação de que nunca houve interferência militar na administração civil também pode ser facilmente desmentida. O próprio desenvolvimento econômico era entendido como uma questão diretamente ligada à segurança, no âmbito da doutrina de segurança nacional.

No Conceito Estratégico Nacional, documento ultrassecreto de 1969, vemos que o desenvolvimento é justamente uma "premissa" da segurança interna: "O desenvolvimento pressupõe a manutenção da ordem e das instituições e a conseqüente criação de uma expectativa de segurança político-social para os investimentos." Governo e investigadores deveriam sentir-se seguros, num "clima de ordem interna e de estabilidade institucional".
Esse documento se encontra no Arquivo Nacional e pdoe ser consultado pela internet, bem como as atas do Conselho de Segurança Nacional, como a desta reunião, ainda anterior ao AI-5 que teve, por sinal, em Delfim Neto um dos signatários.
Longa reunião, que começou em 11 de julho de 1968, na qual se percebe o planejamento para o que haveria no final do ano.

Delfim, em certo momento, cita Lênin: "O caminho mais fácil para destruir a ordem constituída num País é destruir a sua moeda" (não sei qual é a fonte do então Ministro). O sucesso da política econômica, ele sabia, era vital para o regime.
Abaixo, refiro-me a alguns documentos que estão no acervo DEOPS/SP no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).

Os próprios militares viam essa relação profunda entre a administração civil e o êxito da ditadura; Delfim Neto foi explicar a eles seus planos de administração, convidado por coronéis do SNI, notadamente Almerindo Raposo, em cuja casa ocorriam os encontros com a "linha dura".
Costa e Silva, o ditador em plantão, teria ficado irritado, pelo que o gesto tinha de contestação a sua autoridade, e Raposo teria sido exonerado por isso, segundo Boletim do SNI ao lado, de julho de 1967.
A área econômica era vital para o sucesso da ditadura e para sua tentativa de legitimação, que não poderia se dar pela via das liberdades; poderia ocorrer por meio do crescimento econômico?
Esse caminho também era limitado. Há bastante literatura (da época e atual) sobre a questão, lembro do artigo de Luiz Carlos Delorme Prado e Fábio Sá Earp, "O 'milagre' brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973)" (publicado em O Brasil republicano 4: O tempo da ditadura, organizado por Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado), sintetiza os argumentos da época, bem como as teses de Celso Furtado e de Maria da Conceição Tavares de que a "má distribuição de renda era uma característica estrutural do sistema", diferentemente do que Delfim Neto dá a entender hoje. Tal crescimento não seria capaz de superar os problemas estruturais da economia brasileira. Não era mesmo, como bem reconhece Delfim, um "milagre"...

Em um dos exemplos das pressões dos militares na área econômica, Elio Gaspari trata do caso, afirmando que os militares queriam medidas contra o banqueiro Walter Moreira Salles, que havia sido ministro de Goulart durante o parlamentarismo, e Delfim Neto os teria aplacado mandando confiscar os bens dos diretores da Sudan, que seria uma pequena fábrica de cigarros.
O jurista Durval de Noronha Goyos Junior corrige o jornalista, afirmando que se tratou de "uma das maiores injustiças empresariais jamais praticadas em solo brasileiro", e que ela era "detentora de aproximadamente 25% do mercado de cigarros no Brasil e a maior empresa de capital nacional do setor". A prisão por crime de apropriação indébita. Foi a época em que Ives Gandra da Silva Martins foi investigado pela ditadura, pois os seus conselhos jurídicos estavam fazendo empresas como a Sudan recolher menos tributos para o governo...
 
Até mesmo o Estado de S. Paulo, insuspeito de ser acusado de esquerdismo, nessa ocasião da Sudan, afirmou que a Pasta da Fazenda estava sendo ajudada pelo SNI, criticando os privilégios dados pelo governo a certas empresas estrangeiras (tema que dá um livro, até para se explicar com que finalidades e inspirado por que razões os governos  militares favoreceram determinadas multinacionais, o que ocorreu também na Amazônia).
Essa possibilidade de prisão confirma que os poderes de Delfim não eram, de fato, iguais ao que teria um ministro da Fazenda hoje, na democracia formal que temos no Brasil, e que havia uma relação direta de sua pasta com a repressão.

Demonstra-o o relatório ao lado. Vemos, ao lado, os ministros da área econômica, Mário Henrique Simonsen, Karlos Rischbieter e Delfim, em reunião com empresários em São Paulo na sede do Banco Mercantil, em 20 de abril de 1979. Estavam lá o Unibanco, o Bradesco, Cia. Interamericana de Seguros, o Grupo Klabin, José Ermírio de Moraes, Júlio Mesquita Neto, Paulo Vilares e Gastão Vidigal.
Os ministros estavam preocupados com a situação econômica, mais do que os próprios homens de negócio. No entanto, a questão maior, a que foi discutida, era a repressão aos trabalhadores: "Os temas mais debatidos nesse encontro foi o das greves ilegais deixando bem claro a necessidade do restabelecimento do princípio de autoridade."
De fato, é um momento de ressurgimento do sindicalismo e de greves - em que um futuro presidente, Lula, despontaria.
O relatório não explica o que foi acordado a respeito. Como a compressão salarial era necessária para o tipo de política econômica que se fazia, a repressão aos trabalhadores e aos sindicatos havia se tornado em uma condição sine qua non não só para a manutenção política do governo, mas para seu êxito econômico.

Tal era o momento de Abertura. Voltemos no tempo: com o Congresso posto em recesso à força por meio do AI-5, vemos, no Boletim de SNI ao lado, o Ministro da Fazenda escolhendo o secretário de Fazenda para o Estado de São Paulo, passando por cima do princípio federal (inobstante sua previsão constitucional), no exercício dos poderes plenamente arbitrários da ditadura. Um ministro de um regime democrático, em uma federação, jamais poderia fazê-lo: teria que respeitar a autonomia dos Estados.




Como mais um exemplo das interferências militares na administração civil, lembremos que era inegável que muitos militares não apreciavam o Ministro e pressionavam para que fosse exonerado ou até mesmo preso. O Relatório ao lado é claramente partidário na questão, e afirma que Figueiredo não tinha vontade de tê-lo na sua equipe - mas sabemos que o último general-presidente acabou o nomeando. Além disso, segundo o documento ("Costa e Silva impediu Médici de prender Delfim"), Delfim Neto esteve para ser preso no governo Costa e Silva por atos de corrupção, que teriam sido descobertos pelo SNI, chefiado então por Médici. A prisão, alega-se, apenas não teria ocorrido em razão da má propaganda que geraria ao governo, e dos contatos de Delfim com "o mundo financeiro no exterior".
Médici, numa reunião da qual participava, entre outros, o general Rodrigo Otávio Jordão Ramos, afirmou enfaticamente: "No meu governo, Delfim e Mário Andreazza não tomarão parte".
Como todos sabem, ambos foram dos mais fortes ministros do governo Médici. Numa demonstração da existência de poderes mais fortes que o do presidente da República.
Tais militares, claro, não tiveram êxito nessa cruzada contra o então ministro, que acabou melancolicamente sua gestão nos tempos de Figueiredo com inflação em alta, dívida externa multiplicada e crescimento reduzido: após os choques do petróleo, haviam desaparecido as condições internacionais que favoreceram o alto crescimento dos anos anteriores.
Delfim Neto, certamente, é uma das figuras que mais tem a contar sobre a ditadura militar (e muito sobre a plutocracia de hoje, aposto). Pena que não o fará. Podemos esperar uma abertura republicana de seus papéis após sua morte?

P.S.: Esta nota faz parte da IX Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR #50anosdogolpe, que ocorrerá de 28 de março a 6 de abril. Sua convocação pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2014/03/28/ix-blogagem-coletiva-desarquivandobr-50anosdogolpe/

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