O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 29 de março de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXI: Ditadura e homossexualidade

Segundo a doutrina de segurança nacional, a primeira fase da guerra revolucionária seria a chamada guerra psicológica, que visaria destruir os valores da sociedade, de forma a torná-la indefesa contra o inimigo subversivo.
Dessa forma, a censura dos costumes, que era antiga no Brasil, tinha uma importância política  considerável para a ditadura militar: os valores tradicionais deveriam ser mantidos. As questões morais também eram objeto de controle político, o que inclui a perseguição da homossexualidade.
Já ouvi alguém ligado, de certa forma, à CNV dizer que a perseguição a homossexuais não era política, e sim motivada pelo preconceito. Essa ideia, ela mesma preconceituosa, não faz sentido algum, e, felizmente, a própria Comissão não pensa assim. Neste sábado, no Memorial da Resistência, às 14 horas, haverá uma audiência pública, "Ditadura e homossexualidade no Brasil", organizada pela CNV e pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", conforme a programação abaixo.
Estão disponíveis aos pesquisadores diversos documentos que comprovam essa perseguição aos movimentos sociais, o que inclui os que defendiam os direitos dos homossexuais. Por exemplo, uma das pastas de Ordem Política no DOPS/SP (hoje, no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que preserva todos os documentos que aqui cito) tinha como assunto "Homossexuais". Em um dos inquéritos feitos em Brasília que encontrei, a  "pederastia" foi enquadrada entre as formas de violação da segurança nacional: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/desarquivando-o-brasil-xxxviii.html
Os movimentos dos homossexuais, bem como o das feministas e dos negros tinham contra si a direita, certamente, e também boa parte da esquerda, na verdade bem conservadora para esses assuntos, com a alegação de que as lutas das minorias era algo menor ou divisionista. Vejam por exemplo, este depoimento de Maria Amélia Teles: ela trata da tortura dela mesma e de sua família, mas também o fato de ter sido expulsa do PCdoB pela direção do partido, que incluía João Amazonas e Aldo Rebelo. Qual era o seu delito político para esses comunistas? Ser feminista! Ela o diz pouco antes dos 59 minutos do vídeo, em que César Teles é o outro entrevistado: https://www.youtube.com/watch?v=OApkFxymEGU
James Green, em seu importante Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (São Paulo: Unesp. 2000), lembra que a ditadura militar tentou fechar o jornal Lampião (disponível nesta ligação: http://www.grupodignidade.org.br/blog/cedoc/jornal-lampiao-da-esquina/), pioneiro em se dedicar às questões dessas minorias. Em 1979, houve reação dos militantes, da Associação Brasileira de Imprensa, do Sindicato de Jornalistas, e "os militares encerraram a auditoria financeira e retiraram as acusações contra os editores da publicação gay." (p. 434). Depois disso, Green afirma que "o Estado aparentemente deixou de dirigir sua atenção ao movimento após o fracasso em fechar o Lampião" (p. 435).

Nunca estudei especificamente esse tema, porém provavelmente essa suposição de Green não corresponde à verdade. Em 1980, ocorreu o I Encontro Nacional de Homossexuais em São Paulo. Na carta ao lado, do Grupo Somos, de que ele foi um dos fundadores, vemos a articulação para a preparação do evento, que foi acompanhado pelo DOPS/SP, pois ocorreu em São Paulo.







Além de documentos do Somos, temos também um relatório de espionagem feita pelos agentes do DOPS durante o próprio Encontro. Ao lado, vê-se a primeira página desse relatório, com o uma lista dos movimentos organizados. É possível que esses grupos tenham sido alvo de algum controle depois; ainda não fiz, porém, essa pesquisa. Como, mesmo assim, encontrei vários documentos a respeito, creio que muito mais deve existir e virá à tona.

Em São Paulo, os homossexuais continuavam sendo um dos alvos da violência policial, além dos  negros, das travestis e das prostitutas. Vejam, ao lado, uma chamada para o ato contra a violência policial em 13 de junho de 1980, em uma oportuna aliança desses grupos. Esse ano, de fato, é de grande importância na articulação, em São Paulo, das minorias contra a violência oficial.




Esse movimento gerou uma resposta à imprensa do DOPS/SP. Nesta nota interna, não se disfarça a discriminação. Fala-se em "degradação humana (movimento de lesbicas, travestis, etc.)", contrastando com "as famílias que representam a grande maioria, em comparação com 'as minorias oprimidas'".
O uso das aspas não disfarça que se trata realmente de uma orientação política de discriminação do Estado contra minorias.

Abaixo, transcrevo a programação do importante evento deste sábado. Vejam que a audiência contará apenas com nomes que conhecem profundamente o assunto, inclusive James Green, que viveu e militou no Brasil durante a ditadura militar.






Edição especial do Sábado Resistente, realizada em parceria com o Museu da Diversidade Sexual, receberá audiência pública organizada em conjunto pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão da Verdade Estadual "Rubens Paiva" da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para tratar da repressão sofrida pela militância LGBT nos anos de chumbo.
O objetivo da audiência pública é contribuir para uma análise interdisciplinar das relações entre a ditadura brasileira (1964 – 1985) e a homossexualidade. Em especial, pretende-se discutir de que maneiras a ditadura dificultou tanto os modos de vida de gays, lésbicas, travestis e transexuais, quanto a afirmação do movimento LGBT no Brasil durante os anos 1960, 1970 e 1980.
Além de apresentar informações sobre a repressão e violência dirigidas pela ditadura a esses grupos sociais específicos, a audiência também abordará as ações de resistência empreendidas por esses segmentos sociais que, apesar de terem sido alvo de políticas de repressão e de controle social, acabaram se constituindo como atores fundamentais da redemocratização brasileira.
Nesta audiência, pretende-se evidenciar as violações de direitos específicas desses grupos discriminados por conta de orientações, identidades ou práticas sexuais diferentes do que era considerado "normal" segundo os valores morais conservadores que inspiravam a doutrina de segurança nacional. Dessa maneira, será possível conferir visibilidade e o devido reconhecimento para as experiências de vida dos homossexuais e para a atuação do movimento LGBT durante essa época histórica.
Os pesquisadores participantes são autores de artigos que estarão presentes no livro coletivo: "Ditadura e Homossexualidade no Brasil: repressão, resistência e busca da verdade", que será editado por James N. Green e Renan H. Quinalha, e que deve ser lançado até o final do ano. Também participam da obra José Reinaldo de Lima Lopes e Luiz Gonzaga Morando Queiroz.


PROGRAMAÇÃO

Boas vindas
- Marcelo Araújo (Secretário da Cultura do Estado de São Paulo)
- Núcleo de Preservação da Memória Política

Mesa de abertura
- Paulo Sérgio Pinheiro (Diplomata brasileiro, membro da Comissão Nacional da Verdade)
- Adriano Diogo (Deputado estadual, presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva)
- Eloísa de Sousa Arruda (Secretária de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo)
- Marcelo Araújo (Secretário da Cultura do Estado de São Paulo)

Pesquisadores presentes
- James N. Green (Brasilianista, ativista dos direitos LGBT, professor de História da América Latina na Brown University – Rhode Island, Estados Unidos)
- Renan H. Quinalha (Advogado, doutorando na Universidade de São Paulo – USP, membro da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva)
- Jorge Caê Rodrigues (Designer, doutorando na Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade do Grande Rio – Unigranrio)
- Rita de Cassia Colaço Rodrigues (Especialista em gênero, orientação sexual e relações de poder, doutoranda em História Social na Universidade Federal Fluminense – UFF)
- Benjamin Cowan (George Mason University – Virginia, Estados Unidos)
- Marisa Fernandes (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP)
- Rafael Freitas (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP)

Os Sábados Resistentes, promovidos pelo Memorial da Resistência de São Paulo e pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, são um espaço de discussão entre militantes das causas libertárias, de ontem e de hoje, pesquisadores, estudantes e todos os interessados no debate sobre as lutas contra a repressão, em especial à resistência ao regime civil-militar implantado com o golpe de Estado de 1964. Os Sábados Resistentes têm como objetivo maior o aprofundamento dos conceitos de Liberdade, Igualdade e Democracia, fundamentais ao Ser Humano.


Esta nota faz parte da IX Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR #50anosdogolpe, que ocorrerá de 28 de março a 6 de abril. Sua convocação pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2014/03/28/ix-blogagem-coletiva-desarquivandobr-50anosdogolpe/

Nenhum comentário:

Postar um comentário