O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXIX: FIESP, as empresas e a polícia política

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" fez avançar nosso conhecimento sobre a relação entre a FIESP e a repressão política, com a revelação de que representante da Federação (e também do Consulado dos EUA) frequentava o DOPS, às vezes de madrugada, horário em que não era incomum ocorrerem torturas.
A Comissão Municipal da Verdade trouxe a denúncia de que o General Amaury Kruel, que comandava o II Exército, foi subornado pela FIESP para aderir ao golpe.
A Frente de Esculacho Popular realizou ato em frente à FIESP por causa de seu apoio à repressão política, que foi, por sinal, objeto de um documentário importante de Chaim Litewski, "Cidadão Boilesen", que leva o nome do empresário da Ultragaz que ajudou a coletar dinheiro do empresariado para financiar a Operação Bandeirante (OBAN) e gostava de assistir às sessões de tortura.
A OBAN, lançada em julho de 1979 para combater os grupos da esquerda armada (sugiro ver este breve texto de Mariana Joffily), foi o laboratório para a instituição dos Destacamentos de Operações de Informação - Centros de Operações de Defesa Interna (CODI-DOI), que a substituíram. Um dos seus agentes, Marival Chaves Dias do Canto, falou à Comissão Nacional da Verdade sobre tal centro de torturas.
São Paulo, nesse momento, estava na vanguarda da repressão, e ela foi criada informalmente, fora dos parâmetros mínimos do direito administrativo, exatamente durante a gestão, à frente da Secretaria de Segurança Pública, de Hely Lopes Meirelles, que foi o grande nome do direito administrativo brasileiro. Ele não foi, naturalmente, o primeiro jurista que, em nome do poder, não só viola o direito como ignora os próprios escritos.

Antes da ditadura militar, a espionagem sobre sindicatos envolvia o acompanhamento das conquistas salariais, que era uma das principais preocupações das empresas. A questão social nunca havia deixado de ser um problema da polícia.
Nesta Informação reservada do DOPS/SP, elaborada em 1963, vemos um dos vários documentos que se ocupam dos percentuais remuneratórios que as diferentes categorias de trabalhadores reivindicavam na Delegacia Regional do Trabalho e na Justiça do Trabalho.
Preocupava-se também com a possibilidade de que as conquistas de certa categoria pudessem servir de inspiração para outras. No documento ao lado, a que já me referi em outra nota, temos a menção a
[...] um caminho aberto para as demais categorias profissionais, as quais, em futuras lutas reivindicatórias, irão reivindicar e exigir dos empregadores as mesmas vantagens hoje obtidas pelos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Combustíveis, principalmente no que se refere ao salário-família, férias de 30 dias e, em alguns casos, o adicional por tempo de serviço. Portanto, finaliza a fonte, acha-se em aberto mais uma questão na luta reivindicatória do proletariado brasileiro.

Não é de se estranhar que, em 1963, dirigentes dos sindicatos patronais falassem em derrubar Goulart à força, em fazer o que chamavam de revolução.
A CNTI era a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, que, desde o fim de 1961, contava com uma direção trabalhista-comunista e havia comandado greves gerais. Era uma das preocupações do empresariado: outro documento do Arquivo Público do Estado de São Paulo, um relatório do DOPS/SP de 14 de janeiro de 1964, mostra a preocupação com a presença comunista na CNTI e no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), e a possibilidade de eclosão de greves.
Mantenho a curiosa ortografia do documento de 1963, que encontrei há poucos anos:
Acontece que, nesse interim, o nosso observador estivera na séde da F.I.E.S.P., onde ouviu de vários líderes sindicais do grupo patronal, os quais, dizendo falar em nome da F.I.E.S.P., a cujo grupo de orientação de cúpula pertencem, afirmaram que "desta vêz, ou cooperavam para pôr ordem na situação social anarquizada pelo atual govêrno federal,  ou então partiriam para a revolução, de vêz que jamais iriam concordar com a imposição da C.N.T.I e "Pacto de Ação Conjunta".
Dado o golpe, sem praticamente nenhuma resistência expressiva, inclusive dos meios sindicais, o controle sobre os sindicatos multiplicou-se e diversos, milhares de nomes foram afastados por razões políticas. Já há diversos estudos sobre isso, e o Grupo de Trabalho relativo aos trabalhadores tem a missão de aprofundar as descobertas nesse campo. Eis o sítio correspondente na internet, ainda incompleto: http://trabalhadoresgtcnv.org.br
Quero lembrar de outra coisa nesta pequena nota. Durante a ditadura militar, existe toda uma correspondência das empresas com o DOPS/SP solicitando que a polícia resolva seus problemas trabalhistas, como greves, faltas e reivindicações salariais, bem como remetendo nomes de empregados que se sindicalizavam ou que se tornavam politicamente suspeitos.

Há diversos e diversos casos, e provavelmente podem ser encontrados em outros Estados uma correspondência análoga entre empresas e polícia. Como exemplo deste caso, a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em 6 de novembro de 1978, remeteu à Divisão de Ordem Política do DOPS uma lista de professores "interessados em constituir uma associação de Professores da FAAP".
Essa correspondência poderia incluir o agradecimento a policiais que reprimissem greves; já incluí neste blogue a gratidão da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) de São Bernardo do Campo, em 14 de abril de 1970 ao então delegado titular de ordem política, Alcides Cintra Bueno Filho.

A polícia também atendia a telefonemas de empresários e diretores de empresas. No caso ao lado, a Auto Aviação Tânia, em 1976, queixou-se de que metade dos empregados não apareceu para trabalhar, o que "seria por descontentamento quanto ao percentual do aumento salarial e que teria como órgão incentivador o sindicato de classe", e que isso ocorreria com as "demais empresas", "uma por dia". Os policiais envolvidos com  a ordem social parecem ter-se incumbido do caso.
Não sei o que ocorreu com esses trabalhadores. Sabemos, porém, que a repressão a movimentos de reivindicação trabalhista poderia, em alguns casos, resultar em morte.

Foi o caso de Orocílio Martins Gonçalves, a que se refere o panfleto ao lado. Ele, nascido em 1954, foi assassinado pela Polícia Militar de Minas Gerais em 30 de julho de 1979 numa repressão a uma passeata de operários da construção civil em greve. Além do projétil da arma de fogo, o laudo de necropsia registrou marcas de agressões.
No Seminário Direito e Ditadura que o PET-Direito da UFSC organizou em 2010, dei uma palestra no dia em que Romeu Tuma faleceu. Sua memória havia sido bastante "higienizada" pela imprensa, inclusive por veículos de esquerda. Aproveitei e, como estava com vários arquivos no computador, fiz um fecho para minha fala com um documento dessa época, que mostrava esse tipo de função trabalhista da polícia política.

O banco Itaú agradece ao Delegado Tuma "pela magnífica atuação à frente desse Departamento, colaborando com isso para o normal desenvolvimento das atividades deste Banco". Os funcionários da madrugada lograram ir trabalhar. Tratava-se de uma grande greve de bancários, que irrompeu no Rio Grande do Sul em setembro de 1979 foi seguida no Rio de Janeiro e em São Paulo, com uma adesão menor nesta cidade.
Quando se trata da legitimidade social da ditadura militar, um dos caminhos foi o da eficiência econômica, caminho que acabou de degringolar no governo Figueiredo. O outro, essa função repressiva dos trabalhadores que tornava o regime simpático às "classes produtoras", para usar uma expressão empregada pela FIESP, e mostra como parte da sociedade se relacionava e colaborava com o regime autoritário.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXVIII: o TRE-RJ cancela “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar”

Soube disto por meio de Renata Lins e Eduardo Sterzi, que retransmitiu a notícia dada pela economista. No dia 30 de julho, ocorreria o lançamento da exposição “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar” no TRE-RJ, com palestras de dois nomes da Escola da Comunicação da UFRJ, Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento. Duraria um mês este evento da Escola Judiciária Eleitoral, como foi noticiado.
O presidente do Tribunal, no entanto, resolveu impedi-lo; o despacho de indeferimento da cerimônia de abertura foi assinado no dia 24 e publicado no Diário do dia 28 de julho.
Não sei se a exposição foi proibida também, embora o teor do despacho leve a crer que ela não poderia encontrar abrigo naquele Tribunal. A palestra ocorrerá no IAB-RJ (Instituto dos Advogados Brasileiros), também no dia 30, às 10 horas, contando com um membro do Instituto, Flora Strozenberg, e a abertura por um Desembargador federal, André Fontes.
Memorado nº 50/2014 - Protocolo nº 89.608/14
Interessado: Escola Judiciária Eleitoral
Assunto: Cerimônia de abertura da exposição “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar”.
Despacho: Indefiro qualquer manifestação cujo tema seja "golpe", "autoritário", "guerrilha" ou atividade político partidária. O TRE e seus órgãos não podem manifestar simpatia ou oposição a regimes que, certo ou erradamente, refletiam a Constituição então vigente. Comunique-se esta decisão. Publique-se. Rio, 24/07/2014. (a) Desembargador Bernardo Garcez – Presidente do TRE/RJ.
O interessante e sumário despacho coaduna-se com diversos outros exemplos atuais, no meio jurídico brasileiro, contrários ao direito à memória e à verdade. Eis uma pequena seleta dessa infinidade reacionária:


Lembro que o caráter negacionista da decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal está justamente na invenção de um passado inexistente no tocante à lei de anistia, como se o projeto aprovado tivesse vindo da sociedade, e não houvesse ocorrido censura, vigilância e prisões contra os movimentos pela anistia. Creio que essa negação judicial da história brasileira tem ligação com a tese de Rebecca Atencio em Memory's Turn, mas ainda vou fazer uma nota sobre esse livro.
Que a interdição imposta pelo presidente do TRE-RJ colide com os esforços de recuperar a verdade e a memória, parece-me que é simples de ver. Parece-me também que se trata de um ato discricionário, que não poderia ser desfeito judicialmente. O que me chama a atenção é outra coisa, a justificativa: "O TRE e seus órgãos não podem manifestar simpatia ou oposição a regimes que, certo ou erradamente, refletiam a Constituição então vigente."
A ideia de que as palestras seriam uma atividade político-partidária parece-me apenas absurda. Mais substanciosa, intelectualmente falando, é a tese de que o golpe militar, tema das palestras, refletia a Constituição vigente.
A substância, porém, logo se evapora. Bem, se assim fosse, não teria sido um golpe... Tampouco uma revolução, qualificação (errônea) que é usualmente defendida por outro tipo de negacionista.
O despacho invoca imparcialidade (nem simpatia nem oposição...), porém em nome de uma paixão, a da positividade histórica, e ela não é neutra politicamente, muito pelo contrário. Ela está ao lado do status quo. O Desembargador, se português, proibiria palestras que criticassem o fascismo, eis que ele era o regime vigente. Sendo brasileiro, e sendo a história do Brasil o que conhecemos...
Entre a dignidade humana e a decorosa e silenciosa homenagem ao legado histórico do autoritarismo, parece que o magistrado já fez sua escolha (e que é a do Tribunal, ao menos enquanto ele o presidir) que, curiosamente, vai de encontro ao regime formalmente instituído hoje...
Inconsistências do despacho à parte, merece ser analisada a tese garceziana de que a instauração do "regime militar" foi um simples reflexo da Constituição de 1946. É verdade que seria inútil procurar alguma previsão constitucional que previsse derrubar à força o presidente da república. No entanto, houve, na época, quem ousasse dizer que o golpe não violara a Constituição, e um deles foi a OAB: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/desarquivando-o-brasil-xlviii.html
Eis uma razão por que digo que os formados em direito não detém e não deveriam deter o monopólio do saber jurídico... Os militares que lideraram o golpe, por exemplo, possuíam uma noção de constitucionalismo mais fina do que a Ordem dos Advogados e precisaram do saber jurídico de Francisco Campos, ex-ministro da ditadura anterior, a de Vargas, para criar um instrumento que legitimasse juridicamente o regime que, sabidamente, nascera em ruptura com a Constituição de 1946. Assim nasceram os atos institucionais, como já contei em outros textos.

Essa ignorância do constitucionalismo pela OAB, talvez inspirada pelo amor ao poder, não se encontrava nos melhores juristas engajados na ditadura que, se não eram amigos da Constituição, e também amavam o poder, ao menos detinham o saber técnico mínimo para saber que não a estavam aplicando, e sim a uma outra coisa, ao direito de exceção, ele mesmo, deve-se lembrar, também sistematicamente violado pelo regime.
Miguel Reale, um desses juristas, bem o sabia. Em palestra comemorativa do "II Ano da Revolução", proferida em Osasco, em 31 de março de 1966, "Revolução e normalidade constitucional", ele explicou claramente que houvera, de fato, uma ruptura com a Constituição vigente, e que o regime não deveria ser culpabilizado por isso:
[...] devemos abandonar a noção, ainda imperante, de "normalidade constitucional", que às vezes traduz uma espécie de complexo de culpa, como se, com a fratura revolucionária, houvéssemos praticado um ato censurável que nos obrigasse a reconstruir imediatamente as paredes fendidas ou abaladas pelos acontecimentos "anormais" de março.

Dever-se-ia criar um novo ordenamento constitucional, tendo como orientação o primeiro Ato Institucional, a partir do trabalho dos juristas colaboracionistas. Nada de uma Assembleia Constituinte. Reale escreve que nem o povo nem as "elites nacionais" tinham a "convicção" de que é necessário mudar a "fisionomia do Estado brasileiro". Quem deveria impor essa mudança, de cima para baixo, à sociedade? O governo militar.
Nas atuais conjunturas da vida nacional, inclusive pela falta de agremiações partidárias constituídas segundo centros programáticos definidos, penso que nada seria tão abstrato e ilusório como uma Assembleia Constituinte, nascida de um falso complexo de culpa e destinada a repetir os mesmos erros de 1934 e 1946.
Para conseguir-se a "normalidade constitucional", autenticamente vinculada às nossas circunstâncias, o Ato Institucional de 1964, aponta o caminho certo, que é o da proposta constitucional [grifo do original] a ser submetida, pelo Presidente da República, ao exame do Congresso Nacional, com a colaboração de juristas atualizados [...]

O governo enviou ao Congresso a Carta de 1967 e o Legislativo, que já havia sofrido diversas cassações, somente pôde dizer sim. Tal foi a sistemática do Ato Institucional número 4:

Art. 1º - É convocado o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967.
§ 1º - O objeto da convocação extraordinária é a discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República.
[...]
Art. 8º - No dia 24 de janeiro de 1967 as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgarão a Constituição, segundo a redação final da Comissão, seja a do projeto com as emendas aprovadas, ou seja o que tenha sido aprovado de acordo com o art. 4º, se nenhuma emenda tiver merecido aprovação, ou se a votação não tiver sido encerrada até o dia 21 de janeiro.

Vejam o tempo mínimo, humilhantemente imposto pelo AI-4, que o Congresso dispunha para analisar a proposta governamental, e durante as festas de fim de ano. Nesse procedimento autoritário, tivemos mais um caso do emprego do instrumento do Ato Institucional para romper com a constitucionalidade - e, de fato, ele continuou sendo usado mesmo sob a égide das Constituições de 1967 e 1969, tão adversa que era aquela forma política à forma jurídica constitucional.
Ainda nos tempos anteriores AI 5, que certos negacionistas caracterizam como democráticos, tivemos casos como o do jornalista Hélio Fernandes, que, após a morte de Castelo Branco, criticou o ditador e foi, por isso, confinado em Fernando de Noronha em julho de 1967. Tratava-se do governo de Costa e Silva. O ministro da justiça, Gama e Silva, utilizou para tanto o Ato Institucional n. 2, que, no entanto, não era mais válido (seu artigo 33 previa que ele vigoraria até 15 de março de 1967).

A ruptura com a ordem constitucional por meio dos Atos Institucionais não significava, evidentemente, respeito a esses Atos. A arbitrariedade do regime autoritário não era muito compatível com a forma jurídica, mesmo com a do direito de exceção fabricado pelo próprio regime.
Não há que se falar em constitucionalismo nessa época, muito menos em reflexo da Constituição vigente, que garantia a liberdade de imprensa... No trecho ao lado de Boletim Informativo do SNI, temos esta posição do Ministério da Justiça: "Ainda sobre GAMA E SILVA, a respeito da punição de HÉLIO FERNANDES: o governo não poderá ficar de braços cruzados caso JÂNIO e JUSCELINO comecem uma pregação nacional, só porque a Constituição não prevê isso." (grifos do original).
O que representa, enfim a decisão do magistrado Bernardo Garcez de cancelar as palestras “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar” alegando que o Tribunal não poderia se insurgir contra os regimes que refletem as Constituições vigentes? Mais um exemplo de negacionismo, sendo, enfim, mais realista do que o rei, pois chegou ao ponto de negar que o primeiro de abril de 1964 tivesse resultado em alguma ruptura política e jurídica, como se nada de novo tivesse nascido, nenhuma besta tivesse se arrastado a Brasília para nascer (quem não conhece, veja este poema de Yeats, "A segunda vinda").
Evidentemente, se não houve ruptura ou golpe, que finalidade teriam eventos que discutissem 1964? Eis como, se negando a história, atinge-se a democracia. Segundo essa visão negacionista, esses eventos, de fato, deveriam ser proibidos, e (o que seria um segundo passo, consistente com o primeiro) deveria ser declarado subversivo todo aquele que achasse que houve no passado ruptura com a democracia, bem como todo aquele que julgasse que, através das fendas produzidas pela ruptura institucional, ainda escapam fuzis, cassetetes, aparelhos de escuta, monitoramento de movimentos sociais, e até mesmo decisões antidemocráticas do Judiciário.
Termino lembrando da ligação entre memória social e democracia, segundo Jacques Le Goff em Histoire et mémoire:
Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos, arquivos orais, arquivos de audiovisual não escaparam à atenção dos governantes, mesmo se eles não podem controlar essa memória tão estritamente quanto os novos instrumentos de produção dessa memória, o rádio e a televisão notadamente.
Com efeito, incumbe aos cientistas profissionais da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários de sua objetividade científica.
[...] Ajamos de maneira que a memória coletiva sirva para a liberação e não para a subjugação dos homens.

sábado, 19 de julho de 2014

Presença e ausência de Alberto Pimenta nos palcos portugueses: As 4 estações e Gisberta

Dois espetáculos em Lisboa, um deles a sair de cartaz neste fim de semana, outro que voltou à cena faz poucos dias, têm relação com Alberto Pimenta. O primeiro, As 4 estações, baseia-se no texto homônimo desse autor (o livro, de 1984, tem o subtítulo discurso muito íntimo; foi republicado no volume Deusas ex machina em 2004); o segundo, Gisberta, parte de um caso real de assassinato de uma transexual brasileira no Porto, Gisberta Salce, que inspirou todo um livro de poesia de Pimenta (Indulgência plenária). A peça parte do mesmo caso para chegar a resultados completamente opostos aos do poeta.
As 4 estações é prosa não concebida para o teatro. Trata-se basicamente de um monólogo de um velho ao longo de uma viagem de trem para Lisboa, em que só tem como companheiro um homem mais jovem, que ouve o discurso muito íntimo (que inclui atividades com ambos os sexos) daquele senhor, que percorre diversas estações da vida. O trem, na viagem encenada, passa  por quatro estações, mas elas também simbolizam uma totalidade, o percurso de uma existência.
O gênio de Pimenta está no sarcasmo e no alcance desse percurso, que acaba, em vários momentos,a satirizar certos modos portugueses e, em outros, a refletir radicalmente (Dante e o Diabo são convocados nessa fala) sobre a morte, que é, enfim, o nome mais apropriado para a ordem que espera o viajante mais jovem ao chegar em Lisboa.
Como solucionar cenicamente um texto desse tipo? Diogo Bento (que está no palco), Miguel Bonneville e Elisabete Fragoso tiveram uma ótima ideia, bem afim ao universo de Pimenta (notório performer), de realizar uma performance ao som da voz do personagem do velho, interpretado magnificamente por João Mota, muito feliz em captar a ironia desta prosa. 
A performance não está realmente à altura do texto: ela procede por acumulação, e nisso fica até o final. Porém, o que vai sendo montado no palco, cenas cotidianas com esqueletos e ossos esparsos, é um terrível retrato do mundo, que os barrocos reconheceriam, com Santa Apolônia (se não me engano) erguida no meio de tudo - ela também dá o nome à última estação da viagem de trem.
Outro mundo teatral, muitíssimo mais tradicional, é o de Gisberta. Trata-se de um crime que reebeu a "indulgência" (como Pimenta denominou) do Judiciário português. Em resenha que escrevi sobre Indulgência plenária, conto um pouco da história:
Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa: &etc, 2007).
Temos, também nesta peça, um monólogo; aqui, porém, o que se deseja, como na ópera barroca dos tempos de Händel, é concentrar todas as atenções na atriz e arrancar dela um solo que desperte as lágrimas na plateia.
Tendo em vista essa dramaturgia das estrelas, quem não conhece a história real de Gisberta Salce ficará sem entender direito o que está acontecendo até os quinze minutos finais; mesmo assim, projeta-se a história do crime e do processo no fim. Talvez Eduardo Gaspar tenha recorrido a esse expediente de nota de fim de artigo por ter percebido que o solo não se ocupava de contar os fatos que o inspiraram.
De que se ocupou, além de proporcionar um solo para a estrela? Não falarei mal de Rita Ribeiro. A concepção do espetáculo de Eduardo Gaspar é que está muito equivocada. Um dos problemas foi justamente a escolha da atriz, que poderia ter sido alguma brasileira, em razão da nacionalidade da personagem. A protagonista nem mesmo tenta imitar alguma das formas brasileiras de falar o português. Por algum tempo, julguei que ela estava a interpretar uma das mães dos assassinos (eles sim portugueses). Quando se refere à mulher de voz estrangeira que lhe dá a terrível notícia (leva bastante tempo para o espectador descobrir que se trata da morte do filho, e mais ainda para saber como ela aconteceu), tudo se inverte: é como se Gisberta tivesse nascido em Portugal e o crime houvera ocorrido no Brasil...
Os clichês convocados para delinear esta mãe imaginária são inúmeros e infelizes. No pior momento, em que a senhora recorda de um momento de confronto com a filha (o "meu menino"), ouve-se "O mio babbino caro", ária da ópera Gianni Schicchi, de Puccini, na gravação de 1954 de Maria Callas, regida por Serafin. Terminada a breve ária, temos o efeito kitsch de uma folha seca movida pelo vento para o palco... Interpretações menos inteligentes não deixam perceber, mas essa ária é irônica: o pedido de Lauretta a seu paizinho faz parte da encenação dentro dessa própria ópera (uma comédia) - por isso Callas exagera, especialmente quando ameaça jogar-se no rio Arno.
Essa ironia e a consciência da representação estão completamente ausentes da peça.; essa música está lá apenas por ser uma das árias mais conhecidas - mas a interpretação contrasta implacavelmente com tudo o que se vê no palco. Já em Pimenta... Temos todo um jogo intertextual com vários autores, especialmente Shakespeare, que iluminam a compreensão do drama vivido por Gisberta. Nenhum dos autores aparece de forma gratuita ou apenas para arrancar lágrimas fáceis.
Além de despolitizar a questão, essa inversão feita pelo próprio monólogo, embora o texto projetado conte corretamente o que ocorreu, serve para deslocalizar o problema e absolver a transfobia em Portugal. É exatamente o contrário do que Pimenta faz, ao denunciar no poema a hipocrisia e a violência na cidade de Porto. Na resenha, cito esta passagem: "Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da morte física: 'Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal cidade/ não há relação possível' (p. 48)."
Outra forma de absolver a transfobia e Portugal é esquecer do papel da religião na história; nem mesmo se menciona o educandário.
O espetáculo foi declaradamente realizado com boas intenções, ao que parece, mas cedeu ao apelo de querer chegar à plateia comovendo-a com o drama não de Gisberta, mas da mãe de uma transexual que não aceita a identidade de gênero e lamenta que o pai de seu "menino" não lhe tenha batido o suficiente para que se endireitasse. Acima de tudo, ela fala "meu menino" praticamente a cada dez segundos, realizando uma violência de gênero somente interrompida nos minutos finais, quando, por duas vezes, a primeira aos soluços, pronuncia o nome Gis-ber-ta.
Ao contrário do que se vê em As 4 estações, a própria forma teatral escolhida impede que o espetáculo tenha um caráter crítico. Acaba-se por trocar o drama de Gisberta pelo da mãe. Talvez se tenha tido medo da história e da figura da transexual e imigrante clandestina, da qual o texto nunca logra se aproximar. O resultado é uma peça que, embora se quisesse de intervenção, faz parte do mesmo problema em que desejava intervir.
Nota: a foto acima de Pimenta, tirei-a em 2011 em Almada.

domingo, 13 de julho de 2014

#NãoVaiTerCopa 2 e #PresosDaCopa

Para mim, não importa muito se a presidenta tergiversou ou não entendeu mesmo o significado de não vai ter Copa, que, para ela, teria sido "enterrado". Importa é apontar e denunciar a estratégia oficial de falsear ou reduzir o sentido do movimento. 
Para a presidenta, ele teria sido enterrado porque a Copa aconteceu (estava acontecendo) e padrões mínimos de eficiência estavam sendo atingidos. Não é disso que se trata, porém, e a maliciosa estratégia foi fazer deslizar para o terreno da gestão e para o discurso da eficácia o que se punha no terreno da política e das práticas e discursos da liberdade e da igualdade.
A Copa que, com efeito, não houve, foi a da propaganda governamental: um torneio de congraçamento e de caráter popular, sem ônus para os cofres públicos. O ônus ocorreu, para lucros privados e prejuízos públicos, e o caráter "popular" do evento foi negado pelo próprio governo, ao comentar as vaias e os xingamentos de baixo calão que a Presidenta recebeu do público no jogo de abertura (e em outras ocasiões, também na final). Esse público seria a elite do país, e é ela que insultaria a chefe de governo...
Não era realmente, boa parte da alta elite está fechada com o governo (como lembrou Alvaro Bianchi). Porém, de fato, o Estado brasileiro promoveu uma elitização dos estádios, acabando, por exemplo, com setores de ingressos mais baratos, como a "geral" do Maracanã.
O #NãoVaiTerCopa denunciou essa situação, e foi tão bem-sucedido que pautou o discurso da Presidenta da República, da FIFA, e gerou, provavelmente por sua radicalidade democrática, a hostilidade de políticos de todas as cores do espectro político. Radicalidade, creio, por ter expressado a revolta contra a violação generalizada de direitos humanos ocorrida para que a Copa das Empreiteiras acontecesse, revolta que não tem recebido nenhuma outra resposta institucional, visto que não há Justiça, a não ser a repressão. O próprio Judiciário instrumentalizou-se, com plantões especiais, para continuar a funcionar como um prolongamento da Polícia, que está a agir tão ilegalmente quanto nas manifestações de 2013. Indico alguns textos agora:
Um levantamento muito mais completo pode ser estudado no Portal Popular da Copa e das Olimpíadas, que congregou bastante material. Eu deveria escrever sobre o papel da Lei Geral da Copa, ou a Lei de Ocupação do País pela FIFA com as forças do próprio país, mas não posso fazê-lo agora.
A respeito do paralelo com 2013, transcrevo parte do relato do professor Pablo Ortellado sobre manifestação em junho deste ano, em São Paulo: 
[...] não há duvida que as garantias dadas pelo Governador Geraldo Alckmin e a presidenta Dilma Rousseff de que o direito de manifestação seria respeitado não foram cumpridos.
Foi uma das manifestações mais violentamente reprimidas que já vi. E como a ação repressiva foi articulada pelo governo estadual e federal, podemos esperar aquele silêncio político que uniu petistas e tucanos na repressão ao MPL durante a luta contra o aumento das passagens em 2013.
Escrevi "Copa das Empreiteiras", o que é impreciso, pois elas não estão em competição, e não pode ser encarado como simples jogador aquele que é dono da bola e do campo, além de financiador do árbitro. Sei que muitos denominaram o evento de Copa das Tropas, o que ele também foi, mas para que finalidade foram mobilizadas as forças de segurança? Garantir a segurança dos investimentos da FIFA e daquelas empresas, que foram as grandes vencedoras. Indico esta reportagem de Adriana Belisário para a Agência Pública, "As quatro irmãs". Foram essas empresas as vencedoras, que se destacam tanto como financiadoras de campanhas eleitorais quanto como vencedoras de concorrências públicas, cujos valores são sempre multiplicados pela força de aditivos.
Para a garantia desses investimentos, a violação generalizada de direitos humanos deu-se em diversos âmbitos: o direito à moradia, com remoções forçadas e ilegais (ocorridas inclusive em cidades cuja Lei Orgânica proíbe a remoção de favelas, como é o Rio de Janeiro; ver, a propósito, o filme Domínio Público) gerou reações que foram respondidas com a repressão a outros direitos: as liberdades de manifestação, de expressão, de imprensa (principalmente a pequena imprensa, que não pode esperar solidariedade alguma, naturalmente, dos oligopólios da comunicação), a proibição de prisão arbitrária, o direito à integridade física, e também os direitos e prerrogativas profissionais dos advogados.
Quero relembrar o que a psicóloga Camila Pavanelli "#NãoVaiTerCopa não é 'torcer para que tudo dê errado' – é reconhecer que aquilo que mais importa já deu absurdamente errado. Que obras foram superfaturadas. Que pessoas foram ilegalmente removidas de suas casas. Que a FIFA deitou e rolou."
Nesse sentido, #NãoVaiTerCopa significou nada menos do que #NãoTemDemocracia.
Participei de poucos eventos relativos à Copa porque estava muito envolvido, mesmo em junho, com a rede Índio é Nós; no entanto, pude testemunhar que a polícia militar tentou invadir uma atividade do Comitê Popular da Copa e do Comitê pela Desmilitarização da Polícia em que eu era um dos palestrantes sob o pretexto de que ocorreria uma "atividade política".
A persistência das ações ilegais do Estado brasileiro contra seus cidadãos mostra que a Copa foi mais um triste capítulo na história da democracia brasileira. Persistência alimentada pelos velhos hábitos do Judiciário: o único preso pelas manifestações de 2013 foi alguém que nem mesmo delas participava, mas era o alvo preferencial do sistema penal brasileiro: o negro e pobre Rafael Braga Vieira, "armado" com perigosíssimo desinfetante.
Alguém, talvez ingenuamente, poderia indagar se as prisões arbitrárias (como foi a de Vieira, ratificada pelo Judiciário) são políticas, ou se há presos políticos no país. Não vejo como negá-lo. Explico.
As prisões ilegais têm como efeito a limitação do que Charles Tilly chama de repertório de ação coletiva dos movimentos. Nesse repertório, estão passeatas, debates, marchas - as possibilidades de ação coletiva para mobilizar a ação e a opinião públicas.
Tal ação coletiva é política, e é ela que está sendo reprimida. Quando são detidos manifestantes que são considerados "líderes" de movimentos (e criminalizados por parte da imprensa que é sócia desses abusos), não é abusivo caracterizá-los como presos políticos. Ainda mais porque são detidos em razão do exercício (ou da possibilidade desse exercício, no caso de prisões que antecedem as manifestações) de direitos democráticos.
O cerceamento policial-midiático-judicial do repertório legal de ação coletiva é um desastre do país. O inconformismo, recalcado, se não pode manifestar-se de forma legal, virá à tona de outra maneira, mesmo ilegal. Não me admira que os black blocs tenham irrompido no espaço público brasileiro em 2013, quando ficou claro que o ímpeto democrático dos governos parou na manutenção de políticas de auxílio social, enquanto outras áreas entram em franco retrocesso, como os índios e os quilombolas bem podem confirmar.
Como escrevi no primeiro #NãoVaiTerCopa, um poeminha em que se calculava o que seria o evento (repressão, fratura, mordida etc.), os governos bem podem dizer: "estamos para o país assim como a fratura exposta está para o esporte".

Antologia de viagem: Portugal, 2014

Estou em Portugal e estou lendo um pouco da poesia portuguesa contemporânea, que tão raramente chega ao Brasil. Escolhi trechos apenas de livros (no caso de Fernando Guerreiro, uma plaquete), e publicados neste ano e em 2013. Tive de descartar a poesia visual, tendo em vista as limitações de formatação.
Os dados de nascimento dos autores, quando disponíveis, tirei-os da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (http://www.dglb.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores.aspx).

Alberto Pimenta (Porto, 1937), Autocataclismos (Lisboa: Pianola, 2014)
48


Jack Sparrow                        o pirata das Caraíbas disse
com a chave na mão             nem todo o tesouro é ouro e prata
avançou                                o cinto de castidade era de ferro



Fernando Guerreiro (Lisboa, 1950), (quase) Anjos (Grisu: Guimarães, 2014)
(fragmento)


Não bastava uma, teria
de morrer repetidamente
para que, pelas palavras,
os cotos se tornassem asas
e ainda sangrentos, com
o osso à vista, arfassem
por guelras que só
uma longa visão do horror
prepara para o inferno
convulso dos sentidos.



Manuel de Freitas (Vale de Santarém, 1972), Ubi Sunt (Lisboa: Averno, 2014)
La Rêveuse

para a Adília Lopes


Houve um tempo em que me apetecia escrever bem, enaltecer a dor.

Depois, fui-me esquecendo da dor e das palavras certas.

Agora é mais simples: despeço-me.




Miguel Cardoso, Os engenhos necessários (Lisbos: &etc, 2014)
Com um ligeiro clic de chaufagem aberta (excerto)


tal como Paul Klee recordava
como a avó esmagava
as maçãs lembrando
a cadência do hálito
ou Thoreau percorrendo os campos
da Nova Inglaterra e anotando os fenómenos
na ordem em que pela
primeira vez são observados,
escrevendo por exemplo os dias
exatos da floração
como lâminas em sequência magnética

Poderia tentar algo assim
com os castanhos em flor da ferrugem
mas perderia as contas ouviria vozes
e mastigaria por certo demais
as maçãs lembradas
até chegar ao ponto de papa



Rosa Maria Martelo (Vila Nova de Gaia, 1957), Matéria (Lisboa: Averno, 2014)
Branco


Interessa-me o inconcreto branquejar
da roupa no estendal (o branco, não)
mais do que o peso da água, ver
que o nada não se vê na água a evaporar

na luz do tecido em contraluz interessa-me
o vazio suspenso do vazio
quando a roupa enforma ao vento e sobe
no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.



Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado (Alambique, 2014)
Moribunda


Deitada imóvel de olhos muito abertos
a suar o pavor de ter existido




Rui Nunes (Lisboa, 1945), Uma viagem ao outono (Lisboa: Relógio D'Água, 2013)
(fragmento)


O Reno é um rio que não acaba,
segrega o medo, segreda-o,
na tua insônia, a voz da mãe
é uma paisagem desolada.
:
De alguns rios saem mundos, dizem,
de outros, espessas fronteiras. Casamatas e baterias. Ou homens infestados de piolhos. As pontes são projectos de uma intensa vigilância, e geram tantos heróis que basta a falta de um nome para os acolher, uma laje de mármore, o fingimento de uma candeia de azeite, alguns pardais que saltitam frenéticos e deixam os excrementos na pedra luzidia. Um hino torna as bocas uníssonas. Horst-Wessel-Lied.
Inacabadas



Tiago Araújo, Respirar debaixo d'água (Lisboa: Averno, 2013)
Os números


este é o livro de minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que gerou
tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que colecionamos em álbuns de
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
que passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo de séculos.
e agora, na idade adulta, é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.