O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 13 de julho de 2014

Antologia de viagem: Portugal, 2014

Estou em Portugal e estou lendo um pouco da poesia portuguesa contemporânea, que tão raramente chega ao Brasil. Escolhi trechos apenas de livros (no caso de Fernando Guerreiro, uma plaquete), e publicados neste ano e em 2013. Tive de descartar a poesia visual, tendo em vista as limitações de formatação.
Os dados de nascimento dos autores, quando disponíveis, tirei-os da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (http://www.dglb.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores.aspx).

Alberto Pimenta (Porto, 1937), Autocataclismos (Lisboa: Pianola, 2014)
48


Jack Sparrow                        o pirata das Caraíbas disse
com a chave na mão             nem todo o tesouro é ouro e prata
avançou                                o cinto de castidade era de ferro



Fernando Guerreiro (Lisboa, 1950), (quase) Anjos (Grisu: Guimarães, 2014)
(fragmento)


Não bastava uma, teria
de morrer repetidamente
para que, pelas palavras,
os cotos se tornassem asas
e ainda sangrentos, com
o osso à vista, arfassem
por guelras que só
uma longa visão do horror
prepara para o inferno
convulso dos sentidos.



Manuel de Freitas (Vale de Santarém, 1972), Ubi Sunt (Lisboa: Averno, 2014)
La Rêveuse

para a Adília Lopes


Houve um tempo em que me apetecia escrever bem, enaltecer a dor.

Depois, fui-me esquecendo da dor e das palavras certas.

Agora é mais simples: despeço-me.




Miguel Cardoso, Os engenhos necessários (Lisbos: &etc, 2014)
Com um ligeiro clic de chaufagem aberta (excerto)


tal como Paul Klee recordava
como a avó esmagava
as maçãs lembrando
a cadência do hálito
ou Thoreau percorrendo os campos
da Nova Inglaterra e anotando os fenómenos
na ordem em que pela
primeira vez são observados,
escrevendo por exemplo os dias
exatos da floração
como lâminas em sequência magnética

Poderia tentar algo assim
com os castanhos em flor da ferrugem
mas perderia as contas ouviria vozes
e mastigaria por certo demais
as maçãs lembradas
até chegar ao ponto de papa



Rosa Maria Martelo (Vila Nova de Gaia, 1957), Matéria (Lisboa: Averno, 2014)
Branco


Interessa-me o inconcreto branquejar
da roupa no estendal (o branco, não)
mais do que o peso da água, ver
que o nada não se vê na água a evaporar

na luz do tecido em contraluz interessa-me
o vazio suspenso do vazio
quando a roupa enforma ao vento e sobe
no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.



Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado (Alambique, 2014)
Moribunda


Deitada imóvel de olhos muito abertos
a suar o pavor de ter existido




Rui Nunes (Lisboa, 1945), Uma viagem ao outono (Lisboa: Relógio D'Água, 2013)
(fragmento)


O Reno é um rio que não acaba,
segrega o medo, segreda-o,
na tua insônia, a voz da mãe
é uma paisagem desolada.
:
De alguns rios saem mundos, dizem,
de outros, espessas fronteiras. Casamatas e baterias. Ou homens infestados de piolhos. As pontes são projectos de uma intensa vigilância, e geram tantos heróis que basta a falta de um nome para os acolher, uma laje de mármore, o fingimento de uma candeia de azeite, alguns pardais que saltitam frenéticos e deixam os excrementos na pedra luzidia. Um hino torna as bocas uníssonas. Horst-Wessel-Lied.
Inacabadas



Tiago Araújo, Respirar debaixo d'água (Lisboa: Averno, 2013)
Os números


este é o livro de minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que gerou
tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que colecionamos em álbuns de
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
que passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo de séculos.
e agora, na idade adulta, é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.


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