O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 13 de julho de 2014

#NãoVaiTerCopa 2 e #PresosDaCopa

Para mim, não importa muito se a presidenta tergiversou ou não entendeu mesmo o significado de não vai ter Copa, que, para ela, teria sido "enterrado". Importa é apontar e denunciar a estratégia oficial de falsear ou reduzir o sentido do movimento. 
Para a presidenta, ele teria sido enterrado porque a Copa aconteceu (estava acontecendo) e padrões mínimos de eficiência estavam sendo atingidos. Não é disso que se trata, porém, e a maliciosa estratégia foi fazer deslizar para o terreno da gestão e para o discurso da eficácia o que se punha no terreno da política e das práticas e discursos da liberdade e da igualdade.
A Copa que, com efeito, não houve, foi a da propaganda governamental: um torneio de congraçamento e de caráter popular, sem ônus para os cofres públicos. O ônus ocorreu, para lucros privados e prejuízos públicos, e o caráter "popular" do evento foi negado pelo próprio governo, ao comentar as vaias e os xingamentos de baixo calão que a Presidenta recebeu do público no jogo de abertura (e em outras ocasiões, também na final). Esse público seria a elite do país, e é ela que insultaria a chefe de governo...
Não era realmente, boa parte da alta elite está fechada com o governo (como lembrou Alvaro Bianchi). Porém, de fato, o Estado brasileiro promoveu uma elitização dos estádios, acabando, por exemplo, com setores de ingressos mais baratos, como a "geral" do Maracanã.
O #NãoVaiTerCopa denunciou essa situação, e foi tão bem-sucedido que pautou o discurso da Presidenta da República, da FIFA, e gerou, provavelmente por sua radicalidade democrática, a hostilidade de políticos de todas as cores do espectro político. Radicalidade, creio, por ter expressado a revolta contra a violação generalizada de direitos humanos ocorrida para que a Copa das Empreiteiras acontecesse, revolta que não tem recebido nenhuma outra resposta institucional, visto que não há Justiça, a não ser a repressão. O próprio Judiciário instrumentalizou-se, com plantões especiais, para continuar a funcionar como um prolongamento da Polícia, que está a agir tão ilegalmente quanto nas manifestações de 2013. Indico alguns textos agora:
Um levantamento muito mais completo pode ser estudado no Portal Popular da Copa e das Olimpíadas, que congregou bastante material. Eu deveria escrever sobre o papel da Lei Geral da Copa, ou a Lei de Ocupação do País pela FIFA com as forças do próprio país, mas não posso fazê-lo agora.
A respeito do paralelo com 2013, transcrevo parte do relato do professor Pablo Ortellado sobre manifestação em junho deste ano, em São Paulo: 
[...] não há duvida que as garantias dadas pelo Governador Geraldo Alckmin e a presidenta Dilma Rousseff de que o direito de manifestação seria respeitado não foram cumpridos.
Foi uma das manifestações mais violentamente reprimidas que já vi. E como a ação repressiva foi articulada pelo governo estadual e federal, podemos esperar aquele silêncio político que uniu petistas e tucanos na repressão ao MPL durante a luta contra o aumento das passagens em 2013.
Escrevi "Copa das Empreiteiras", o que é impreciso, pois elas não estão em competição, e não pode ser encarado como simples jogador aquele que é dono da bola e do campo, além de financiador do árbitro. Sei que muitos denominaram o evento de Copa das Tropas, o que ele também foi, mas para que finalidade foram mobilizadas as forças de segurança? Garantir a segurança dos investimentos da FIFA e daquelas empresas, que foram as grandes vencedoras. Indico esta reportagem de Adriana Belisário para a Agência Pública, "As quatro irmãs". Foram essas empresas as vencedoras, que se destacam tanto como financiadoras de campanhas eleitorais quanto como vencedoras de concorrências públicas, cujos valores são sempre multiplicados pela força de aditivos.
Para a garantia desses investimentos, a violação generalizada de direitos humanos deu-se em diversos âmbitos: o direito à moradia, com remoções forçadas e ilegais (ocorridas inclusive em cidades cuja Lei Orgânica proíbe a remoção de favelas, como é o Rio de Janeiro; ver, a propósito, o filme Domínio Público) gerou reações que foram respondidas com a repressão a outros direitos: as liberdades de manifestação, de expressão, de imprensa (principalmente a pequena imprensa, que não pode esperar solidariedade alguma, naturalmente, dos oligopólios da comunicação), a proibição de prisão arbitrária, o direito à integridade física, e também os direitos e prerrogativas profissionais dos advogados.
Quero relembrar o que a psicóloga Camila Pavanelli "#NãoVaiTerCopa não é 'torcer para que tudo dê errado' – é reconhecer que aquilo que mais importa já deu absurdamente errado. Que obras foram superfaturadas. Que pessoas foram ilegalmente removidas de suas casas. Que a FIFA deitou e rolou."
Nesse sentido, #NãoVaiTerCopa significou nada menos do que #NãoTemDemocracia.
Participei de poucos eventos relativos à Copa porque estava muito envolvido, mesmo em junho, com a rede Índio é Nós; no entanto, pude testemunhar que a polícia militar tentou invadir uma atividade do Comitê Popular da Copa e do Comitê pela Desmilitarização da Polícia em que eu era um dos palestrantes sob o pretexto de que ocorreria uma "atividade política".
A persistência das ações ilegais do Estado brasileiro contra seus cidadãos mostra que a Copa foi mais um triste capítulo na história da democracia brasileira. Persistência alimentada pelos velhos hábitos do Judiciário: o único preso pelas manifestações de 2013 foi alguém que nem mesmo delas participava, mas era o alvo preferencial do sistema penal brasileiro: o negro e pobre Rafael Braga Vieira, "armado" com perigosíssimo desinfetante.
Alguém, talvez ingenuamente, poderia indagar se as prisões arbitrárias (como foi a de Vieira, ratificada pelo Judiciário) são políticas, ou se há presos políticos no país. Não vejo como negá-lo. Explico.
As prisões ilegais têm como efeito a limitação do que Charles Tilly chama de repertório de ação coletiva dos movimentos. Nesse repertório, estão passeatas, debates, marchas - as possibilidades de ação coletiva para mobilizar a ação e a opinião públicas.
Tal ação coletiva é política, e é ela que está sendo reprimida. Quando são detidos manifestantes que são considerados "líderes" de movimentos (e criminalizados por parte da imprensa que é sócia desses abusos), não é abusivo caracterizá-los como presos políticos. Ainda mais porque são detidos em razão do exercício (ou da possibilidade desse exercício, no caso de prisões que antecedem as manifestações) de direitos democráticos.
O cerceamento policial-midiático-judicial do repertório legal de ação coletiva é um desastre do país. O inconformismo, recalcado, se não pode manifestar-se de forma legal, virá à tona de outra maneira, mesmo ilegal. Não me admira que os black blocs tenham irrompido no espaço público brasileiro em 2013, quando ficou claro que o ímpeto democrático dos governos parou na manutenção de políticas de auxílio social, enquanto outras áreas entram em franco retrocesso, como os índios e os quilombolas bem podem confirmar.
Como escrevi no primeiro #NãoVaiTerCopa, um poeminha em que se calculava o que seria o evento (repressão, fratura, mordida etc.), os governos bem podem dizer: "estamos para o país assim como a fratura exposta está para o esporte".

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