O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Desarquivando o Brasil CI: Audiência sobre a tortura, na Comissão da Verdade do Estado de SP

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo realizará uma audiência na sexta-feira próxima, seis de fevereiro, uma audiência que apresentará pesquisa, feita por diversas organizações e entidades (Conectas, IBCCrim, Pastoral Carcerária, NEV/USP, ACAT Brasil), da jurisprudência sobre tortura entre 2005 e 2010 em Tribunais de Justiça brasileiros.
Não se trata do período da ditadura militar, porém, como será apresentada em uma Comissão da Verdade, creio que os pesquisadores farão uma conexão com o passado recente.
Tendo em vista que a prática da tortura não era um acidente, e sim parte da própria substância da ditadura militar, a qual não poderia manter-se sem a censura, graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade, recordo aqui alguns exemplos dessa prática.

Um caso é este ofício do II Exército sobre o guerrilheiro, então na organização clandestina ALN (Ação Libertadora Nacional, mas ele esteve em outras, como a Política Operária e a Vanguarda Popular Revolucionária) Eduardo Collen Leite, o Bacuri, capturado em 21 de agosto de 1970 e mantido preso ilegalmente, sob tortura, até a execução extrajudicial. Ele estava sendo entregue à Operação Bandeirante (Oban) "para as devidas providências", no eufemismo desta comunicação oficial.
Este documento não está reproduzido na biografia escrita por Vanessa Gonçalves (Eduardo Leite Bacuri. São Paulo: Plena Editorial, 2011). Ele é interessante, pois deixa praticamente explícita a prática de tortura:
4. Conforme suas declarações, possivelmente um sequestro de autoridades será realizado brevemente a fim de libertá-lo.
5. Considerando a possibilidade expressa no ítem [sic] anterior, o Comando do II Ex recomenda que sejam tomadas as devidas providências, no sentido de evitar possíveis explorações sobre seu estado físico.
Tanto pior para os que acham que "Existe um silêncio total a respeito da tortura nos milhões de interrogatórios, relatórios e informes produzidos pelo DOPS em nível nacional".

Trata-se de um documento do governo sobre um preso político. Houve também o oposto: mais de uma vez, os presos políticos lograram fazer denúncias das violações de direitos humanos sistematizadas pela ditadura militar. Já escrevi neste blogue e alhures sobre uma carta dos presos em São Paulo, em 1975, o "Bagulhão".
Esta é outra carta dos presos no Rio de Janeiro, terminada em 24 de novembro de 1976, dirigida ao Conselho Federal da Ordem dos advogados do Brasil, como os de São Paulo também fizeram. Já na apresentação, que reproduzo ao lado, deixam claro que "Assistimos de 65 para cá uma generalização e uma extrapolação crescente da repressão e da tortura por parte dos governos militares para fazer frente a qualquer tipo de Oposição."
Com efeito, a tortura não era destinada apenas aos guerrilheiros (veja-se, por exemplo, o deputado Rubens Paiva, assassinado pelo regime sem ter nunca pego em armas).

Os autores da carta viam a tortura como "sustentáculo da Justiça Militar", no sentido de "peça básica nas montagens dos inquéritos que vão instruir os processos da Justiça Militar", O Brasil: Nunca Mais chegou à mesma conclusão.
Os presos acrescentam: "A Justiça Militar funciona apenas nessa medida: que os processos andem e que sirvam para as condenações politicamente necessárias para o regime, independente de sua base jurídica e da evidência real das provas. Daí porque a tortura [é] o elemento necessário ao ao funcionamento da Justiça Militar."
A carta passa a descrever, sem, no entanto, a minúcia do "Bagulhão", as formas de tortura.

É importante lembrar de denúncias como esta, especialmente neste momento em que a Justiça Militar acusa a Comissão Nacional da Verdade (que já não pode mais responder, pois foi extinta com o fim de seu mandato) de ter cometido erros no relatório final ao indicar a relação dessa Justiça com os aparelhos de repressão. Em peculiaríssima nota que essa Justiça divulgou no fim do ano passado, ela sustenta que "assegurou os princípios garantistas e os direitos humanos" durante a ditadura militar.
Vejam, na conclusão, que os presos políticos (incluo nesta nota todas as assinaturas desta cópia da carta, guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, assim como os outros documentos aqui reproduzidos) chamam a tortura e a Justiça Militar de "duas faces de uma mesma moeda", e veem nessa Justiça especializada o papel de dar legitimidade ao "Estado autoritário" por meio do direito de exceção vigente, sem deixar de violar as normas do próprio regime "quando os interesses políticos do sistema assim o exigem".
"Denunciar tal Justiça e as vinculações com a tortura é, portanto, fundamental". E os presos mostram-se céticos às iniciativas de reforma do Judiciário tomadas pela própria ditadura militar, sem a democratização do país. Creio que estavam corretos nessa avaliação.













A demanda pelo fim da tortura não era exclusiva dos presos políticos. O "Bagulhão", como já escrevi, denunciou as torturas e execuções dos presos comuns e o Esquadrão da Morte, cujo modus operandi espalhou-se por todo sistema de repressão. Lembremos do professor francês de tortura e execução, o General Paul Aussaresses, que afirmou que seu amigo General João Figueiredo, na época chefe do serviço Nacional de Informações (SNI), chefiava o Esquadrão da Morte.
E o primeiro tipo de tortura descrito no "Bagulhão" (reproduzo essa passagem da carta ao lado) foi o pau de arara, cuja origem estava na escravidão, como um dos tratamentos cruéis e degradantes aplicados contra os escravos.
Não à toa, como escrevi em outras notas, os movimentos negros na época da ditadura militar aparecem protestando contra a violência policial, ao lado das prostitutas e homossexuais, ainda alvos preferenciais do Estado no Brasil de hoje. Relembro o rapper Emicida, preso na significativa data de 13 de maio de 2012 por causa destes versos: "Tevê cancerígena aplaude prédio em cemitério indígena./ Auschwitz ou gueto? Índio ou preto?/ mesmo jeito, extermínio [...]".

A reivindicação pelo fim da tortura foi assumida por vários agentes sociais durante a ditadura militar, inclusive os movimentos pela anistia. Em novembro de 1978, realizou-se o Congresso Nacional pela Anistia, organizado pelo Comitê Nacional pela Anistia, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.
No Manifesto do Congresso, afirma-se que "O Brasil é hoje uma nação dividida", aprofundou-se "a distância entre o regime e o povo". O povo brasileiro, afirmava-se, estava marginalizado política, econômica e socialmente.
O manifesto, de 5 de novembro de 1978, terminava com a exigência de "ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA", como era de praxe nos documentos do CBA, mas não se limitava a isso, no que fazia muito bem.
De fato, outras condições eram também necessárias para a democratização do país. Antes da exigência de anistia, três delas eram reivindicadas pelo CBA e, devemos ressaltar, o Brasil de hoje ainda não logrou atender completamente a nenhuma delas:

- fim da legislação repressiva, inclusive a revogação da lei de segurança nacional e da insegurança dos brasileiros;
- desmantelamento do aparelho de repressão política e fim da tortura;
- liberdade de organização e manifestação;


Não acabaram os inquéritos políticos visando a repressão às liberdades de organização e de manifestação, bem como a criminalização dos movimentos sociais. O inquérito criminal contra os 23 no Rio de Janeiro é um clamoroso caso recente, e bem revela o tipo de resposta do Estado brasileiro às demandas por direitos e democracia.
As manifestações continuam a ser espionadas. Ao lado, reproduzo parte de relatório do DOPS/SP, escrito em 6 de novembro de 1978, sobre o Congresso Nacional pela Anistia. É curioso ver Mário Pedrosa caracterizado como "crítico político". Certamente o investigador não sabia de quem se tratava.

Já escrevi diversas vezes, a partir da base documental, sobre o negacionismo histórico perpetrado pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010, ao julgar a ADPF 153, sobre a lei de anistia. Ao contrário do que Ministros dessa Corte afirmaram, a campanha pela anistia tinha como objetivo "julgar judicialmente todos os agentes que praticaram torturas durante estes longos 14 anos da ditadura militar", como o agente do DOPS/SP deixa claro na última página do relatório.
Trata-se, enfim, do sucesso da transição brasileira sob o ponto de vista dos torturadores e assassinos do regime, e o fracasso democrático: as aspirações do movimento pela anistia, quase quarenta anos depois, ainda não se realizaram; não somente os torturadores não foram julgados, como a lei de segurança nacional continua em vigor (a dos tempos do governo do General Figueiredo, e mais legislação repressiva é anunciada, desta vez sob o pretexto de combate ao terrorismo), como as liberdades de organização e de manifestação são seguidamente reprimidas.
Alonguei-me nesta nota. Vejam abaixo o cartaz da audiência do dia 6 de fevereiro de 2015 e a lista dos participantes:



A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" realizará na próxima sexta-feira (6/2) uma audiência pública para debater o tema: Tortura. O evento faz parte do Ciclo de Debates "O Estado da dor". Os convidados vão falar sobre a pesquisa "Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)". 

O levantamento será apresentado por responsáveis pelo estudo que foi realizado pela Conectas, IBCCrim, Pastoral Carcerária, Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e ACAT Brasil. 

Participantes:

Adriano Diogo - presidente da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

Amelinha Teles - coordenadora da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

Representante da Conectas Direitos Humanos 

José de Jesus Filho - membro da Associação para Prevenção da Tortura (APT)

Nathércia Magnani - mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Advogada.

Audiência Pública sobre Tortura: Ciclo de debates "O Estado da dor"
Data: 
06/02
Horário: 14h. Local: auditório Paulo Kobayashi, andar Monumental
Endereço: Av. Pedro Álvares Cabral, 201, São Paulo-SP
A audiência terá transmissão ao vivo online pelo link:http://www.al.sp.gov.br/noticias/tv-alesp/assista/ (selecionar o auditório Paulo Kobayashi)

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