O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Crítica de poesia brasileira contemporânea, Iumna Maria Simon, Alberto Pucheu

Os alunos da Pós-Graduação em Letras da USP, por meio da professora Ana Paula Pacheco, convidaram-me para um debate sobre crítica de poesia brasileira contemporânea com Iumna Maria Simon e, na mediação, Betina Bischof, também docentes da FFLCH. Ele ocorreu no último dia 29, no âmbito do VII Seminário de Pesquisa dos Alunos de Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, que termina na próxima sexta-feira (cliquem para ver a programação).
Preparei uma fala com base nas respostas que dei a uma enquete que Tarso de Melo fez sobre poesia contemporânea. No fim, li com Fabio Weintraub uma seção de um poema do Cálcio. Iumna Maria Simon resumiu (usando para isso mais do que o dobro do tempo previsto para a exposição) o (cito das minhas anotações tomadas no calor da hora) "itinerário das formulações críticas" que ela tem feito, com foco no que chama de retradicionalização frívola, "novo regime em que entrava a poesia brasileira embalada pelo pluralismo liberal" e em que "o subdesenvolvimento é recalcado como problema estético e político".
Como outras vezes, ela criticou Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz por recalcarem referências ao "real, à experiência, ao presente" numa "recombinação desencantada de erudição". Criticou Paulo Henriques Britto com sua "ideologia da forma". E citou declaração de Alberto Pucheu dada a Rodrigo de Souza Leão em 2002:
Algumas palavras de muitos escritores atravessam as minhas. [Thomas Mann, Fernando Ferreira de Loanda, Maiakóvski, Juan Luis Panero, Dogen Zengi, José Severiano de Rezende, Parmênides, Machado de Assis e Aristóteles quiseram caminhar pelas páginas desse último livro. Sou levado também a exercer diálogos com outros poemas ou livros ou quadros.] Necessito de frases alheias, de obras alheias, como de comida... e elas vão deixando de ser alheias... vão sendo minhas... e eu vou deixando de me ser... vou sendo elas... as frases ganham o cheiro de minha carne, o percurso de meus intestinos e o pensamento que me quer escrever... eu apreendo cheiros alheios, não experimentados até então. São como membros que me ampliam para o mundo, as frases. Utilizo os outros apenas quando não podem deixar de ser um terceiro entre eles e mim. Criamos juntos um terceiro corpo, em cuja invenção me descubro, mais do que sozinho. Assim, como em Rimbaud, e para sempre: Eu é um outro.
Pus entre colchetes o trecho suprimido na citação de Simon. Ela acusou toda essa passagem de não passar de uma grande confusão teórica, e que Pucheu faria algo bem diferente de Rimbaud, caindo em um "elemento multiplicador da unidade do autor que liquida dentro de si a existência do conflito". Ela apontou também uma "confusão entre heterogeneidade de dicções e pluralismo político"; de fato, algo que se vê por aí.
Apesar de o tempo do evento ter quase se esgotado após a exposição, houve algumas perguntas, e Simon pôde esclarecer que nunca dissera que a retradicionalização impedisse a "feitura de bons poemas"; Cláudia Roquette-Pinto seria o exemplo.
No entanto, eu tinha que discordar do método crítico de citações casuísticas para compor panoramas ou perfis literários, desta vez empregado com a entrevista de Alberto Pucheu. Afirmei que Simon não fez jus àquele trecho, que diz respeito a uma poética que ele formou desde os anos 1990, desde Na cidade aberta (1993), muito diferente do que os poetas que ela usualmente critica estavam fazendo, um projeto que me parecia então, e continua me parecendo, único na poesia brasileira. Falei também da concepção de crítica desse autor (cuja ensaística eu não aprecio, porém), mas a hora se avançava.
No semestre passado, pediram-me uma resenha de Mais cotidiano que o cotidiano, livro de poesia que Alberto Pucheu publicou em 2013, para um portal de crítica de poesia que nunca veio à luz, e de que não tive mais notícias. Talvez ainda a publique em algum lugar. Como nela abordo o que falei na USP, respondendo no curto momento de debate, deixo aqui um curto trecho (mais longo, porém, do que o espaço que os jornais diários concedem a resenhas), o seu início:





Mais poético do que o poético...

Pádua Fernandes


... que bem pode ser um dos sentidos do título Mais cotidiano que o cotidiano, do último livro de poesia de Alberto Pucheu, publicado pela Azougue em 2013, uma vez que todos os seus livros, ao menos desde sua segunda estreia, em 1993, buscaram utilizar poeticamente materiais da linguagem cotidiana. Não deveríamos esperar menos do autor que, em Escritos da indiscernibilidade, havia dito que “a linguagem, por fundamento e definição, é poética, mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”, trecho destacado por Renato Rezende em resenha na qual escreveu que Pucheu “expande os limites do poético”[1].
É certo que essa expansão integrava o projeto do modernismo no Brasil, como escreveu Miguel Saches Neto na apresentação do livro de 2013, e (acrescento) pode ser identificada em autores do século XIX. Resta ver como Pucheu a realiza, e que tipo de novidade sua literatura continua a trazer.
Entendo que essa expansão pode-se dar, nesta obra, por meio: a) do eu lírico multiplicado e/ou alheio (especialmente pelo que chama de “arranjos”); b) do desguarnecimento de fronteiras (para usar uma expressão cara ao poeta) entre poesia e outros discursos, operação que é, em si, poética; c) da dissolução do eu na natureza e no corpo; d) da busca do inarticulado.
Essas quatro linhas da poesia de Pucheu, que se cruzam e se recombinam, já apareciam com graus variados em livros anteriores. Mais cotidiano que o cotidiano mantém os arranjos, poemas que o autor afirma serem totalmente composto por recortes de discursos alheios e que aparecem com esse nome desde A vida é assim, justamente na parte homônima deste último livro.
Originalmente, a seção desta obra de 2001 fazia significativa referência a sua segunda coletânea (e estreia oficial), a plaquete Na cidade aberta, mas a referência foi suprimida na reunião de quase todos os seus primeiros livros de poesia, A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Deve-se lembrar que A cidade aberta tinha como epígrafe exatamente um “poema colhido na boca de um transeunte na marina da Glória”[2] e terminava com poemas produzidos a partir de falas recolhidas na cidade, método já antigo na poesia de Pucheu.
Também suprimido na poesia reunida foi o significativo posfácio a A vida é assim escrito pelo grande poeta português Alberto Pimenta, que bem viu nessa poesia “um memento da liquidação lenta do eu, ‘tornado consciente do arrepio da própria limitação e finitude’ (Adorno)”[3].
O uso de frases alheias, retiradas do cotidiano das ruas, dos meios de transporte poderia ser uma forma de o poeta, a partir de seus materiais, apresentar a vida tal como ela é, se isso fosse possível, e de dizer, pelo seu próprio modo de produção, que “a vida é assim”. De certa forma, é viável fazê-lo, mas apenas por meio de uma invenção, e nisso temos a poesia.
Na publicação anterior ao livro do poema que se tornou, em A vida é assim, o “Arranjo para mensagens eletrônicas” (que seria um arranjo de frases da correspondência eletrônica passiva do poeta), temos um curioso adendo que não foi incluído no livro de 2001, tampouco na poesia reunida:

Caros amigos, resolvi fazer um poema, quero dizer, um arranjo, com fragmentos de mensagens eletrônicas recebidas por mim nesses últimos dias. Uma das coisas que mais me provocam é experimentar o quanto de «não-poético», de cotidiano, de ordinário, a poesia consegue suportar. Talvez se lembrem de «na cidade aberta nº 3» e de «Poema para a maior audiência do país». O primeiro, com vozes de vendedores ambulantes que circulavam no trem e com o aviso de seus destino e horário de partida. O outro, uma disposição de frases que foram ditas no programa do Ratinho por diversas pessoas [...] Essa escrita, composta apenas com frases alheias, vem me perseguindo desde o começo. Descubro, com ela, uma possibilidade da qual só sou capaz enquanto arranjador, afrouxando, assim a unidade do eu lírico, a subjetividade daquele que escreve e a força do princípio conjuntivo. [...][4]

Essa parte do texto possui um caráter demasiadamente explicativo, o que deve ter levado a sua não publicação no livro. No entanto, é interessante lê-la pelo que o poeta escolheu falar dos próprios procedimentos, e pelo que ela revela a contrapelo do autor. Temos aí uma tensão entre ser ninguém (“quem escreve jamais deixará de ser ninguém”[5], escrevera em Escritos da frequentação, de 1995) e entre uma superafirmação da subjetividade do poeta arranjador, que, afinal, manipula os discursos alheios. A autoria, no entanto, sempre está posta: na escolha da matéria, na seleção dos elementos e na sua disposição.
Creio que se pode aplicar à poesia de Pucheu o que o ensaísta Pucheu explica da poesia de Leonardo Gandolfi:

[...] em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada[6].

Apesar da tentação homonímia, sem dúvida a noção de arranjo musical é pobre para pensar a questão; ele é mais do que um arranjador. Poder-se-ia inicialmente pensar que temos aí mais o poeta como regente do que como compositor, e que o regente, de qualquer forma, cria sua própria interpretação do material dado. No entanto, a subjetividade envolvida na criação dos arranjos de Pucheu é muito maior do que aquela que um maestro pode dar a uma composição alheia, pois o material com que o maestro lida já era considerado musical, porém as frases que escolhe não eram necessariamente poesia antes de ele lhe dar o seu tratamento de “arranjador” – que é, na verdade, um tipo de poeta e, por isso, mostra-se análogo ao compositor.
É certo que na tendência forte a uma intertextualidade explícita com textos poéticos na poesia brasileira desde os anos 1990 temos, certas vezes, algo parecido com esse procedimento do arranjo. No entanto, esses outros poetas com um emprego forte da intertextualidade, em geral, estão presos ao gênero literário e raramente vão para as falas das ruas; preferem, muitas vezes, discursos mais nobres, mais consagrados, sem se guiar por falas de outra extração, mais cotidiana, sem atender à divisa que Pucheu escrevera em Ecometria do silêncio: “se inclassificável, é poesia[7]. Ele é capaz de citar ao mesmo tempo Aristóteles e vendedores de bananada, mais ou menos como, na primeira metade do século passado, Varèse podia colocar sirenes no meio do discurso musical.


[1] REZENDE, Renato. Dois poetas vigorosos de nosso tempo. O Globo. Caderno Prosa e Verso, 31 jul. 2004.
[2] PUCHEU, Alberto. Na Cidade Aberta. Rio de Janeiro: UERJ, 1993, p VI.
[3] PIMENTA, Alberto. ...Assim é também a poesia. In: PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 58.
[4] PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000, n. 1, p. 85.
[5] PUCHEU, Alberto. Escritos da frequentação. Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995, p. 16.
[6] PUCHEU, Alberto. Apoesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014, p. 112.
[7] PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 41.



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