O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sequestro de Voltaire pelo Congresso Nacional e o projeto teocrático de Daciolo

Já escrevi antes sobre a PEC teocrática do deputado federal Daciolo, ex-PSOL-RJ, que deseja alterar o parágrafo único do artigo  artigo da Constituição da República para "Todo o poder emana de Deus, que o exerce de forma direta e também por meio do povo e de seus representantes eleitos".
Em vez da soberania popular, o nobre deputado federal, expulso de seu partido após essa e outras medidas retrógradas, deseja a soberania divina, com atuação direta de "Deus" no governo brasileiro - um deus bem fraco, nota-se, pois precisa de autorização constitucional para agir...
Muitos deputados, inclusive de partidos que são considerados de esquerda, assinaram o projeto para que ele pudesse ser apresentado. Alguns se arrependeram da assinatura, mas já era tarde. O projeto segue, e já recebeu um parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, assinado pelo deputado Pastor Eurico (PSB/PE) em sete de outubro deste ano.
O Pastor provavelmente teve como sua ação mais marcante no Congresso Nacional a grave ofensa à apresentadora de tevê Xuxa; felizmente, neste último caso, foi desautorizado pelo seu partido. Na apreciação do projeto de Daciolo, é o direito constitucional o que ele ofende: o parecer é uma peça sucinta (4 páginas, uma quinta para a assinatura), sumária e indigna da caracterização como parecer, indigna também do caráter oficial que o documento formalmente detém.
O Pastor passou muito ligeiramente pela questão das cláusulas pétreas, evidentemente violada (como escrevi) pelo projeto teocrático, e se escorou na falácia etnocêntrica da "matriz cultural" do povo brasileiro, usando até o Cristo Redentor como paralelo arquitetônico da PEC...
A referência monoteísta da PEC ao "Deus" flagrantemente não vem das religiões indígenas e africanas, que, apesar do que o Pastor deseja, também integram a "matriz cultural" do Brasil. Sabemos que diversas vezes o Estado brasileiro buscou apagar e reprimir, por meio de políticas etnocêntricas, as culturas desses povos, em nome da "matriz" europeia e cristã; sabemos também que a invocação da "matriz cultural" é usualmente feita, no "debate" político, exatamente para invisibilizar e reprimir culturas, para apagar diversidades, em prol dos dominantes. É, na verdade, um argumento contrário aos direitos culturais, e dessa forma ele está sendo empregado por esse Pastor do PSB.
O projeto teocrático, etnocêntrico e antidemocrático de Daciolo, se aprovado, seria mais uma iniciativa nesse sentido, profundamente colonizadora, e, possivelmente, com consequências não apenas no plano imaginário: os cristãos que perseguem os cultos afro-brasileiros passariam a fazê-lo dizendo-se autorizados constitucionalmente...
O parecer, como sói acontecer no parlamento brasileiro, revela também uma prática legislativa inimiga da inteligência, não só pela sua elaboração simplória e sua argumentação rasa, mas pelo culto às citações ornamentais, típicas do medalhão. Entre elas, encontra-se o autor iluminista Voltaire (!), escolha no mínimo inesperada para fundamentar uma proposta teocrática.
Voltaire (1694-1778) não era ateu; mas era anticlerical e crítico da Igreja Católica, e não defendia politicamente a soberania divina. Pelo contrário, no século XVIII, era considerado um herético, foi incluído no Index Librorum Prohibitorum (lista, no passado obrigatória, de autores que os católicos não devem ler), e proibido pela coroa Portuguesa, o que incluía o Brasil. Leio no artigo de Luiz Carlos Villalta no primeiro volume da História da Vida Privada no Brasil que, no final do século XVIII,


Na medida em que trazia consigo ideias revolucionárias, o francês era geralmente perigoso para os habitantes da Colônia. Na Bahia de então, quando estudantes manifestavam o desejo de fazer traduções do francês, viam-se prontamente desaconselhados por seus parentes, pois tal língua era considerada de libertinos, ímpios e ateus.

Vejam algumas das referências a Voltaire no Correio Braziliense, jornal escrito e publicado por Hipólito José da Costa de 1808 a 1822:
Daqui pode coligir-se a injustiça com que tendes confundido o ortodoxo Montesquieu com Helvecio, Voltaire, Baile, e outros muitos, cujas máximas infernais têm promovido a rebelião nos estados, e a perversidade nos costumes. (Resposta a um Opúsculo intitulado -- Os Pedreiros Livres, e os Iluminados, que mais propriamente se deverão denominar os Tenebrosos) - Jan,/jun. 1812

No Rio de Janeiro se imprime um Jornal, cujo título é "O Patriota"; e com o mês de agosto vieram ter-nos à mão algumas traduções impressas no Brasil; e entre outras a Henríada de Voltaire.
Há dez anos, estando a Corte em Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um Jornal o nome de Patriota; e a Henríada de Voltaire entrava no número dos livros que se não podiam ler sem correr o risco de passar por ateu, pelo menos por Jacobino. - Jul./dez. 1813
Voltaire foi contemporâneo do grande terremoto que destruiu Lisboa em 1755, sobre que escreveu o famoso "Poema sobre o desastre de Lisboa", em que ataca Leibniz (como em Candide...), com esta passagem que foi considerada perturbadora:
Um Deus veio consolar a nossa raça aflita;
Nada mudou na terra após a sua visita!
"Foi porque não podia", o sofista nos diz;
Outro arrogante fala: "podia, e não quis:
(Desculpem minha tradução, mas resolvi manter a rima pobre com verbos - pu e voulu - que o autor emprega nos dois últimos versos.) Voltaire suaviza a passagem com um adendo no verso seguinte: "quererá, sem dúvida". Ademais, tomou a  preocupação de qualificar esse pensamento de arrogante e de sofisma. No entanto, está aí a ideia de que ou o Deus não tinha sido capaz de evitar o desastre, que matou "crianças sobre o seio materno", inocentes, ou ele não quis fazê-lo...
As citações poderiam ser incontáveis. Leio no Dicionário Crítico da Revolução Francesa, no artigo que Mona Ozouf escreveu sobre Voltaire, que o contrarrevolucionário Joseph de Maistre afirmou que o filósofo iluminista, se tivesse vivido mais, só teria gostado, justamente, do lado irreligioso da Revolução Francesa.
Que nada da fama de um autor (tão famoso por sua obra literária) tenha chegado a esse Pastor do PSB (afinal, não há ironia no "parecer") parece ser outro dos sinais do nível intelectual do Legislativo no Brasil (alguns talvez questionassem a cultura do congressista preocupado com a "matriz cultural", mas eu não vou fazê-lo).
Não tenho ideia se algum dia as bancadas BBB (Bala, Boi e Bíblia) do Congresso Nacional unirão forças para aprovar esse projeto de um deputado sem partido. Espanta, de qualquer forma, que ele exista e logre gerar até mesmo um parecer favorável. Resta ver se o aprovarão nessa comissão da Câmara dos Deputados.

Um consolo contra as investidas legislativas teocráticas é que o Estado do Rio de Janeiro, de onde vêm alguns dos quadros mais reacionários do pais, está agora chegando à Constituição de 1891, a primeira no Brasil a trazer a separação entre Estado e Igreja. Em cinco de outubro de 2015, o Tribunal de Justiça decidiu que era inconstitucional a lei de 2011 (sancionada por Cabral Filho, com origem no projeto de Edson Albertassi) que obrigava todas as escolas, públicas e  privadas, a terem um exemplar da Bíblia.

Outro consolo (mas triste) é a histórica irrelevância do direito constitucional no país... A mudança no texto talvez não tenha muito efeito... Lembro que Alfredo Buzaid, quando Ministro da Justiça de Médici, ousou dizer em "Rumos políticos da revolução brasileira", discurso proferido em rede nacional em 1o. de abril de 1970 (errado desde o título), em um período de aceleração do genocídio indígena, dos desaparecimentos forçados, das execuções extrajudiciais, das torturas, da censura e da hipocrisia da grande maioria dos juristas, ousou dizer: "É incontestável que o Brasil adota um regime democrático, ao afirmar que os Poderes do Estado emanam do povo".

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