O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXX: Homenagem a César Teles em 26/02



Dia 26 de fevereiro de 2016, isto é, na próxima sexta-feira, será realizada uma homenagem a César Teles (Belo Horizonte, 7 de julho de 1944 - São Paulo, 28 de dezembro de 2015) na Câmara dos Vereadores de São Paulo, às 18:30 h. Ele foi sepultado no dia 29 de dezembro do ano passado, no Cemitério de Vila Formosa, perto de onde foram enterrados clandestinamente pela repressão desaparecidos políticos.
Fui ao velório e vi chegarem diversas coroas de flores e homenagens de entidades e de particulares. A CSP-Conlutas publicou uma nota de pesar, avisando do enterro; no dia 29, o Tortura Nunca Mais-RJ também lamentou o infortúnio bem como o Brasil De Fato. A Folha de S. Paulo, no ano seguinte, publicou um obituário que destaca sua luta pela anistia e pelas Diretas Já. Mário Magalhães também avisou hoje da homenagem. Provavelmente saíram outras notas e matérias, porém não as li ainda.

Na página no facebook sobre a homenagem, já foram incluídas diversas fotos e referências da história deste ex-preso político da ditadura militar. Ele fora sequestrado e levado ao DOI-Codi/SP em 28 de dezembro de 1972 (curiosamente, morreria em um aniversário de sua prisão) com Amelinha Teles, sua companheira, e Criméia Alice Schmidt de Almeida, sua cunhada. Os dois filhos, Janaina e Edson, com 5 e 4 anos, foram sequestrados depois. Os três adultos, nessa época, militavam no PCdoB, e era a época da Guerrilha do Araguaia, em que desapareceu (entre tantos outros) o marido de Criméia, André Grabois. Criméia estava grávida e também foi torturada.
O caso dessa família e de outras em que houve graves violações de direitos contra menores e violência obstétrica cometidas pela ditadura podem ser lidos no livro Infância roubada, publicado em 2014 pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Cito a introdução, escrita por Amelinha, a propósito do filho de Criméia, João Carlos Schmidt de Almeida Grabois: "presa com sete para oito meses de gravidez. Levou choques elétricos, foi espancada em diversas partes do corpo e sofreu socos no rosto. Quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levá-la à sala de tortura, o seu bebê ainda na barriga começava a soluçar." (p. 17).
Nesse mesmo livro, pode-se ler que César "Era ferroviário quando ingressou no Partido Comunista em 1962. César e sua esposa Amelinha eram responsáveis pela imprensa clandestina do PCdoB quando foram presos em São Paulo juntos do dirigente Carlos Nicolau Danielli, no dia 28 de dezembro de 1972. Levados para a OBAN, César, que já era diabético e tuberculoso, devido às bárbaras torturas que sofreu durante dias, entrou em estado de coma e levou muitos dias para se recuperar o que, apesar de seu peculiar bom humor, lhe deixou sequelas que carrega até hoje." (p. 268).

César Teles participou da luta da esquerda clandestina contra a ditadura. Já em 1964, ele estava (com Amelinha e Criméia) indiciado em um IPM em Belo Horizonte sobre "apuração de atividades subversivas no Município de Belo Horizonte (Estudantes Secundários)", como se vê neste trecho de documento do Arquivo Público Mineiro.


Enquanto esteve preso, foi num dos autores do "Bagulhão", longa denúncia contra os torturadores elaborada pelos presos políticos em São Paulo, em outubro de 1975. Tratou-se de uma carta ao presidente do Conselho Federal da OAB com o nome e/ou codinome de 233 torturadores e uma explicação do modus operandi dos agentes da repressão, do sequestro dos opositores até o cumprimento da pena.
A carta foi republicada pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" em junho de 2014. Ele participou do lançamento do livro na Alesp - é o primeiro em pé à direita.



César Teles integrou a campanha da anistia e a das Diretas Já. Mais tarde, participou da criação do Fórum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos em São Paulo, no ano de 2000 (sugiro a leitura do artigo de Janaina Teles, "Memórias dos cárceres da ditadura: os testemunhos dos presos políticos no Brasil").

Há uma entrevista bem interessante dele com Amelinha na Causa Operária TV, publicada em outubro de 2012. Vejam como narram como eles e os familiares de desaparecidos políticos ficaram isolados depois da anistia; a busca pelos desaparecidos era vista pela esquerda como "saudosista" e, pela direita, como "revanchista", como lembrou Amelinha, que viu nisso uma perda de ideais da esquerda, e César acrescentou: "A tal ponto que eles preferiram acumular forças para disputar eleições, e não pra cobrar o que a ditadura fez". Mais adiante, César lembra que "Amelinha foi duplamente perseguida dentro do partido: por causa dos desaparecidos e por causa do feminismo. Ela foi expulsa do PCdoB por ser feminista" em 1987. O casal estava muito à frente da grande maioria da esquerda da época no tocante às questões de gênero e de justiça de transição (esse nome nem mesmo existia), que somente seriam mais compreendidas muitos anos depois - e há quem ainda não as tenha digerido na esquerda...
Vejam ainda a crítica de César Teles sobre a formação da CNV, que não procurou se apoiar no trabalho dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Hoje, sabe-se que grande parte do relatório da CNV teve que se basear no dossiê dos familiares, e os avanços não foram tantos assim em relação ao dossiê.
No vídeo, ele reclama da falta de discussão sobre a Guerrilha do Araguaia no PCdoB e do livro que fez sobre o assunto, que nunca vi.
Um dos marcos do processo de justiça de transição no Brasil foi a ação declaratória que moveu com Amelinha e seus filhos, Janaina e Édson Teles, bem como sua cunhada, Criméia, contra o militar Brilhante Ustra, por ter sido "pessoalmente responsável pelas perseguições e torturas contra os cinco Autores, não só por ter chefiado a famigerada operação OBAN [Operação Bandeirante], e por ter comandado o DOI-CODI do II Exército, mas também, e, sobretudo, por ter praticado pessoalmente os atos de tortura" (cito a petição inicial; grifo do original).
Sustentava com todo acerto a petição inicial, a lei de anistia da ditadura militar não poderia servir de fundamento para beneficiar o réu:
116) A Lei Federal n° 6683/79 (Lei da Anistia) não é impeditivo legal para o conhecimento e julgamento da presente ação, haja vista que referida lei somente concedeu anistia CRIMINAL aos envolvidos no período da ditadura militar, e não garantiu nenhuma salvaguarda em relação às indenizações civis ou mesmo às declarações judiciais, razão pela qual a mesma não pode ser evocada pelo RÉU contra a presente pretensão. 
Mesmo que se considerasse (como o Supremo Tribunal Federal o fez) que se concedeu anistia aos torturadores, ela tinha natureza apenas criminal. Em 2008, a ação foi julgada procedente e Brilhante Ustra foi reconhecido como torturador. Ele morreu em 15 de outubro de 2015, porém, sem nunca ter sido responsabilizado criminalmente.
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" dedicou um capítulo a essa ação e ao processo em razão do assassinato do jornalista Luis Eduardo Merlino um capítulo de seu relatório. Cito-o:
No caso da Família Teles, todos os seus integrantes que viviam em São Paulo, inclusive a irmã do casal Teles, Criméia de Almeida, grávida de quase 8 meses, foram sequestrados e torturados pelo Ustra e sua equipe, no DOI-Codi/SP. Tiveram seus dois filhos, Janaína e Edson Teles, crianças de 5 e 4 anos de idade respectivamente, sequestrados e levados para o DOI-Codi, local onde ficaram durante alguns dias. Além disso, os integrantes adultos foram testemunhas oculares do assassinato sob tortura de Carlos Nicolau Danielli, amigo da família e dirigente do Partido Comunista do Brasil, em 29 de dezembro de 1972.
César Teles, assim como Amelinha, auxiliou na persecução criminal dos autores de crimes contra a humanidade. Seu testemunho serviu para instruir ações do Ministério Público Federal, como a denúncia contra Brilhante Ustra, Alcides Singillo e Carlos Alberto Augusto (conhecido como "Carlinhos Metralha") pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, que continua desaparecido: "[...] o sequestro da vítima foi testemunhado por dezenas de dissidentes políticos que se encontravam presos nas dependências do DOI-CODI-II Exército e do DEOPS/SP, dentre os quais as testemunhas José Damião de Lima Trindade, Artur Machado Scavone, Pedro Rocha Filho, Ivan Akselrud de Seixas, Lenira Machado, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles." César Teles o viu no DEOPS/SP, onde também estava preso.
Os réus chamaram Romeu Tuma Jr. para testemunhar em 2014, escreveu Thais Barreto. A ação, no entanto, foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 2015, tendo em vista sua interpretação da lei de anistia.
Da mesma forma, foi proposta denúncia, pelo Ministério Público Federal, em razão do assassinato de Carlos Nicolau Danielli. O juiz federal Alessandro Diaferia, em 25 de setembro do ano passado, julgou-a improcedente em razão da lei de anistia, num exemplo raro e significativo de celeridade processual: a denúncia havia sido apresentada em 25 de agosto!
O testemunho de César Teles também foi citado em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federa contra a União Federal, o Estado de São Paulo, Aparecido Laertes Calandra (o "Capitão Ubirajara"), David dos Santos Araujo e Dirceu Gravina em razão das graves violações de direitos humanos no DOI-Codi/SP; e em outra ação civil pública, contra a União Federal, Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel. Além da responsabilidade do Poder Público, essas ações pretendem obter que os réus percam seus cargos, reparem o Tesouro Nacional pelo pagamento de indenizações aos parentes das vítimas e repararem os "danos morais coletivos".
César Teles foi testemunha da atuação de médicos torturadores no DOI-Codi/SP: "Os médicos e a ditadura militar", por Aureliano Biancarelli (Revista Ser Médico, do Cremesp, n. 72, jul./set. 2015). E ele é referido algumas vezes no relatório da Comissão Nacional da Verdade. No volume III, nos casos do assassinato do líder do PCdoB Carlos Nicolau Danielli, preso com ele em 28 de dezembro de 1972, e de Edgar de Aquino Duarte. No tomo I do primeiro volume, ele é citado no capítulo sobre tortura, por causa do "telefone": "Davam tapões em meus ouvidos e chamavam a isto de ‘telefone’. Em algumas vezes cheguei a perder os sentidos”; e das queimaduras que sofreu e obrigaram-no a sofrer um transplante de pele.

Espero estar amanhã na homenagem.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A dignidade da tortura e a indignidade das minorias segundo Scalia

Antonin Scalia (1936-2016) morreu. Não vi motivo para lamento. No entanto, o Supremo Tribunal Federal resolveu, descobri hoje, enviar no último dia 15 carta de condolências ao presidente da Suprema Corte dos EUA e mencionar a um suposto "profundo comprometimento com o bem público e com os valores da democracia, da equidade e da dignidade humana" do falecido magistrado.
Decidi, então, escrever esta nota, para mostrar a curiosa forma como ele entendia esses valores igualmente reverenciados pelo Judiciário brasileiro.
Eu não gostava dele como juiz. Outros também não o apreciavam. Mark Tushnet (A Court Divided) escreveu que as "escolhas retóricas" de Scalia demonstravam suas falhas de julgamento, e o que "tom" (agressivo, sarcástico) de suas intervenções o isolava na Corte, bem como escrever que as decisões de seus colegas eram irracionais e não diziam a verdade. Ainda segundo Tushnet, Scalia, antes de ser nomeado por Reagan para assegurar a maioria conservadora na Corte, só um de seus escritos sobre uma questão constitucional havia chamado atenção, e nele afirmava que a ação afirmativa era racista.
Foi o republicano Ronald Reagan que o nomeou, em 1986. Na campanha presidencial, contra o democrata Walter Mondale, a escolha de magistrados para a Suprema Corte foi uma das questões importantes, tendo em vista a idade avançada de muitos dos seus membros. Reagan logrou criar uma maioria conservadora naquele tribunal. 
Já escrevi em mais de um lugar como o originalismo (no sentido de buscar uma adesão estrita ao sentido da Constituição quando foi elaborada ou promulgada) pode servir a esse tipo de agenda, justamente por ser um tipo de ativismo judicial; nesse sentido, concordo com David Thomas quando argumenta que o originalismo não é uma forma de restringir a atividade judicial, por tentar "reconstruir o que pessoas que viveram em uma época anterior pensaram sobre o seu mundo". 
Como existe a história, essa reconstrução não é realmente possível. Ela é, em geral, empregada politicamente como pretexto para transformar a sociedade segundo ideais contrários aos direitos humanos (é possível que o que se chama de fundamentalismo religioso não passe disto). Afinal, mesmo que fosse possível isolar o "sentido original" de uma lei, como se os significados não fossem construídos e múltiplos tanto antes quanto agora, aplicar "originalmente" uma norma do fim do século XVIII a uma sociedade do século XXI poderia gerar efeitos muito diversos, e a opostos, do que a aplicação da norma em sua época "original". A interpretação jurídica sempre necessita da consciência da historicidade.
Dworkin, comentando em Is democracy possible here? as nomeões para a Suprema Corte que o segundo Bush havia feito, temia que, com os novos juízes e os antigos e "muito conservadores" Scalia e Clarence Thomas, a Suprema Corte iria não só atacar direitos individuais, como lograr uma "mudança revolucionária na balança de poder entre instituições de governo", aumentando os poderes dos Estados em relação ao Congresso e fortalecendo, de forma inédita, a "autoridade soberana" da administração de Bush.
Acho que nem todos os temores do filósofo se confirmaram, mas avalio que ele estava certo em apontar o propósito de "mudança". Creio que a atuação de Scalia era militante no sentido de atacar precedentes e reconstruir o direito constitucional segundo uma agenda jurídica e política que buscava consagrar, entre outros tópicos, o que chamo aqui de "dignidade da tortura", a "indignidade dos homossexuais", a "inferioridade dos negros", a execução legal de menores e o provincianismo constitucional. Pautas bastante Republicanas, certamente, mas faço notar que os Democratas não quiseram realmente desfazer o primeiro tópico. Não trato aqui dos problemas das relações entre Executivo e Legislativo, União e Estados federados, que exigiriam uma pesquisa que não posso fazer agora, muito menos para esta breve nota, um desabafo um pouco mais longo.


a) A dignidade da tortura:
Acho bem fúteis as tentativas de ver em Scalia um grande teórico. Vejam a inteligência de Scalia em ação a respeito da tortura, que não seria "contrária à Constituição":
“We have never held that that’s contrary to the Constitution. And I don’t know what provision of the Constitution that would, that would contravene.
 “Listen, I think it is very facile for people to say, ‘Oh, torture is terrible.’ You posit the situation where a person that you know for sure knows the location of a nuclear bomb that has been planted in Los Angeles and will kill millions of people. You think it’s an easy question? You think it’s clear that you cannot use extreme measures to get that information out of that person? I don’t think that’s so clear at all.
O exemplo de Scalia vem da banalidade fascistoide do show business dos EUA, mais especificamente de uma série televisiva de autoindulgência com o imperialismo, a tortura e outros crimes contra a humanidade: Jack Bauer saved Los Angeles…. He saved hundreds of thousands of lives".
O magistrado, ao dizer que "nunca" a Corte havia dito que a tortura violava a Constituição, aparentemente desconhecia que a Suprema Corte havia julgado a tortura inconstitucional em 1878, no caso Wilkerson v. Utah, que interpretou a Oitava Emenda (que proíbe penas cruéis!) à Constituição dos EUA. Como a tortura não poderia ser interpretada como cruel?
No entanto, erros brutais de Scalia como este são significativos de como o imperialismo é incompatível com os direitos humanos. E, claro, harmonizam-se com o punitivismo militante do falecido magistrado, que, por exemplo, era contrário à decisão da Suprema Corte no célebre caso Miranda. 
Na sua discordância no caso Dickerson (2000), escreveu que a decisão em Miranda havia determinado restrições "profiláticas", e não constitucionais, ao Congresso e aos Estados"the only thing that can possibly mean in the context of this case is that this Court has the power, not merely to apply the Constitution but to expand it, imposing what it regards as useful “prophylactic” restrictions upon Congress and the States."
Como se sabe, trata-se, nada menos, do direito do preso ou do interrogado ser informado de que pode contar com a assistência de um advogado e de que não é obrigado a autoincriminar-se. Como associar ampla defesa à profilaxia, a, por exemplo, lavar as mãos? Por sinal, o ato de lavar as mãos não tem um bom retrospecto no campo dos julgamentos e condenações, e o católico Scalia sabia disso.

b) A indignidade dos homossexuais: Em Lawrence v. Texas (2003), Scalia, divergindo da maioria, negou que a proibição no Estado do Texas de práticas homossexuais violasse a igualdade, pois a interdição se aplicava tanto a homens quanto a mulheres... A falácia de sua argumentação visva fugir da questão da igualdade de direitos entre heterossexuais e homossexuais. A questão jurídica analisada seria apenas a da constitucionalidade de proibir relações sexuais segundo o critério de quem é o parceiro, da mesma forma que outras leis proíbiam o adultério e o incesto.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

As Mães de Maio, algo como um poema

Escrevi este poema atendendo a uma encomenda da revista Magma, dos alunos da Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Saiu no número 12, de 2015. Como a revista parece fora do ar no momento, e tendo em vista a criminalização que as Mães vêm sofrendo, já que exigir justiça parece um delito neste país, resolvi deixá-lo aqui também.




As Mães de Maio




nós vimos através
dos buracos da mão
que as balas deixaram
quando ele tentou se proteger;

nós vimos através
das rachaduras no berço
após atirarem em galhofa
na barriga de nove meses:
"antes de nascer um ladrão,
roubamos dele o nascimento";

(decretada a proibição dos velórios
por excesso de mortos)

nós vimos através
da porta da rua aberta
com a chegada do despejo coletivo
após executarem em plena rua
os que podiam pagar o aluguel;

através da perícia
jamais realizada
nas armas do Estado
encapuzadas de dinheiro e sangue;

(o Estado continua seu trabalho:
saindo do velório permitido,
os jovens caem baleados)

através do parecer jamais escrito
pelo procurador-geral; através
da decência do governador
e outras imaterialidades,
sua inocência de declarar
"não foi morto quem já não vivia";

vimos através da agenda presidencial
inexistente
para tratar dos que não existem ao poder;

(os que não caem são presos,
presos porque vivem)

através dos gritos
calados no túmulo
pelas folhas da imprensa
pelo estado da imprensa
para a qual eles nunca viveram;

vimos através da declaração de guerra
jamais feita
porque as bombas são tão mudas quanto os corpos;

(presos porque, mesmo autorizado,
um velório denuncia
a natureza do Estado)

das trompas e ovários extirpados pela dor;

dos netos não nascidos
ainda brincando no quintal;

através de todo esse longo túnel
aberto na carne deste país,

nós vimos

o próprio país, um acidente
arrancado ao mundo,

e reconhecemos sua bandeira
nos rasgos dos panos
que cobrem os corpos
deixados à rua
todos os dias, todos os meses,
como os de nossos filhos

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXIX: Favelas e militarização da segurança, ou fortificar-se contra o próprio povo

Tentei fazer um curso sobre justiça de transição. No penúltimo trabalho, era necessário voltar ao tema da segurança pública, e escrevi um textinho (o limite era mínimo) que talvez interesse por causa do pequeno adendo que escrevi para cá, com referência a três documentos.
Dentro desse amplo campo da segurança, resolvi me concentrar na criminalização das favelas e de seus moradores. Como o trabalho exigia não só pesquisa e referência de periódicos da época da ditadura e também dos de hoje, além de diálogo com os textos da bibliografia do curso, tive de ser altamente sucinto.
Para os dias de hoje, referi-me especialmente à serie premiada de reportagens do jornal "O Dia" (escritas pela repórter Juliana Dal Piva) com a ONG Justiça Global sobre a ocupação militar das favelas no Rio de Janeiro em 2015. Para a época da ditadura militar, escolhi matérias do "Jornal do Brasil", que fazia oposição e publicava notícias críticas às políticas sociais do regime.
A moradia, em regra, não era tratada pelos governos daquela época como direito social, mas, segundo a doutrina de segurança nacional, como uma questão relativa ao binômio segurança e desenvolvimento. Não por acaso, apesar do movimento de reforma urbana durante a Assembleia Constituinte, somente em 2000 esse direito ganhou status constitucional como direito social.
Dessa forma, as favelas ficaram sob a vigilância dos mecanismos de segurança nacional da ditadura militar, bem como dos mecanismos de segurança pública de hoje.
Uma colega lembrou da tese de Boaventura de Sousa Santos sobre pluralismo jurídico a partir de seu estudo de campo no Rio de Janeiro. Foi oportuno, pois ele não divulgou, na época do estudo, o nome da Favela do Jacarezinho, que ele chamou de Pasárgada, exatamente por razões de segurança. Os principais líderes da Associação de Moradores do Jacarezinho se afastaram na época do golpe e só retornaram à ativa na década de 1970.

A moradia urbana era vista pela ditadura militar não como direito social (o que ocorreu, em nível constitucional, só com a emenda no 26 de 2000), mas como um problema de segurança e desenvolvimento, o que norteou os programas e instituições voltados para essa área, como o Banco Nacional da Habitação. A solução oficial para as favelas eram a criminalização e a erradicação.
Um dos casos foi a Favela Mata Sete, no bairro de Boa Viagem, em Recife. O Chefe da 2a seção do IV Exército, coronel Ney Armando de Mello Meziat (no relatório da CNV, é o autor número 316 de graves violações de direitos humanos), foi acusado em 1978 pelos próprios moradores de forçá-los a “abandonarem seus barracos” (JORNAL DO BRASIL. Coronel não responde à denúncia. Rio de Janeiro, 17 agosto 1978, p. 17). O deputado Roberto Freire (MDB/PE), denunciou no Congresso “as violências feitas pela madrugada, com homens armados e mascarados que derrubam casas”; Meziat era também “acusado de ser sócio de uma empresa imobiliária que quer afastar os moradores” (JORNAL DO BRASIL. Deputado denuncia Coronel. 16 agosto 1978, p. 8). A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife “assumiu a luta”  (JORNAL DO BRASIL. Igreja defende favelados. 15 de dezembro de 1978, Nacional, p. 8) em prol dos moradores. A favela acabou sendo expulsa pela Empresa de Urbanização do Recife (URB) e a Polícia Militar, mas na “Nova República”, em 1989, e boa parte de seus moradores criou a comunidade Entrapulso (CARVALHO, João. Entrapulso, uma minicidade entre os espigões de Boa Viagem. Jornal do Commercio. 22 de setembro de 2012)