O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

As Mães de Maio, algo como um poema

Escrevi este poema atendendo a uma encomenda da revista Magma, dos alunos da Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Saiu no número 12, de 2015. Como a revista parece fora do ar no momento, e tendo em vista a criminalização que as Mães vêm sofrendo, já que exigir justiça parece um delito neste país, resolvi deixá-lo aqui também.




As Mães de Maio




nós vimos através
dos buracos da mão
que as balas deixaram
quando ele tentou se proteger;

nós vimos através
das rachaduras no berço
após atirarem em galhofa
na barriga de nove meses:
"antes de nascer um ladrão,
roubamos dele o nascimento";

(decretada a proibição dos velórios
por excesso de mortos)

nós vimos através
da porta da rua aberta
com a chegada do despejo coletivo
após executarem em plena rua
os que podiam pagar o aluguel;

através da perícia
jamais realizada
nas armas do Estado
encapuzadas de dinheiro e sangue;

(o Estado continua seu trabalho:
saindo do velório permitido,
os jovens caem baleados)

através do parecer jamais escrito
pelo procurador-geral; através
da decência do governador
e outras imaterialidades,
sua inocência de declarar
"não foi morto quem já não vivia";

vimos através da agenda presidencial
inexistente
para tratar dos que não existem ao poder;

(os que não caem são presos,
presos porque vivem)

através dos gritos
calados no túmulo
pelas folhas da imprensa
pelo estado da imprensa
para a qual eles nunca viveram;

vimos através da declaração de guerra
jamais feita
porque as bombas são tão mudas quanto os corpos;

(presos porque, mesmo autorizado,
um velório denuncia
a natureza do Estado)

das trompas e ovários extirpados pela dor;

dos netos não nascidos
ainda brincando no quintal;

através de todo esse longo túnel
aberto na carne deste país,

nós vimos

o próprio país, um acidente
arrancado ao mundo,

e reconhecemos sua bandeira
nos rasgos dos panos
que cobrem os corpos
deixados à rua
todos os dias, todos os meses,
como os de nossos filhos

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