O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: De "People" ao povo e a Cauby Peixoto

30 dias de canções

Dia 11: Uma canção de que você não se cansa

"People", de Jule Styne e Bob Merrill. A canção foi escrita originalmente para um musical, Funny Girl, de 1964, que tinha como base a vida da artista estadunidense Fanny Brice. Styne, claro, escreveu diversos sucessos que continuam sendo gravados até hoje, como "Just in time" e "Time after time"; "People" é um deles.
A canção aparece no primeiro ato da peça. A personagem principal a canta para o futuro primeiro marido. A letra é simples, não tem densidade poética, e cita o que seria o título do musical, A very special person, felizmente logo mudado. 
A melodia, porém, é muito bonita e se presta a diversos tratamentos. Ela fez um sucesso enorme na voz da criadora do papel, Barbra Streisand, e foi logo gravada por outros artistas, como Aretha Franklin, já em 1964, em momento bastante lírico: https://www.youtube.com/watch?v=rzxVOvwjHI4. Ou, em 1967, em versão mais dançante, por Nat King Cole: https://www.youtube.com/watch?v=USsb_ig4ZmQ; ainda mais dançantes, os cantores do grupo The Tymes, que a gravaram cheios de suingue em 1968: https://www.youtube.com/watch?v=CCk1UTAhyKA.
Vejam, neste milênio, o que Stevie Wonder e Arturo Sandoval fizeram da canção: https://www.youtube.com/watch?v=LkkbedwcbvA
Essa interessante melodia faz com que possamos ouvir com interesse as repetições da palavra-título, reiterada intencionalmente: "but first be a person who needs people, people who need people are the luckiest people in the world"... 
A repetição ocorre a tal ponto que a palavra people se destaca do texto. Em razão do tratamento que a música confere a essa palavra, poderíamos, em vez de entendê-la no sentido de pessoas em uma relação amorosa (o assunto da música no contexto do musical), imaginá-la em uma chave coletiva?
Barbra Streisand era muito jovem na época de Funny Girl e teve a carreira alavancada por essa música em especial, que ela gravou diversas vezes (vejam-na no filme; a rua deserta enfatiza o caráter privado da canção). 
Neste vídeo informal filmado por fã na plateia, Streisand, realmente ao vivo (ao contrário de certas cantoras estadunidenses mais jovens e com menos voz e honestidade), já septuagenária, cantou-a em arranjo apropriado ao tom mais épico que ela, nas últimas décadas, decidiu emprestar à canção, entendendo "people" naquela outra chave, mais pública: https://www.youtube.com/watch?v=nnhKa68SZYQ
A única vez que ouvi essa música ao vivo foi com um fenômeno vocal que nunca teve uma aula de canto, Cauby Peixoto. Ele a gravou de forma jazzística, muito interessante, na década de 1960, com a excelência que ele tinha quando cantava um repertório melhor (o que não ocorria sempre, como ele mesmo reconheceu). 
Ele contou mais de uma vez a história de ter cantado "People" só com cuíca, no início da década de 1970 em Aracaju, por insistência do público. Não havia piano para acompanhá-lo. Certamente foi uma versão inusitada, de que ele deu uma mostra aqui: https://youtu.be/J5hWyBqnROs?t=35m32s
Os problemas de saúde do grande cantor fizeram com que ele tivesse, nos últimos anos, de chegar ao palco amparado e cantar sentado. A primeira vez que o vi já foi no Bar Brahma, em São Paulo. A voz, impecavelmente afinada, com o vibrato controlado, contrastava com sua fragilidade física. Fiquei muito impressionado não só pelo que ele encarnava (a chamada Era do Rádio revivia quando Cauby abria boca), quanto pelo que ele continuava tecnicamente sendo capaz de fazer, bem como pela musicalidade: os anos podaram-lhe certos excessos, e o que se ouvia era um intérprete atrás de harmonias diferentes e nuances. De súbito, o cantor levantou-se no início de seu velho sucesso, "Conceição", arrancando, só com isso, aplausos.
A última vez em que estive em uma apresentação sua foi poucos meses antes de morrer, no lançamento de seu último disco, "A Bossa de Cauby Peixoto", em fevereiro de 2016. Ele havia acabado de fazer 85 anos e havia quase morrido um ano antes. Fiquei muito impressionado porque ele abriu a noite com uma dessas canções românticas estadunidenses de décadas atrás, "Love is a many splendored thing" (que está no repertório, por exemplo, de Nat King Cole e Frank Sinatra), que exige bastante da voz. Ele foi impecável.
Cauby cantou bossa nova, naturalmente, mas também outras canções do seu repertório: "Conceição", "Bastidores" e "People", que foi o número de que mais gostei, em versão jazzística, com todos os agudos do final. 
Nessa apresentação, que ocorreu no SESC-SP, estava presente o médico que o havia atendido no ano anterior. Era o aniversário dele, que foi chamado ao palco para comer um bolo. Nesse momento, comentou que Cauby tinha sobrevivido por amor à música.
De fato, sua última turnê, que ele realizava com a parceira Ângela Maria (outra que continuava a levar a Era do Rádio na voz), só foi interrompida pela última (e breve) internação e o falecimento em 15 de maio de 2016.
Sua morte foi amplamente noticiada; notei, porém, que jornais de perfil mais popular, como Diário de São Paulo, Agora São Paulo e o Extra (e outros, que não lembro mais) deram, em suas primeiras páginas, um destaque à morte do cantor maior do que o que lhe foi proporcionado por O Estado de S.Paulo, O Globo e Folha de S.Paulo.
Esse contraste me fez ver que, se ele sobreviveu tanto tempo, mantendo a voz (o que é raro, e os cantores de gerações mais novas, que não têm os fundamentos que a geração dele  de Tony Bennett, Bibi Ferreira  adquiriram, certamente não poderão aspirar a essa longevidade vocal), o amor à música certamente foi fundamental, mas também o amor ao público, seu sentido de "people". Ele era do tipo de artista que não se vestia sem pensar que seria visto pelos fãs, mesmo que não fosse cantar.
Cauby Peixoto não tinha nenhum engajamento político; ele mesmo se confessava alienado nesse campo. No entanto, por meio de sua voz e do exuberante e original uso dela, ele se comunicava com o público. Um exemplo histórico, muito depois dos anos 1950 (época em que ele tinha as roupas rasgadas pelas fãs), foi o Show do Trabalhador no Riocentro, em 1981, ocasião em que militares tentaram realizar uma carnificina. 
Uma das bombas, que seriam atribuídas à esquerda para sabotar a abertura política, explodiu antes e matou um dos terroristas das Forças Armadas. Tratou-se, como atestou a Comissão Nacional da Verdade, de uma ação criminosa articulada pelo Estado brasileiro, o qual protegeu os facínoras na época da ditadura e continua a fazê-lo hoje, no atual regime, que se chama democrático.
Ângela Rô Rô abriu aquela apresentação e Luiz Gonzaga a fechou. Entre eles, artistas tão diferentes quanto Ivan Lins e Roberto Ribeiro, Gal Costa e Clara Nunes, Gonzaguinha e João Bosco, bem como outros notáveis: João Nogueira, Simone, Joanna, Alceu Valença, Beth Carvalho, Miúcha, Zizi Possi e Cauby Peixoto, que levou, com duas músicas, o público à histeria: https://www.youtube.com/watch?v=1hwz6cUcG7U 
Ele nem cantou esta (preferiu, com razão, Chico Buarque e Vanzolini), mas era óbvio que, nesses momentos, ele e as pessoas que lhe assistiam viviam esta afirmação tão simples, "people who need people are the luckiest people in the world". 


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza



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