O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável

30 dias de canções

Dia 16: Uma canção clássica para você

"Los pájaros perdidos", de Astor Piazzolla e Mario Trejo. Trata-se de uma das músicas mais conhecidas do grande compositor argentino. Aqui, pode-se ouvi-la ao vivo com Milva: https://www.youtube.com/watch?v=TXkqkKpQDpk.
A partitura pode ser lida nesta ligação: http://www.todotango.com/musica/tema/2669/Los-pajaros-perdidos/.
Piazzolla estudou para ser um compositor "clássico" (no sentido de não popular) com Nadia Boulanger, que foi um dos maiores professores de música do século passado. Ela lhe disse, ao conhecer o tango que ele fazia, para continuar nesse estilo, campo em que encontrava uma voz individual.
De fato, o músico (compositor ou intérprete), para ser lembrado, precisa dessa centelha própria; por mais perfeito que seja, se compuser ou interpretar sempre à maneira de outrem, não se fixará na memória do público.
Piazzolla acabou também compondo nas formas eruditas (a Suite Punta del Este, por exemplo, termina com uma fuga). E o tango de Piazzolla, justamente por ter causado urticárias imensas nos puristas e nos antiquados (que ainda tinham que conciliar sua rejeição com o fato de ele ter tocado com Carlos Gardel), apontou caminhos novos para o gênero e ultrapassou suas fronteiras: os músicos "clássicos" passaram a tocar Piazzolla.
Já vi um compositor brasileiro, amigo da ditadura, e que nunca teve tanta gente o tocando quanto Piazzolla  (mesmo considerando apenas os "clássicos), ironizar o gênio argentino, dizendo que ele era uma simples "moda", pois sua música não teria estrutura. 
A "moda" está durando algumas décadas e conta com nomes como Gidon Kremer, Emanuel Ax, Anne Gastinel, Artemis Quartet, Yo-Yo Ma, Manuel Barrueco, Jan Vogler etc. A música de Piazzolla, com sua paixão impressionante, continua a receber diversas transcrições e recriações. O tango "Los pájaros perdidos" foi recentemente gravado na voz do contratenor Philippe Jaroussky no disco homônimo do grupo L'Arpeggiata, dirigido por Cristina Pluhar: https://www.youtube.com/watch?v=Xu-oS2tEm5AA música é alterada, e o final soa como o do madrigal "Con che soavità", de Monteverdi; comparem: https://youtu.be/dsQNtBA8GSU?t=4m7s
O Festival de Ópera de Belém apresentou em 2016 uma cantata com música de Piazzolla e de Gardel, a que foi dado o título "Los pájaros perdidos - O Tempo no Tango", com a cantora mexicana Eugenia León e o maior tenor brasileiro, Fernando Portari. Não recuperei nenhuma notícia sobre as apresentações. Para os fãs da cantora, eis um vídeo em que interpreta a canção: https://www.youtube.com/watch?v=pk7GheJ8ST8
Mario Trejo, em entrevista concedida a Liana Wenner, publicada postumamente pelo Página 12 ("Fundido en el cielo", título que alude a este poema, de 20 de maio de 2012), contou como a canção foi criada:
[Página 12] Amelita Baltar, hace muy poco en un local frente al parque Lezama, contó al público la historia de uno de los tangos que escribió para Piazzolla: “Los pájaros perdidos”. Parece que todo surgió a partir de un encuentro casual en Roma.
[Mario Trejo] –Con Piazzolla éramos muy amigos ya desde finales de los ’50. En el ’71, estando yo en Roma, llegó Astor y me buscó para que le escribiera un tango. Pasamos una tarde en mi departamento, tocando él y escribiendo yo. De ahí salió “Los pájaros perdidos”, que grabó José Angel Trelles. Pero la historia del tema viene de antes. En un diálogo con un amigo, caminando por la playa de Villa Gesell donde había ido a entrenarme para la actuación en Libertad y otras intoxicaciones. Mirando los pájaros le pregunté a dónde iban a morir. El me dijo que no morían, que los pájaros se fundían con el cielo.
Trejo publicou em 2010 um livro com esse título. O poema parte justamente dessa ideia, e cheguei a pensar nessa música para o dia 10 deste desafio, com o horizonte a se tornar metáfora para o irrecuperável. A ideia dos pássaros que vão para o além e se confundem com um céu que "nunca mais poderei recuperar" é assimilada a um amor que terminou. 
Piazzolla diferenciou musicalmente, no esquema A-B-A desta música, a estrofe que traz a referência explícita ao amor. A parte A é retomada com a estrofe dos "pájaros noturnos". No fim, o próprio eu lírico se compara a um pássaro perdido, e sabemos que ele não poderá mais resgatar a si mesmo.

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