O povo Xucuru conseguiu levar seu caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos: o abusivo atraso da demarcação de suas terras propiciou o assassinato de membros desse povo, inclusive o pai do cacique Marcos Xucuru. Em 21 de março, foi realizada audiência do caso. Vejam o cacique falar aqui: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2017/03/25/cacique-marcos-xucuru-fala-sobre-o-caso-xucuru-na-corte-interamericana/.
O caso deste povo em Pernambuco tem pelo menos dois traços comuns a quase todos os povos indígenas brasileiros: a) a insegurança fundiária suscita invasões e ataques armados, com assassinatos das lideranças; b) o Judiciário brasileiro provoca insegurança fundiária, com as funestas consequências pagas em sangue pelos povos indígenas.
Cito artigo de Cecília MacDowell Santos, "Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas", no livro Democracia, direitos humanos e mediação dos conflitos, organizado por Valdênia Brito Monteiro (Recife: Gajop, 2011). A Funai havia concluído os estudos para as demarcações, no entanto...
Marcos Xucuru também teve a vida ameaçada; para saber de ao menos uma parte da série de crimes contra este povo, pode-se ler "Plantaram" Xicão: Os Xukuru do Ororubá e a Criminalização do direito ao território, organizado por Vânia Fialho, Rita de Cássia Maria Neves, Mariana Carneiro Leão Figueiroa (Manaus: PNCSAUEA/UEA Edições, 2011).
É significativo que esse caso entre na pauta nos tempos de hoje. O avanço do capital na América do Sul para a exploração de produtos primários, por meio do agrobanditismo (grilagem de terras, assassinatos, envenenamento de rios, queimadas, desmatamento), vem atingindo “as populações que sobrevivem fazendo uso tradicional da terra, de lagos, rios, manguezais e bosques, ou seja, indígenas, pescadores, coletores, populações ribeirinhas, assentados da reforma agrária”. Dessa forma (estou citando Raúl Zibechi, Brasil potência, publicado pela Consequência em 2012) os povos tradicionais se tornaram “sujeitos da resistência” ao capitalismo no Brasil, com “aumento significativo da violência dos poderes privados” no avanço do agronegócio.
Desta forma, o ataque dos últimos governos federais aos povos indígenas (Lula e Rousseff, que retomaram projetos de barragens da ditadura militar), ainda intensificados com Temer, que acaba de desmantelar a Funai, e ofendeu esses povos nomeando Osmar Serraglio ministro da justiça, que foi relator da PEC 215. Sua nomeação partiu da parcela já encarcerada do PMDB: https://theintercept.com/2017/03/26/serraglio-nao-tem-condicao-moral-para-continuar-ministro-da-justica/.
Escrevo esta nota por causa de alguns erros que vi divulgados pela imprensa e por organizações de apoio aos índios. Este é o primeiro caso de povos indígenas contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. No entanto...
1. Não se trata de, jeito nenhum, do primeiro caso sobre povos indígenas na Corte Interamericana, que já decidiu os seguintes casos contenciosos movidos por povos e organizações indígenas:O caso deste povo em Pernambuco tem pelo menos dois traços comuns a quase todos os povos indígenas brasileiros: a) a insegurança fundiária suscita invasões e ataques armados, com assassinatos das lideranças; b) o Judiciário brasileiro provoca insegurança fundiária, com as funestas consequências pagas em sangue pelos povos indígenas.
Cito artigo de Cecília MacDowell Santos, "Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas", no livro Democracia, direitos humanos e mediação dos conflitos, organizado por Valdênia Brito Monteiro (Recife: Gajop, 2011). A Funai havia concluído os estudos para as demarcações, no entanto...
Os fazendeiros impetraram uma Ação de Mandado de Segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual julgou procedente essa medida em maio de 1997 e determinou que se abrisse novo prazo para contestações. Com base em parecer da Funai, o então Ministro da Justiça José Gregori, sob o governo Fernando Henrique, julgou improcedente as novas contestações.
A decisão protelatória do STJ possibilitou maior tensão e violência contra os índios. Embora a área indígena já tivesse sido fisicamente demarcada pela Funai, foi invadida por novos ocupantes e familiares de fazendeiros, além de ter havido compra e venda, e repasse de terras.
Em reação, os Xucurus do Ororubá reiniciaram as “retomadas”, o que acirrou os conflitos. Em 21 de maio de 1998, foi assassinado o cacique Chicão, após haver recebido várias ameaças desde 1986. Como recorda sua esposa e viúva, Zenilda de Araújo: “A partir do momento em que ele entrou como cacique, aí começou a ameaça por parte dos fazendeiros. Mas ele não temia. Teve uma época que ele pediu segurança à Justiça, denunciou o caso, que ‘tava’ ameaçado, mas a Justiça não levou a sério.” (Informação verbal).
O assassinato do cacique Chicão foi devastador para a mobilização política da comunidade, que ficou sob a liderança do vice-cacique José Barbosa dos Santos, conhecido por Zé de Santa, até que um dos filhos do cacique Chicão, Marcos de Araújo, atingisse a maioridade.Com o efeito de dividir e enfraquecer a comunidade, a viúva e o vice-cacique foram investigados pela morte de Chicão... Em 1995, o cacique tinha sido testemunha de acusação no caso do assassinato do procurador da Funai Geraldo Rolim por fazendeiro.
Marcos Xucuru também teve a vida ameaçada; para saber de ao menos uma parte da série de crimes contra este povo, pode-se ler "Plantaram" Xicão: Os Xukuru do Ororubá e a Criminalização do direito ao território, organizado por Vânia Fialho, Rita de Cássia Maria Neves, Mariana Carneiro Leão Figueiroa (Manaus: PNCSAUEA/UEA Edições, 2011).
É significativo que esse caso entre na pauta nos tempos de hoje. O avanço do capital na América do Sul para a exploração de produtos primários, por meio do agrobanditismo (grilagem de terras, assassinatos, envenenamento de rios, queimadas, desmatamento), vem atingindo “as populações que sobrevivem fazendo uso tradicional da terra, de lagos, rios, manguezais e bosques, ou seja, indígenas, pescadores, coletores, populações ribeirinhas, assentados da reforma agrária”. Dessa forma (estou citando Raúl Zibechi, Brasil potência, publicado pela Consequência em 2012) os povos tradicionais se tornaram “sujeitos da resistência” ao capitalismo no Brasil, com “aumento significativo da violência dos poderes privados” no avanço do agronegócio.
Desta forma, o ataque dos últimos governos federais aos povos indígenas (Lula e Rousseff, que retomaram projetos de barragens da ditadura militar), ainda intensificados com Temer, que acaba de desmantelar a Funai, e ofendeu esses povos nomeando Osmar Serraglio ministro da justiça, que foi relator da PEC 215. Sua nomeação partiu da parcela já encarcerada do PMDB: https://theintercept.com/2017/03/26/serraglio-nao-tem-condicao-moral-para-continuar-ministro-da-justica/.
Escrevo esta nota por causa de alguns erros que vi divulgados pela imprensa e por organizações de apoio aos índios. Este é o primeiro caso de povos indígenas contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. No entanto...
- Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2001. Serie C No. 79.
- Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia 15 de junio de 2005. Serie C No. 124.
- Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia 17 de junio de 2005. Serie C No. 125.Corte IDH.
- Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 127.
- Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de marzo de 2006. Serie C No. 146.
- Caso del Pueblo Saramaka Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007. Serie C No. 172.
- Caso Comunidad Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010. Serie C No. 214.
- Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Fondo y reparaciones. Sentencia de 27 de junio de 2012. Serie C No. 245.
- Caso Norín Catrimán y otros (Dirigentes, miembros y activista del Pueblo Indígena Mapuche) Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de mayo de 2014. Serie C No. 279.
- Caso de los Pueblos Indígenas Kuna de Madungandí y Emberá de Bayano y sus miembros Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 14 de octubre de 2014. Serie C No. 284.
- Caso Miembros de la Aldea Chichupac y comunidades vecinas del Municipio de Rabinal Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de noviembre de 2016. Serie C No. 328.
Em todos eles o Estado-réu sofreu alguma condenação. Ainda há mais estes, com vítimas individuais: desaparecimento forçado de indígenas Maias (Caso Chitay Nech y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de mayo de 2010. Serie C No. 212 e Caso Tiu Tojín Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de noviembre de 2008. Serie C No. 190.), de estupro por militares de indígenas Me'phaa (Caso Fernández Ortega y otros Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de agosto de 2010. Serie C No. 215 e Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216) e de execução extrajudicial de indígena Paez (Caso Escué Zapata Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de julio de 2007. Serie C No. 165).
Os povos indígenas brasileiros chegaram depois dos seus parentes na Nicarágua, no Suriname, Paraguai, Equador, Chile, Panamá, Guatemala, México. Isso é explicável: apenas em dezembro de 1998, no apagar das luzes do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana, e apenas por casos ocorridos após esse reconhecimento (o caso da Guerrilha do Araguaia só pode ser admitido e, finalmente, julgado em 2010 porque o desaparecimento forçado é um crime continuado, e os corpos das vítimas da repressão, com poucas exceções, ainda não foram encontrados).
Como não se pode acessar diretamente a Corte, pois as denúncias têm que ser enviadas inicialmente a outro órgão do Sistema Interamericano de Direitos humanos, a Comissão; ela decide se o caso é admissível segundo os parâmetros jurídicos do Sistema e tenta resolver a questão com o Estado, se entender que há realmente violação de direitos humanos; se a violação ocorrer e o Estado não seguir as recomendações da Comissão, ela apresentará a questão à Corte.
Essa fase com a Comissão costuma demorar anos, entre outros fatores porque os Estados não têm pressa para responder às solicitações e chegam a pressionar politicamente para atrasar ou inviabilizar os andamentos, como Rousseff fez no caso de Belo Monte, lançando uma ofensiva diplomática contra a OEA em 2011 com o fim de defender o empreendimento que gerou uma série longa de crimes, inclusive contra os índios; remeto para "Antes do cartel e da corrupção, Belo Monte é um crime contra a vida", de Leonardo Sakamoto: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/11/16/antes-do-cartel-e-da-corrupcao-belo-monte-e-um-crime-contra-a-vida/.
Dessa forma, para que um caso chegue até a Corte, não se deve esperar menos de dez anos... A denúncia deste caso foi apresentada à Comissão, com auxílio do Cimi e do Gajop (Gabinete de Assistência Jurídicas às Organizações Populares), em 2002.
2. Tampouco é a primeira vez que o Brasil é réu em corte internacional por violação dos direitos dos povos indígenas. A primeira ocorreu em um tribunal não governamental, o Tribunal Bertrand Russell, em sua quarta edição, em 1980, que condenou o Estado pelo crime de genocídio.
Não faz sentido menosprezá-lo ou esquecê-lo. Ela tinha tanta relevância que o governo tentou até o último minuto impedir que Mário Juruna, liderança Xavante, viajasse para Roterdã, onde o julgamento ocorreria. Escrevi uma nota sobre isso em 2014: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2014/10/desarquivando-o-brasil-xciii-indios.html
Dito isso, quero fazer dois comentários:
A. É curioso notar a sobrevivência de determinadas leituras essencialistas do direito internacional que desejam acorrentá-lo a sua origem. Dessa forma, o direito, por ser "filho do Estado", teria que ser inimigo dos povos indígenas; e, para os que sabem um pouco mais do assunto, um direito nascido do colonialismo jamais poderia ser empregado em favor desses povos.
No entanto, o que determina o direito são as práticas (eu acho o mesmo em relação às palavras; por isso, creio que são reacionários os movimentos que querem banir certas palavras por causa de um passado esquecido, em vez de buscar ressignificá-las).
O direito internacional, com efeito, nasceu como instrumento de conquista do colonialismo europeu. Em nome do livre comércio, da hospitalidade e da civilização cristã, ele foi usado para legitimar as invasões. Francisco de Vitoria, em 1539, ousou escrever, durante os massacres no México, que “não estando os índios em guerra com os espanhóis, visto que estes não lhe causam dano algum, não lhes é lícito impedir que residam em sua pátria”.
No entanto, deve-se abandonar uma visão essencialista do direito que o identifique sempre à dominação, para entender que ele não apenas se altera no tempo, com os usos que se lhe dão pelos agentes sociais, como ele, em sua inseparável ambiguidade (pois sempre dependerá de interpretação), é um campo de disputa de sentidos e poderes.
A partir da descolonização após a 2a Guerra Mundial, surgiram outros usos do direito internacional, trazidos pelos novos Estados, dos povos colonizados. Para os autores que empregam as categorias gramscianas, trata-se de usos contra-hegemônicos desse direito, como o de resistência ao imperialismo e fortalecendo movimentos sociais de resistência, sem o que o “próprio futuro dos direitos humanos” ficaria comprometido (como escreveu Rajagopal em International Law and The Third World). Eles precisam ser contra-hegemônicos.
A possibilidade atual de operar institutos e mecanismos de direito internacional em favor dos povos indígenas corresponde a um desses usos contra-hegemônicos. A relatora especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, no exercício desse mandato desde 2014, esteve em missão no Brasil em março de 2016 e soltou nota em que se preocupava, entre outras questões, com a tese do marco temporal (http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/index.php/es/declaraciones-comunicados/123-end-mission-brazil). Os três primeiros desafios que ela elencou foram estes:
Espero, portanto, que os militantes antijurídicos não censurem o Povo Xucuru por fazer uso de um processo internacional. O próprio acompanhamento pela Comissão já lhe foi útil nestes últimos anos. Sem o Sistema Interamericano, aliás, provavelmente não teríamos tido nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade e o seu relatório reconhecendo crimes contra os povos indígenas. A decisão no caso da Guerrilha do Araguaia foi determinante para a criação da CNV.
B. É bastante curioso comparar o provincianismo constitucional típico da cultura jurídica brasileira com esta nova fronteira de ativismo que os povos indígenas brasileiros conseguiram abrir no caso do Povo Xucuru na Corte Interamericana. Na minha tese, trabalhei com os erros técnicos e a evidente ignorância na jurisprudência brasileira a respeito de rudimentos do direito internacional. Esse problema, que até eu pude verificar, pode ser constatado diariamente na prática judicial.
Com esse provincianismo, o Judiciário afasta ou ignora as normas internacionais pertinentes, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que apresenta, entre outras previsões, o direito de consulta aos povos indígenas, sistematicamente violado pelos três poderes institucionalizados.
Os povos indígenas brasileiros chegaram depois dos seus parentes na Nicarágua, no Suriname, Paraguai, Equador, Chile, Panamá, Guatemala, México. Isso é explicável: apenas em dezembro de 1998, no apagar das luzes do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana, e apenas por casos ocorridos após esse reconhecimento (o caso da Guerrilha do Araguaia só pode ser admitido e, finalmente, julgado em 2010 porque o desaparecimento forçado é um crime continuado, e os corpos das vítimas da repressão, com poucas exceções, ainda não foram encontrados).
Como não se pode acessar diretamente a Corte, pois as denúncias têm que ser enviadas inicialmente a outro órgão do Sistema Interamericano de Direitos humanos, a Comissão; ela decide se o caso é admissível segundo os parâmetros jurídicos do Sistema e tenta resolver a questão com o Estado, se entender que há realmente violação de direitos humanos; se a violação ocorrer e o Estado não seguir as recomendações da Comissão, ela apresentará a questão à Corte.
Essa fase com a Comissão costuma demorar anos, entre outros fatores porque os Estados não têm pressa para responder às solicitações e chegam a pressionar politicamente para atrasar ou inviabilizar os andamentos, como Rousseff fez no caso de Belo Monte, lançando uma ofensiva diplomática contra a OEA em 2011 com o fim de defender o empreendimento que gerou uma série longa de crimes, inclusive contra os índios; remeto para "Antes do cartel e da corrupção, Belo Monte é um crime contra a vida", de Leonardo Sakamoto: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/11/16/antes-do-cartel-e-da-corrupcao-belo-monte-e-um-crime-contra-a-vida/.
Dessa forma, para que um caso chegue até a Corte, não se deve esperar menos de dez anos... A denúncia deste caso foi apresentada à Comissão, com auxílio do Cimi e do Gajop (Gabinete de Assistência Jurídicas às Organizações Populares), em 2002.
2. Tampouco é a primeira vez que o Brasil é réu em corte internacional por violação dos direitos dos povos indígenas. A primeira ocorreu em um tribunal não governamental, o Tribunal Bertrand Russell, em sua quarta edição, em 1980, que condenou o Estado pelo crime de genocídio.
Não faz sentido menosprezá-lo ou esquecê-lo. Ela tinha tanta relevância que o governo tentou até o último minuto impedir que Mário Juruna, liderança Xavante, viajasse para Roterdã, onde o julgamento ocorreria. Escrevi uma nota sobre isso em 2014: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2014/10/desarquivando-o-brasil-xciii-indios.html
O coronel da Funai chegou a dizer que Juruna não tinha conhecimento da situação dos índios...A Justiça Federal, no entanto, fez cumprir a lei e autorizou Juruna a viajar. Do Brasil, foram representantes do CIMI, Alvaro Sampaio, Darcy Ribeiro, Memélia Moreira, Márcio Souza, Anna Lange e Vincent Carelli. Juruna foi escolhido presidente do tribunal, o que foi um dos fatores que pesou na decisão da justiça brasileira.Em Rotterdam, não deu outra: o Estado brasileiro foi condenado, em razão de atos de seus próprios agentes e e de particulares como os salesianos.Neste número de 1980 do Journal de la Société des Américanistes, pode-se ler uma narrativa do que aconteceu. Na imprensa brasileira, há uma interessante matéria de 1980 escrita por Carlos Alberto Luppi para a Folha de S.Paulo sobre os salesianos, http://pib.socioambiental.org/anexos/19046_20110303_125832.pdf, 'Denúncia atribui massacre indígena a Salesianos", a partir de acusações de Márcio de Souza entregues ao Tribunal Bertrand Russell, a respeito da área do Vale do Rio Negro, no Estado do Amazonas.A Funai era chefiada pelo coronel Nobre da Veiga. A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" referiram-se a esse julgamento, que foi um ponto alto nas denúncias internacionais contra a ditadura militar.
Dito isso, quero fazer dois comentários:
A. É curioso notar a sobrevivência de determinadas leituras essencialistas do direito internacional que desejam acorrentá-lo a sua origem. Dessa forma, o direito, por ser "filho do Estado", teria que ser inimigo dos povos indígenas; e, para os que sabem um pouco mais do assunto, um direito nascido do colonialismo jamais poderia ser empregado em favor desses povos.
No entanto, o que determina o direito são as práticas (eu acho o mesmo em relação às palavras; por isso, creio que são reacionários os movimentos que querem banir certas palavras por causa de um passado esquecido, em vez de buscar ressignificá-las).
O direito internacional, com efeito, nasceu como instrumento de conquista do colonialismo europeu. Em nome do livre comércio, da hospitalidade e da civilização cristã, ele foi usado para legitimar as invasões. Francisco de Vitoria, em 1539, ousou escrever, durante os massacres no México, que “não estando os índios em guerra com os espanhóis, visto que estes não lhe causam dano algum, não lhes é lícito impedir que residam em sua pátria”.
No entanto, deve-se abandonar uma visão essencialista do direito que o identifique sempre à dominação, para entender que ele não apenas se altera no tempo, com os usos que se lhe dão pelos agentes sociais, como ele, em sua inseparável ambiguidade (pois sempre dependerá de interpretação), é um campo de disputa de sentidos e poderes.
A partir da descolonização após a 2a Guerra Mundial, surgiram outros usos do direito internacional, trazidos pelos novos Estados, dos povos colonizados. Para os autores que empregam as categorias gramscianas, trata-se de usos contra-hegemônicos desse direito, como o de resistência ao imperialismo e fortalecendo movimentos sociais de resistência, sem o que o “próprio futuro dos direitos humanos” ficaria comprometido (como escreveu Rajagopal em International Law and The Third World). Eles precisam ser contra-hegemônicos.
A possibilidade atual de operar institutos e mecanismos de direito internacional em favor dos povos indígenas corresponde a um desses usos contra-hegemônicos. A relatora especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, no exercício desse mandato desde 2014, esteve em missão no Brasil em março de 2016 e soltou nota em que se preocupava, entre outras questões, com a tese do marco temporal (http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/index.php/es/declaraciones-comunicados/123-end-mission-brazil). Os três primeiros desafios que ela elencou foram estes:
No Brasil, os desafios enfrentados por muitos povos indígenas são enormes. Dentre eles é possível destacar:
a Proposta de Emenda à Constituição, PEC 215, e outras legislações que solapam os direitos dos povos indígenas a terras, territórios e recursos;
a interpretação equivocada dos artigos 231 e 232 da Constituição na decisão judicial sobre o caso Raposa Serra do Sol;
a introdução de um marco temporal e a imposição de restrições aos direitos dos povos indígenas de possuir e controlar suas terras e recursos naturais;Note-se que, em geral, os inimigos dos direitos humanos são isolacionistas, mesmo levando em consideração as distorções discursivas que fazem com o Direito Humanitário para legitimar intervenção em outros Estados. Vejam Trump e seu discurso nacionalista, que retirou os EUA das discussões na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Espero, portanto, que os militantes antijurídicos não censurem o Povo Xucuru por fazer uso de um processo internacional. O próprio acompanhamento pela Comissão já lhe foi útil nestes últimos anos. Sem o Sistema Interamericano, aliás, provavelmente não teríamos tido nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade e o seu relatório reconhecendo crimes contra os povos indígenas. A decisão no caso da Guerrilha do Araguaia foi determinante para a criação da CNV.
B. É bastante curioso comparar o provincianismo constitucional típico da cultura jurídica brasileira com esta nova fronteira de ativismo que os povos indígenas brasileiros conseguiram abrir no caso do Povo Xucuru na Corte Interamericana. Na minha tese, trabalhei com os erros técnicos e a evidente ignorância na jurisprudência brasileira a respeito de rudimentos do direito internacional. Esse problema, que até eu pude verificar, pode ser constatado diariamente na prática judicial.
Com esse provincianismo, o Judiciário afasta ou ignora as normas internacionais pertinentes, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que apresenta, entre outras previsões, o direito de consulta aos povos indígenas, sistematicamente violado pelos três poderes institucionalizados.
Não se trata apenas do provincianismo constitucional, mas também de uma cultura jurídica infensa aos direitos humanos, pois a Constituição brasileira, que, ademais, apresenta uma abertura para o Direito Internacional no campo dos direitos humanos, deixa de ser aplicada em favor da lógica do saque e do extermínio, que regulou, historicamente, a relação entre os povos originários e os colonizadores.
Por conseguinte, as normas e instituições de Direito Internacional revelam-se importantes para a tentativa de contraposição a essa situação interna do Estado brasileiro.
Note-se que, em contraste com o provincianismo do Judiciário, as organizações indígenas têm-se mostrado atentas para a questão. No I Encontro dos Povos Indígenas na Fronteira “Um olhar segundo a Convenção 169 da OIT”, que ocorreu em junho de 2013 na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Os povos indígenas Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona e Taurepang elaboraram documento para os presidentes dos três Estados concernentes, Brasil, Guiana e Venezuela, solicitando, entre outras ações, “a ratificação da Convenção 169 da OIT pelo Estado da Guiana, assim como a sua regulamentação pelo Brasil e Venezuela que ratificaram esse convênio em seus estados” (http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7002). Com os povos indígenas se apropriando desses instrumentos internacionais, eles vão se tornando a vanguarda de um cosmopolitismo que ultrapassa os horizontes em geral estreitos de certa magistratura, que só vê o estrangeiro ou o internacional como oportunidade de citação ornamental ou de prestígio intelectual.
Os índios, na verdade, estão além, e não aquém, do Estado nacional...
Note-se que, em contraste com o provincianismo do Judiciário, as organizações indígenas têm-se mostrado atentas para a questão. No I Encontro dos Povos Indígenas na Fronteira “Um olhar segundo a Convenção 169 da OIT”, que ocorreu em junho de 2013 na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Os povos indígenas Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona e Taurepang elaboraram documento para os presidentes dos três Estados concernentes, Brasil, Guiana e Venezuela, solicitando, entre outras ações, “a ratificação da Convenção 169 da OIT pelo Estado da Guiana, assim como a sua regulamentação pelo Brasil e Venezuela que ratificaram esse convênio em seus estados” (http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7002). Com os povos indígenas se apropriando desses instrumentos internacionais, eles vão se tornando a vanguarda de um cosmopolitismo que ultrapassa os horizontes em geral estreitos de certa magistratura, que só vê o estrangeiro ou o internacional como oportunidade de citação ornamental ou de prestígio intelectual.
Os índios, na verdade, estão além, e não aquém, do Estado nacional...