Pessoas me perguntaram sobre o cancelamento de anistias publicado no dia nove de junho. Perfis de difamação da rede bolsonarista estão a parabenizar a Ministra Damares Alves por supostamente ter cancelado a "mamata" de alegados "comunistas". Trata-se de "fake news" dessa rede, evidentemente: não se trata de mamata, e sim de cumprimento de uma determinação constitucional. A ditadura militar atingiu milhares - muito mais do que os mortos e desaparecidos políticos que alcançaram menos invisibilidade pública - e por isso, o artigo oitavo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou que se concedesse "anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares". Veja-se que o período inclui da presidência de Dutra até 1988, pois atos de perseguição política ocorreram em todos os governos envolvidos.
Somente no século XXI, no entanto, o regime do anistiado foi regulamentado, pela lei federal n.º 10.559, de 13 de novembro de 2002, o que mostrou a pouca urgência que o Estado brasileiro teve em regularizar a dívida da repressão política.
Pelo que pude averiguar, os casos agora cancelados dizem respeito a anistias concedidas em razão da Portaria 1.104 da Aeronáutica. Antes do golpe de 1964, foi criada a Associação de Cabos da Força Aérea Brasileira (Acafab), que defendia o direito de voto e o de contrair matrimônio a esses profissionais - a FAB os impedia de casar.
A Comissão de Anistia, antes do atual governo civil-militar, apreciou o problema e verificou que a ditadura temia que a Associação agisse contra o governo e decidiu afastar as regras legais que "asseguravam aos cabos e praças os direitos à prorrogação do tempo de serviço e ao licenciamento" (cito o caso do requerimento de anistia n. 2001.01.01474); dessa forma, a Comissão entendeu que a Portaria "atingiu 'de maneira drástica', as praças e cabos, vez que limitava seu direito aos engajamentos anteriormente previstos na Portaria n. 570/54, retirando sua possibilidade de alcançar os anos exigidos para a estabilidade". No caso deste requerimento, decidido em 2002, reconheceu-se a condição de anistiado para militar que entrou a cabo "incorporado após a Portaria", pois a vigência da norma de exceção bastaria para definir a motivação exclusivamente política do desligamento. Após a revogação da Portaria, em 1971, a situação juridicamente mudaria de figura:
I - [...] Aqueles incorporados após julho de 1971, com a revogação da referida Portaria, terão que comprovar a motivação exclusivamente política de seu desligamento.II - Considerando os prazos de permanência nas graduações respectivas, referidos cabos alcançariam as promoções até a graduação de Suboficial e com os proventos de Segundo Tenente, com as vantagens inerentes ao respectivo posto.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade explicou que a situação desses militares suscitava muita discussão. Cito, do volume II, o capítulo "Violações de direitos humanos no meio militar": "Mesmo entre os militares perseguidos, de diversas categorias, não há entendimento sobre essa questão: há associações de militares que defendem os direitos dos cabos, relacionando-os aos dos grupos militares vitimados por perseguição política, e outras que acreditam tratar-se de um grupo específico, cujos direitos devem ser reconhecidos apenas na esfera administrativa."
Após o golpe de 1964, a Associação foi extinta:
[...] o Ofício Reservado no 04, do comando da Força Aérea, determinou o fechamento sumário da entidade, sob a alegação de supostas atividades subversivas. Outras medidas administrativas, de caráter preventivo, seguiram-se, como a Exposição de Motivos n.º 138, de agosto de 1964. A principal medida promulgada pela Força Aérea, a Portaria 1.104/GM – cujo objetivo seria, em tese, disciplinar administrativamente o quadro de pessoal – pretendia de fato abortar futuras manifestações políticas ou corporativas, particularmente no momento de exceção em que fora editada."
Em 2002, com a da [sic] Súmula Administrativa no 2002.07.0003, a Comissão da Anistia teve o mesmo entendimento, assim exposto: “A Portaria no 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo senhor ministro de estado da Aeronáutica, é ato de exceção de natureza exclusivamente política.” Com a promulgação da Lei no 10.559/2002, os cabos começaram a ser anistiados – geralmente com sentenças julgadas em bloco –, pautados nessa interpretação. Um documento do Comando da Aeronáutica, de 2006, indicava que havia 2.182 praças anistiados. Após essa data, outros praças da FAB obtiveram deferimento em seus processos.
Nessa época, 2014, a questão estava sub judice no Supremo Tribunal Federal. A CNV, embora reconhecesse a polêmica, decidiu, por não poder analisar individualmente os casos, contar todos os atingidos como perseguidos políticos: "Dadas a polêmica e a impossibilidade de avaliar e distinguir caso a caso, entre os cabos, aqueles que, de fato, haviam sido objeto de perseguição por razões políticas e aqueles que buscam direitos reparatórios sob tal alegação, optamos por incluir os cabos no cômputo total de militares perseguidos pelo levantamento da CNV."
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal finalmente decidiu o processo, que foi ganhou Repercussão Geral (https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/repercussao-geral7821/false), no Recurso Extraordinário n. 817.338, em julgamento que acabou em 10 de outubro de 2019, e firmou a seguinte posição:
No exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104/1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas.
Não sei se a Comissão de Anistia do atual governo civil-militar cumpriu as exigências do Supremo Tribunal Federal em relação a cada um daqueles casos; certo é que ela usou essa possibilidade de revisão individualizada dos casos, autorizada judicialmente, e que certamente aprovaria, depois da modificação da Comissão, realizada para aumentar o número de membros do governo.
Antes de 1964, não só o movimento dos sargentos, mas também o dos cabos era visto como de esquerda. Por exemplo, nesta informação reservada do Serviço Secreto do DEOPS-SP (guardada no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo), de 26 de junho de 1963, um informante traria informações de simpatia do PCB ao "movimento dos sargentos, cabos e soldados":
No caso, temos uma das várias disjunções entre política e direito: uma categoria considerada, coletivamente, suspeita pelo regime; no entanto, exige-se a comprovação individual da perseguição "exclusivamente política" para os efeitos do regime do anistiado político.
A ministra anunciou em 2019 que extinguiria a Comissão de Anistia em 2020, justificando com declaração absurda de que os requerentes estão com "idades muito avançadas"; com isso, ela ignora, ou finge ignorar, que os sucessores ou dependentes podem requerer, em nome do falecido, a condição de anistiado político.
Para a extinção do órgão, seria necessário mudar a lei 10.559, ou revogá-la. Neste caso, vê-se outra disjunção: a virada autoritária da política brasileira não foi acompanhada, ainda, da modificação do direito aplicável neste campo.
Esse direito ainda remonta à Constituição de 1988, que é o grande alvo dos militares, que voltaram diretamente ao governo, e dos liberais, que viram no retorno das fardas a possibilidade de continuação do programa que passaram a implantar depois do Golpe de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário