O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Desarquivando Brasil CLXXV: A primeira condenação criminal de um agente da ditadura militar brasileira

Em 21 de junho de 2021, o policial civil aposentado Carlos Alberto Augusto, mais conhecido como "Carlinhos Metralha", foi o primeiro agente da repressão da ditadura militar condenado penalmente no Brasil. Ele havia integrado a lista elaborada pela Comissão Nacional da Verdade de 277 autores de graves violações de direitos humanos. Na página 884 do tomo 2 do volume I do Relatório, encontramos um resumo dos crimes atribuídos a seu nome:

174) Carlos Alberto Augusto
(1944-) Delegado de polícia. Serviu no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), sendo conhecido como “Carteira Preta” e “Carlinhos Metralha”. Integrou a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Teve participação em casos de detenção ilegal, tortura e execução. Convocado para prestar depoimento à CNV, não foi localizado. Vítimas relacionadas: Carlos Marighella (1969); Eduardo Collen Leite (1970); Antônio Pinheiro Salles e Devanir José de Carvalho (1971); Soledad Barrett Viedma, Pauline Reichstul, Jarbas Pereira Marques, José Manoel da Silva, Eudaldo Gomes, Evaldo Luiz Ferreira de Souza e Edgard de Aquino Duarte (1973).

No início de 2015, ele, com seu capacete militar (que ele usava, dizia, em homenagem ao Exército, embora não o integrasse), foi estrela na avenida Paulista das manifestações golpistas que a grande imprensa insuflou. Mário Magalhães, na época, escreveu: "Quem permite um símbolo de tortura e extermínio ao lado admite a barbárie". Creio que admitisse e provavelmente até tenha votado nela...
Na foto da matéria de Magalhães, o atual condenado segura um cartaz absurdo: a CNV já tinha acabado e ele se evadiu de falar à Comissão, apesar da expectativa sobre o que diria. Em 2013, a "Frente de Esculacho Popular" realizara um ato em frente a sua casa em Itatiba.
No entanto, ele tinha aparecido em audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", a mando de Brilhante Ustra, com seguranças, no dia em que Marcelo Godoy falaria sobre seu livro A Casa da Vovó, sobre o DOI-Codi de São Paulo. 
Era 12 de dezembro de 2014, o relatório da Comissão Nacional já tinha sido entregue; a do Estado de São Paulo continuava funcionando. A audiência foi filmada. Com bastante desfaçatez, declarou que quis depor para a CNV... Ele tentou intimidar Amelinha Teles, mas não conseguiu, e Adriano Diogo, o presidente da Comissão começou a fazer-lhe perguntas sobre mortos políticos, que ele evitou responder.
Godoy lhe diz isto:

O SR. MARCELO GODOY – O senhor participou do massacre da Chácara São Bento, o senhor sabe muito bem o que foi feito na Chácara São Bento. 
Os senhores prenderam seis militantes da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] e assassinaram esses seis militantes lá, o senhor participou disso, o senhor sabe muito bem. 
Na boca do senhor o significado de guerra, significa apenas uma desculpa para assassinato e tortura, o senhor me desculpe, doutor.
Aliás, conhecido publicamente como “Carteira Preta”, eu já entrevistei o senhor no DEIC, em outros departamentos, porque o senhor, até pouco tempo atrás, não sei se ainda está na ativa da Polícia Civil de São Paulo, mas, o discurso que o senhor está começando a fazer é um discurso que é possível encontrar em todos os textos do Exército e de autores do Exército, que são publicados pela BibliEx.
Que eu vou dar um exemplo, Agnaldo Augusto Del Nero, que foi do Centro de Informações do Exército, o seu discurso, começando com 1935, é o mesmo discurso do Projeto Orvil, que foi feito pelo general Leônidas Pires Gonçalves, o discurso do senhor, é um discurso conhecido.
O que não se conhece, é o senhor chegar, é o senhor contar o que de fato o senhor fez, isso que não se conhece. (Palmas.)
O senhor tinha que contar o que o senhor fez, o senhor deveria falar que o senhor pegou o Anselmo, o senhor pegou o Anselmo e levou o Anselmo até Recife, e mataram uma mulher que estava grávida do Anselmo [Soledad Barrett Viedma].  

Depois, o deputado estadual Adriano Diogo indagou:

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Como é que foi morto o Edgard Aquino Duarte? O senhor pode esclarecer? Aproveita essa oportunidade, é importante. 
[...]
O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Só queria saber, o senhor conheceu o Edgard Aquino Duarte?
O SR. CARLOS ALBERTO AUGUSTO – Não o conheci e estou sendo acusado por isso, não o conheci.
O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O senhor nunca viu ele no corredor do DOPS? 
O SR. CARLOS ALBERTO AUGUSTO – Nunca vi. 

Nada viu, nada soube, mas reclamou do apelido que lhe deram os presos políticos por entrar na carceragem com metralhadora. Alegou também nunca ter feito isso, e que gostara de trabalhar no DOPS porque a polícia civil era "legalista"...
Perto do fim da audiência, na qual Carlinhos Metralha nada revelou, Godoy fez esta reflexão:

O SR. MARCELO GODOY – Esse é o tipo de dificuldade que a gente encontra, toda vez que você vai tentar conversar com as pessoas que trabalharam nos órgãos de repressão no período, DOPS, no DOI, etc.
Algumas dessas pessoas continuam até hoje, como mesmo discurso que tinham no passado. Essas pessoas, elas continuam, vamos dizer assim, sequestrando intencionalmente a memória, a verdade.

O policial apareceu para levar o livro de Godoy para Ustra. Poucos meses depois, na véspera do lançamento do relatório da Comissão "Rubens Paiva", que ocorreu em 13 de março de 2015, ele telefonou para saber se haveria livro impresso. Infelizmente não (até hoje a Alesp não se interessou em imprimi-lo), ele ficaria todo disponível on-line (ainda está). O policial não compareceu ao evento.
Ele ainda estava em atividade e por isso foi aberta sindicância na Polícia Civil para apurar as denúncias da época da ditadura. Acompanhei, como advogado, César Augusto Teles (que era da imprensa do PCdoB e foi preso e torturado por isso) para depor. A denúncia do processo criminal já tinha sido proposta. César depôs no processo criminal também. Infelizmente, ele morreu em dezembro de 2015; teria gostado de ver esta condenação.
A denúncia criminal do caso de Edgar de Aquino Duarte era de 2012. Segundo o Ministério Público Federal, o policial participara do sequestro e da prisão ilegal, bem como do desaparecimento forçado da vítima:



Ustra e Alcides Singillo também foram denunciados, porém morreram em 2015 e 2019, respectivamente. Ustra havia sido declarado judicialmente torturador em um processo cível movido pela família Teles, em um caso pioneiro e ainda único no país.
Como se tratava de processo cível, a lei de anistia não tinha relação alguma com a questão. Mas, na verdade, ela tampouco deveria gerar efeitos no processo penal (caso da condenação deste 21 de junho), tendo em vista a proibição de leis de autoanistia pelo Direito Internacional, a restrição constitucional dos efeitos da anistia (que foram estendidos apenas às vítimas, e não aos agentes da repressão), e pela própria redação da lei, que fala de "crimes conexos" aos políticos (como, por exemplo, uso de documentos falsos pelos membros das organizações de esquerda), e não dos crimes de lesa-humanidade da ditadura.
Ademais, ocorreu no caso um crime permanente (o corpo jamais apareceu), não caberia falar de prescrição, tampouco estaria coberto pela lei de anistia (mesmo para quem admitisse que ela fosse aplicável aos agentes da repressão). 
Essas questões, por sinal, até hoje não forma julgadas em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal; pende ainda recurso da ADPF 153, relativa à lei de anistia, e não foi julgada a ADPF 320, que trata da sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia). 
Nas alegações finais, o Procurador da República Andrey Borges de Mendonça citou, entre outros materiais, o parecer do então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em 2014 na ADPF 320:

Sequestros cujas vítimas não tenham sido localizadas, vivas ou não, consideram-se crimes de natureza permanente (precedentes do Supremo Tribunal Federal nas Extradições 974, 1.150 e 1.278). Essa condição afasta a incidência das regras penais de prescrição (Código Penal, art. 111, inciso III) e da Lei de Anistia, cujo âmbito temporal de validade compreendia apenas o período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (art. 1º).
Instrumentos internacionais, a doutrina e a jurisprudência de tribunais de direitos humanos e cortes constitucionais de numerosos países reconhecem que delitos perpetrados por agentes estatais com grave violação a direitos fundamentais constituem crimes de lesa-humanidade, não sujeitos à extinção de punibilidade por prescrição.
Essas categorias jurídicas são plenamente compatíveis com o Direito nacional e devem permitir a persecução penal de crimes dessa natureza perpetrados no período do regime autoritário brasileiro pós 1964.

A condenação de junho de 2021 tem sólido fundamento jurídico; se antes não ocorreu em casos semelhantes, o obstáculo é de natureza política. Dessa forma, um eixo da justiça de transição, o da investigação e condenação dos agentes de graves violações de direitos humanos, começa a ser realizado mais de três décadas depois do fim da ditadura. 
Quem era a vítima? Edgar de Aquino Duarte era marinheiro e tinha participado da revolta dos marinheiros de março de 1964. Com o golpe, foi atingido pelo primeiro Ato Institucional e exilou-se. Apesar de ter sido absolvido pela Justiça Militar, ele foi "preso" (ocorreu, na verdade, um crime de sequestro) depois de voltar ao Brasil. A notícia do Ministério Publico Federal ("MPF obtém sentença histórica contra ex-agente da repressão por crime político na ditadura") explica que, quando foi sequestrado, em 1971, "trabalhava como corretor da Bolsa de Valores de São Paulo e já não tinha nenhum vínculo com grupos de oposição à ditadura.". 
No entanto, ele abrigava o infiltrado Cabo Anselmo, que o delatou. Cito o perfil preparado pela Comissão "Rubens Paiva":

É controversa a data na qual Anselmo começou a colaborar com os órgãos de segurança, pois há indícios de que seu trabalho como agente infiltrado nas organizações de esquerda tenha se iniciado antes de sua suposta prisão. Os depoimentos de Anselmo encontrados no DOPS/SP, um deles datado de 4 de junho de 1971, e já mencionados em outros casos, não deixam dúvidas sobre os alvos de sua perseguição: os dirigentes da VPR e das demais organizações que mantinham contato com ela. Anselmo teria sobrevivido simulando não ter sido preso, tornando-se uma “isca” para atrair contatos.
Edgar permaneceu preso na cela 4 do “fundão” (conjunto de celas individuais, isoladas) no DOPS/SP, durante três meses. Em agosto de 1971, esteve no DOI-CODI/RJ, quando conversou com os presos Manoel Henrique Ferreira e Alex Polari de Alverga. Em outubro e novembro de 1971, esteve no DOI-CODI/SP, onde também foi visto por Manoel Henrique Ferreira. Em julho de 1972, esteve no Regimento de Cavalaria localizado no Setor Militar Urbano de Brasília por oito ou nove meses, retornando ao DOPS/SP, onde foi visto entre 19 de março e junho de 1973. 
Durante todo esse período, conviveu com diversos presos políticos, contando sua vida de prisão e torturas. Edgar dizia ter tido uma entrevista com um oficial do Exército que lhe dissera
que seu caso estava à disposição do CIE. Visto pela última vez em junho de 1973, no DOPS/SP, estava barbudo, cabeludo e muito debilitado fisicamente. Os carcereiros retiraram-no da cela no “fundão” do DOPS/SP e o levaram para um corredor e diziam que ele deveria tomar sol porque, em breve, seria libertado. Mas isso era uma farsa, Edgar comentou rapidamente com outros presos: “Eles vão me matar e dizem que eu vou ser libertado”. 

O juiz federal Silvio César Arouck Gemaque, na sentença, fez esta importante e correta observação: "verifico que o fato foi praticado em um contexto de graves violações aos direitos humanos, denotando a conduta do acusado uma acentuada reprovabilidade social". 
A impunidade no Brasil é quase um segundo solo, sobre o qual alguns pisam, e outros afundam e desaparecem. Apesar de o réu ser primário, o fato de o crime ter sido cometido em uma época de exceção evidentemente justificava agravar a pena.
Além do reconhecimento do regime de exceção como agravante, devo elogiar que o juiz tenha aplicado o direito aplicável, o que, infelizmente, não é nada comum no Brasil quando se trata de direito internacional (esse foi o assunto de minha tese de doutorado, por sinal)... Ele aplicou o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, "no caso Gomes Lund e outros, bem como no caso Herzog, determinou a punição dos crimes, sua caracterização como crimes contra os direitos humanos e a imprescritibilidade dos mesmos".
Trata-se de dois casos em que o Estado brasileiro foi condenado em razão da impunidade dos crimes da ditadura militar (essa impunidade é um dos fatores que levou Bolsonaro ao poder, creio). No tocante ao controle de convencionalidade. citou o internacionalista Valério Mazzuoli, em contraste com o provincianismo constitucional que costuma presidir a cultura jurídica brasileira. 
Outro ponto importante é a recusa da "teoria dos dois demônios", um arrazoado que tenta criar uma falsa simetria entre a ditadura e seus opositores. O juiz Arouk Gemaque é bem claro a respeito:

É certo que o período histórico em questão (guerra fria), e a situação política radicalizada no Brasil da época, envolvia a prática de excessos tanto de um lado como de outro, no entanto, em hipótese alguma, é admissível que forças estatais de repressão, mesmo em regimes como os vivenciados naquela época, tivessem autorização para a prática de atos à margem da lei em relação a EDGAR, permanecendo preso por pelo dois anos, incomunicável, submetido a toda a sorte de violências, torturas e tratamentos degradantes.

Como a pena foi de dois anos e onze meses de reclusão, em regime inicial semi-aberto, e o réu não perdeu o cargo, o Ministério Público recorrerá. É muito provável que o réu também o faça. Vamos ver quanto tempo demorará esta primeira condenação criminal de agente da ditadura, pois certamente a lei de anistia será invocada em recurso e, enquanto alguns sequestram pessoas e, depois, a verdade, outros sequestram a justiça e, assim, verdade e corpos continuam ausentes .

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