O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

"No dia do seu passamento/ não só os nazistas choraram"


I. A leitura em branco



No dia do seu passamento
não só os nazistas choraram,
mas todos eles o fizeram
no dia do seu passamento.

Também os fascistas choraram,
não só eles, mas eles todos
no dia do seu passamento.

Quanto pranto dos homofóbicos,
dos racistas e dos misóginos
seco derramado sob máscaras
no dia do seu passamento

enquanto o corpo alimentava
mais vermes, também iletrados
agora totalmente em branco.



II. Fala da garganta inflamada ao vírus


– o vírus, que não existe,
não me atinge, pois só
pertence à ordem do letal
o que existe, e somente
pode atingir o existente
aquilo que também o seja,
por conseguinte teu cu
também não me atinge,
após as estocadas
das minhas aulas
ele não mais existe,
virou falha geológica,
e não há nenhuma
onde habito, uma região
do maior país do mundo,
não no cu de terra onde inventam
um vírus, portanto
as vacinas inoculam
a inexistência, destruindo
a ordem, a propriedade, a fé
e o bom gosto, claro,
porém, assim como descobri
que a terra é plana
porque minha bunda não é curva,
sei que o vírus não existe,
é o que dizem os números,
só morreram pessoas com órgãos,
portanto foram eles que falharam,
morreram pessoas sufocadas,
ou seja, falhou a atmosfera
que fugiu momentaneamente do espaço,
comprovando o erro da lei da gravitação universal
do imbecil do Newton ou do Einstein,
comunistas que queriam negar
o voo dos anjos,
a falha é da atmosfera, não
do corpo, e o vírus é somente
quase um corpo
ou um cu, que é feito de oco
e por isso quase inexistente.


III. Luta oficial


a principal diferença entre um pangaré de carroça e um puro sangue não é a cor
o direito racial é racismo
fiquem eles com os rituais com galináceos pretos
eu fico com n. s. jesus cristo
e a uma higiênica distância em caso de mau cheiro
dos cantores negros que vendem 5 milhões de discos
dos gays e das lésbicas

a contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo
a contribuição cultural das religiões africanas no mundo é perfeitamente dispensável
o normal é ter uma oligarquia no poder
é falso que a ditadura impeça o exercício da atividade intelectual
aliás não fez mais do que duzentas vítimas
mas
o Estado prende na armadilha da pior das tiranias uma imensa rede de serviços públicos
até de saúde

até de saúde
o pensamento de um filósofo não se deduz das crenças gerais da comunidade
eu fico com n. s. jesus cristo
a religião é um valor universal uma condição sine qua non das culturas
colocá-la abaixo do vírus é monstruoso

é verdade que
tendo matado o gigante do comunismo a dentadas
o herói descobriu que o falecido era aidético

uma verdadeira cultura literária pode corrigir essas distorções
introduzindo na vivência da obra o senso das proporções e da conveniência

um puro sangue


IV. Resposta do vírus à garganta inflamada


Embora tente,
não logro ouvir
que não existo
enquanto roo
o fio do fôlego;
enquanto piso
no seu pescoço
não ouço a voz
que rouca explica
que não existo
para a doutrina
que administra
o genocídio,
não posso assim
saber-me nada,
sumo nihilo,
não logro ouvir
por que a língua
contrai-se em ricto,
vermelho verme
agora inerte,
soa tão mínima
quanto as bactérias
que se alimentam
de sua matéria, a
filosofia
talvez provenha
agora delas,
como a que explica
que não existo
segundo toda a
economia,
ela jamais
contabiliza
corpos caídos
caso não possam
ser revendidos;
também segundo
a teologia
pois ninguém sofre
do inexistente,
morrer do vírus
trairia a fé
em deus pela
ímpia crença
no genocídio,
e quem morreu
não paga dízimo,
o que comprova a
falta de fé
dos que caíram;
mas tudo isso
é o que ensinam,
e nada aprendo:
infesto o sangue
de meu silêncio;
como eu, o vírus
não tenho ouvido,
continuo sendo,
não ouço aqueles
que me revelam
inexistente,
nem mesmo quando
alto ressoam
tosses, gritos
e os estertores,
e aos pulmões juntam
respiradores,
eu não consigo
saber enfim
que não existo,
e assim prefiro,
pois o inaudível
é bem mais vivo
do que a teoria.


V.  Luto antioficial


Os que cairiam
por tua causa
saudamos
a queda
que entre ti
e nós
escolheu
o que lhe era semelhante

domingo, 23 de janeiro de 2022

O Twitter, a pandemia e as informações falsas: uma retrospectiva de 2021

Eu não planejava fazer nenhuma retrospectiva do segundo ano da pandemia de covid-19. No entanto, na semana anterior àquela em que escrevo esta nota, surgiram vários tópicos no Twitter (uma rede social, é bom lembrar, de notável insociabilidade) sobre os duvidosos procedimentos dessa rede em relação à pandemia, especialmente a manutenção de mensagens e perfis de desinformação (sempre, nada coincidentemente, em apoio não só ao vírus, mas ao governo federal).

Entre eles, destaco #TwitterApoiaFakeNews, #TwitterCumplice, #TwitterOmisso, #TwitterVergonhoso, #TwitterApoiaMentira e #DerrubaMalafaia. O ano de 2022 começou com conflitos dentro do governo, com Jair Bolsonaro em disputa com a Anvisa por conta de vacinação de crianças (o que suscitou ameaças à vida dos servidores da Agência por parte de apoiadores do governo), com deputada federal bolsonarista divulgando dados pessoais, obtidos junto ao Ministério da Saúde, de médicos que defendem a vacinação infantil, entre outras questões que se refletiram na rede social. 

Campanhas que contaram com a participação de perfis críticos ao ocupante da presidência da república, como Desmentindo Bolsonaro, Tesoureiros, Sleeping Giants Brasil, A boca de lobo, Jairmearrependi, Bolsominions arrependidos. Elas levaram o Twitter a aplicar suas próprias regras e a suspender temporariamente os perfis dos bolsonaristas Luciano Hang e Silas Malafaia, o empresário e o pastor (ou o contrário, tendo em vista a intercambialidade entre foi e crédit, já vista por Heine) em 13 de janeiro de 2022. 


Essas mobilizações deram-se por causa da enorme presença de desinformação no Twitter no ano de 2021. Ela ocorre também em outras redes, e a Agência Aos Fatos sintetizou em gráficos os dados que ela checou sobre o coronavírus em 2021 em várias redes. 

O Twitter afirmou que apagou uma média de 7 tweets por hora de desinformação em relação ao covid-19 (segundo a versão brasileira da BBC News). Escrevo esta breve nota para apenas lembrar de alguns desses momentos do ano, que provavelmente ajudaram no prolongamento da pandemia, com ênfase na atuação de políticos. 

As campanhas contra as informações falsas sobre covid-19 acabaram levando à criação de um mecanismo de denúncia em 17 de janeiro de 2022, com a pandemia prestes a completar dois anos. 


Notem a falta de urgência da rede social em fazê-lo e o baixo e redondo número de 10% de denúncias acatadas. Talvez isso se devesse à benevolência com que poderosos são tratados. Donald Trump, é verdade, acabou sendo banido em 8 de janeiro de 2021, mas é incerto que isso teria acontecido se ele tivesse se reelegido, ou se alguma outra forma de permanecer no poder tivesse prosperado. 


O banimento ocorreu depois da tentativa de golpe do Estado nos EUA no início do ano, quando militantes trumpistas tentaram impedir a posse de Joe Biden. 
Dias depois, Jair Bolsonaro teve um tweet sinalizado pela rede social:

A desinformação sobre "tratamento" precoce de covid-19 tinha por base esse vídeo com Alexandre Garcia. No dia 24 de setembro, o jornalista, por sinal, seria demitido de sua emissora de televisão por insistir na indicação desse tratamento.

Bolsonaro, no entanto, poderia ter simplesmente usado como fundamento as orientações do próprio Ministério da Saúde, que havia defendido a mesma posição em 12 de janeiro, que também acabou sendo sinalizado pelo Twitter:


Note-se que, no momento em que escrevo esta nota, o Ministério da Saúde aprovou nota técnica de crítica à vacinação e elogio à hidroxicloroquina.

O Twitter, contudo, não marcou nem retirou tweets como estes, que vieram do filho deputado federal:



Escolhi apenas dois, de 19 de março e 6 de abril. Mais complexos foram os tweets que combinaram  a advocacia do "tratamento" com algum outro tipo de informação falsa. Em 31 de janeiro, vimos esta deputada federal fabular sobre o imaginário reconhecimento pelo Facebook da suposta efetividade do remédio que Jair Bolsonaro oferece a emas:


O filho deputado federal repetiu esse tweet com o nome dele no dia seguinte, acrescentando frases aleatórias com seu português alternativo ("Quantas vidas não foram perdida?"). 

A informação falsa veio do portal R7 e foi desmentida pela agência Aos Fatos ("Facebook não admitiu erro nem disse que hidroxicloroquina é eficaz contra Covid-19") em 4 de fevereiro.

Os tweets continuam lá, sem sinalização alguma.

Em 4 de abril, o tópico "Fraudemia" foi a primeiro lugar, reunindo perfis que negavam a existência de uma pandemia - uma das formas pelas quais o negacionismo da ciência tem se manifestado. 


Embora os números oficiais estejam provavelmente subestimados, seja por falta de notificações, seja por causa dos mortos por sequelas do covid-19 que não contaram entre as vítimas oficiais da doença, um dos motes da direita é pretender que estejam exagerados. Trata-se de outra forma de lutar contra a memória, além de apagar os registros e impedir não só o acesso, mas a própria existência de dados oficiais, neste complexo de ações e omissões que correspondem a uma das políticas de amnésia do atual governo militar.

Para atender à visão conspiratória que a direita precisa alimentar para inflamar seus seguidores e afastá-los do mundo, a pandemia foi atribuída à esquerda e à grande mídia: 


Muitos também a atribuem à China, aos comunistas, aos globalistas etc. É claro que o governo federal não possui responsabilidade alguma para esses perfis de propaganda.

Em abril, a abertura da CPI da Pandemia, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal depois de o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ter tentado inconstitucionalmente impedi-la, gerou desespero nas hordas bolsonaristas, que se expressou em tweets que morreram dentro da bolha dos apoiadores do governo federal.  Vejam o comentário de Pedro Barciela:

 


Como é usual nas redes sociais da direita no poder, inúmeros tweets que configuram crime contra a honra, tentando enlamear Ministros do Supremo Tribunal Federal, foram escritos e retransmitidos, o que não configura novidade. O rebaixamento do debate público, seja por estratégia, seja por necessidade, é uma das táticas mais próprias da direita, tentando impedir que ideias mais complexas, mais próximas da realidade, possam ser ouvidas ou até mesmo concebidas. 

A quantidade de crimes contra a honra e de ameaça à vida dos Ministros foi tão grande que o Tribunal resolveu publicar esta nota em 9 de abril:


Como se sabe, a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito é um direito das minorias no Parlamento; trata-se de um instrumento para que possam exercer atividades de fiscalização e investigação. A antidemocrática tentativa do presidente do Senado de esmagar a minoria, embora não pudesse encontrar acolhida judicial, encontrou eco na miríade de perfis bolsonaristas, que também ansiavam pelo "esmagamento" da CPI e seus membros, e tiveram de se contentar com a inundação de mensagens de ódio na internet.
Muitos relembram, nesses momentos, e reproduzem como um mantra da direita, com o objetivo de impedir ou intimidar o Judiciário na sua ação de controle dos atos do Executivo no sistema de freios e contrapesos, a ideia do então ministro da educação, o professor da Unifesp Abraham Weintraub, de prender os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Este é um exemplo de 15 de abril, entre inúmeros. O tweet permanece intocado na rede social:


Lembro proposta foi apresentada em um reunião ministerial em 2020, que foi divulgada, com grande repercussão, depois de pedido de Sérgio Moro, ex-ministro da justiça, ex-magistrado, ex-professor de Direito da UFPR, autor de sentenças anuladas contra Lula e consultor investigado

Nesses momentos, lembramos que o bolsonarismo, enquanto, com o uso do 'Partido Militar", não consegue cooptar todas as instituições, faz uso desses efeitos de massa (terrivelmente inflados com os perfis automáticos e falsos) para constrangê-las. Muitos sabem, apesar dos silêncios cúmplices de certos meios de comunicação e de instituições, que o ocupante da presidência da república quis fechar o Supremo em 2020 e não encontrou apoio para isso nas Forças Armadas (relembro a matéria de Mônica Gugliano para a Piauí, "Vou intervir!"). O barulho criado é uma forma de fingir que há respaldo popular para o autoritarismo presidencial. 
Lembramos também que os apoiadores e aliados ainda existentes do ocupante da presidência não o são por acaso e ajudam-no a cumprir suas promessas e credo político; afinal, já pré-candidato, o então deputado federal vociferou: "E as minorias que se curvem!" (matéria de Lia Bianchini para o Brasil De Fato).
A estupefação foi grande com a criação da CPI, no entanto algo absolutamente corriqueiro em uma democracia; tratava-se de sinal de que o governo tinha muito a temer. Este portal de notícias da área de defesa e de apoio ao atual governo militar, depois de dois dias, ainda não tinha conseguido entender a nota do STF:

Entendo. "Constituição" e "leis", palavras presentes na curta nota do Tribunal, sobre os quais milhares e milhares de páginas já foram escritas na Teoria do Direito e na Teoria Política, devem ser realmente termos de difícil compreensão nesta era pós-golpe de 2016, ou até mesmo em qualquer tempo, se pensamos nos apoiadores do bolsonarismo.

Como o Twitter reagiu? É esta a questão da minha nota, e motivo pelo qual relembro . Pois bem: a rede social manteve no ar as mensagens que chamavam o STF de organização criminosa, cúmplice de bandidos e outras de teor análogo, como as que atacavam pessoalmente os Ministros; não as indico aqui, pois a fala do bolsonarismo é a do esgoto não tratado e a céu aberto. Lembro também o uso da retórica cristã, por alguma razão muito apreciada pelos fascistas, para demonizar o Tribunal e seus Ministros.

O Twitter, ao longo dos trabalhos da CPI, também manteve os incontáveis ataques aos membros oposicionistas da CPI da Pandemia, que incluíram, já que, como sempre digo, a homofobia é porta de entrada do fascismo, insultos homofóbicos e, uma vez que havia senadoras na oposição, misóginos, pois a misoginia é o pão diário dos perfis bolsonaristas. 

Em 22 de maio, a conjugação entre a nefasta política de saúde e a danosa política exterior gerou uma observação irônica do Embaixador chinês. O Ministério da Saúde propagandeou que "insumos do exterior" para a produção da vacina AstraZeneca/Fiocruz haviam chegado. 

Talvez a referência geograficamente vaga decorra do fato de que o governo e seus apoiadores ostentam um discurso antichinês. Yang Wanming comentou que o envio era "feito para amigos":

O Ministro da Saúde viu-se obrigado a agradecer publicamente ao Embaixador. A omissão da informação no tweet original, porém, não configura motivo para removê-lo ou sinalizá-lo. Lembro dele aqui somente porque ele provocou nova onda de mensagens racistas contra os chineses, escritas pelos perfis defensores do governo. Não as reproduzo aqui. Desde 2020 acusam a China de ter criado a pandemia (que, no entanto, não existiria, segundo esses mesmo perfis...) para matar o Ocidente (embora, segundo os mesmos, a doença não mate...), em alianças fantasiosas com Soros, o MST, Hollywood e Cuba.

As ofensas à China e aos chineses manifestam-se também no tocante à vacina Coronavac. Cito este porque veio de um assessor deste governo que, com muito tirocínio, costuma escolher pessoas incompatíveis com as áreas em que irão atuar. 

Esse tweet hostil a esse Estado estrangeiro acabou sendo citado na CPI da Pandemia. O assessor , que acabou apagando esse escrito (resgatado nesse momento, 28 de março, pelo perfil do Twitter Jairmearrependi), trabalha mais ou menos na área de Relações Internacionais. No caso, ele estava "trabalhando" em atacar um adversário político de Jair Bolsonaro, João Doria, um presidenciável do PSDB. Para esse fim eleitoreiro, usou um insulto ofensivo aos chineses... To add insult to injury...

Parecem ridículas, mas as narrativas do bolsonarismo dariam o roteiro de um filme C. As crises políticas e sociais nele implicadas vivem de braços dados com a crise estética. Daí, talvez, o combate à arte seja tão importante para correntes políticas desse tipo.

Outro ponto importante: não há bolsonarismo sem cu; trata-se, porém, para a direita, de um órgão infeliz, infausto, enfezado. A referência a esse termo central do bolsonarismo, escrito de diversas formas para burlar, talvez, os mecanismos automáticos da rede social (cool, coll, cú, c, kú etc.), gerou um número enorme de tópicos e discussões. Creio que se trata do principal termo gerador de discursos dessa corrente política, mais importante ainda do que "arma", ou melhor, o cu é uma arma verbal mais usada pelos bolsonaristas do que o significante "arma".

A CPI desconcertou os bolsonaristas, que soltaram os discursos do cu, que se acoplaram à pandemia. Em 10 de maio, o filho vereador brindou-nos com seu talento para os apelidos:

Em 28 de maio, o filho senador, fazendo coro a tentativa de Jair Bolsonaro escapar das investigações corajosamente invocando líderes evangélicos para defendê-lo:

Em 30 de maio, o filho vereador soltou mais esta:

O mesmo filho, em 9 de junho, voltou a acoplar à pandemia este significante central do bolsonarismo,  o cu, desta vez referindo-se a Lula. Percebe-se que os bolsonaristas já o entronizaram como presidente paralelo em exercício, ao ponto de Jair Bolsonaro tê-lo obedecido e usado máscara em 10 de março, depois do discurso, de repercussão mundial, em que o estadista tratou da recuperação dos direitos políticos após a anulação da persecução judicial que sofreu.

Além do óbvio medo da CPI e de Lula, a mensagem é notável por confirmar o reiterado deboche em relação a esta doença, embora não se compare à crueldade do ocupante da presidência da república imitando algumas vezes pessoas morrendo com falta de ar. Jair Bolsonaro fez isso pela primeira vez em 18 de março de 2021, o que deveria ser o suficiente para o impeachment, se não houvesse a cumplicidade do Poder Legislativo. Aliás, a falta de oxigênio em Manaus no fim de 2021 confirmou que o sufoco não é mais metáfora: tudo é literal no bolsonarismo, e agride. Sei, porém, que quem votou nele quer isso mesmo (é um dos tópicos reiterados dos bolsonaristas), admirador das práticas de desejar a morte dos adversários políticos, seja por doença, seja por fuzilamento, ou simplesmente massacres.

Em 16 de junho, o irmão vereador falou de discurso do irmão senador sobre a CPI desta forma:

Seria o caso de a rede social apagar esses tweets ou sinalizá-los? Provavelmente não, penso agora, embora devessem ser um problema em termos de decoro público para as casas parlamentares desses nobres legisladores. No Twitter, seria possível que eles postassem imagens do próprio órgão; caso o façam, pode-se sinalizar a imagem para que a rede social a marque com uma advertência de que se trata de imagem para "adultos". Em revanche, devemos notar que, curiosamente, o trocadilho usado não é coisa de adultos. 

As medidas de distanciamento social muitas vezes são alvo dos apoiadores do governo federal. Em 25 de maio, o deputado federal filho publicou isto, em contraponto à CPI da Pandemia:

A mensagem desinformativa sobre lockdown só faltou incluir o elogio supostamente sanitário às aglomerações com apoiadores promovidas pelo pai dele.

Em 6 de junho, tivemos um dos momentos mais constrangedores da comunicação oficial do governo brasileiro, que já mostrou dificuldade em compreender textos jornalísticos. Desta vez, graças a uma tradução errada, o governo chegou a conclusão ridiculamente irreal e insultuosa de que a revista liberal The Economist queria "eliminar" Bolsonaro. A Secretaria aproveitou para propagandear que "milhões de vidas" foram salvas:


Temos aí um bom exemplo de um curioso amálgama entre ignorância e vitimismo, tão forte na receita tóxica do bolsonarismo, pois ele precisa pretender o tempo todo de que o "sistema" persegue-o, com o fim de galvanizar seus apoiadores pelo uso da visão conspiratória do mundo. Afinal, a modesta ou devastada realidade não terá o condão de estimular quase ninguém a favor do governo. 
No tocante à alegação de milhões de vidas salvas, no dia 6 de junho de 2021 o país ultrapassou o número de 473 mil e quatrocentos mortos de covid-19. 
Era uma notícia falsa, pois, que a rede social acolheu.

Nessa dificuldade de leitura e de interpretação, o governo segue fielmente seu líder. Bolsonaro, como se sabe, não sabe nem identificar o título de um jornal numa página. Para mencionar um exemplo, em julho de 2018, o então candidato fez a ridícula confusão do Tribune de Genève com o Le Monde, só porque a seção internacional desse jornal suíço chamava-se, adequadamente, "Mundo", ou "Monde", em francês - nem era "O Mundo"... 

O eleitor dele votou nisto aqui:


Novamente, o amálgama de vitimismo e ignorância, em uma curiosa retroalimentação tóxica de que vive a comunicação bolsonarista. O Twitter não marcou como desinformação esses tweets do governo.

Em 9 de junho, os tweets de ataque ao Supremo Tribunal Federal, que, em geral, são mantidos pelo Twitter, levaram a Corte a fazer este pequeno fio:


Uma das desinformações recorrentes que os perfis (muitos aparentemente automatizados) é a de que o STF impediu "Bolsonaro" de "agir" na pandemia. Na verdade, ele apenas impediu o governo federal de impedir os Estados e Municípios de tomarem suas medidas de prevenção, uma vez que a Constituição de 1988 determina que a saúde é uma área de competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Poder-se-ia pensar que mesmo o bolsonarista mais idiota já teria notado que não existem apenas hospitais públicos federais, mas também estaduais e municipais; ou que até o bolsonarista mais raso tenha alguma noção de que não é a União que comanda o serviço de saúde do Município onde ele mora, ou do Estado, já que existe a autonomia desses entes. Depois que vi uma bióloga doutoranda em certa universidade federal, que, ademais, trabalha na área de saúde pública, repetir essa desinformação bolsonarista, percebi que esse tipo de estupidez pode acometer até pessoas que trabalham nessa área e deveriam saber mais do que os outros. Quando expliquei, parece que entendeu, e até acabou percebendo que o financiamento da ciência (ela recebe bolsa) diminuiu drasticamente (e piorará) com o obscurantismo deste novo governo militar.

Em 28 de julho, após outra série de ataques, o STF voltou a defender-se:

´
É de se perguntar quem está a financiar essas campanhas massivas de desinformação, tendo em vista os perfis automatizados, em mais um milésimo exemplo do capital conspirando contra a democracia no país.

Também são mantidos pela rede social tweets que chamam a pandemia de fraude, ou "fraudemia", e atacar não só a vacinação como as máscaras, em geral chamadas de "focinheiras". Um exemplo é esta síntese pró-pandemia de 11 de junho


Quando lecionava Direito Internacional Público, gostava de lembrar que os grandes problemas da humanidade passavam por esse ramo do Direito. Como, no campo jurídico, o bolsonarismo é isolacionista, em uma afetação de nacionalismo (num patriotismo que só chega até a página 2, até visitar a CIA, bater continência para a bandeira com estrelinhas e gastar todo o inglês dizendo "I love you" para o chefe de Estado estrangeiro que ele chamava de "noivo"), a recusa ao Direito Internacional e a tribunais internacionais conjuga-se à cegueira provinciana de negar a dimensão global de questões como a saúde pública. 

O tweet também foi mantido pela rede social, assim como outros da categoria "fraudemia".

Araraquara foi a primeira grande cidade brasileira a impor um lockdown contra a pandemia. O prefeito, Edinho Silva, é do PT. Uma rádio bolsonarista divulgou um áudio de whatsapp de autenticidade jamais confirmada afirmando que as pessoas, em consequência, estavam a passar fome e a devorar os animais domésticos.

Cito o Congresso em Foco sobre o imbróglio. O coronel da PM Ricardo Mello Araújo, estava no programa e preside a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp) e acusou o prefeito de ser responsável pelo "caos na cidade":


Ele já coordenou ações de envio de alimentos à cidade de Araraquara durante a pandemia em um evento aproveitado politicamente pelo presidente da República Jair Bolsonaro. 

Mello é um dos nomes mais próximos a Bolsonaro no estado e foi colocado pelo presidente da República no comando do entreposto, que é responsável por uma parte significativa do abastecimento de alimentos da principal cidade do país. Ele concedeu a entrevista à Jovem Pan (rádio que também é alinhada ao discurso conservador do presidente da República), mas não indicou se investigou a procedência do áudio.


A Prefeitura negou a história, mas a desinformação propagada pela rádio governista permaneceu e serviu para alimentar diversos tweets, que a rede social manteve, como este de 21 de junho:


Para ressaltar a postura do Twitter em termos de incentivo à desinformação, esse perfil bolsonarista foi recentemente "verificado" pela rede social com o selo azul após o nome, o que significa que a conta é de "interesse público" e autêntica. No caso, o interesse público foi negado, desvirtuado, pois convertido em mero interesse do governo.

Tratou-se de mais um dos casos em que o jornalismo "funcionou" renunciando ao próprio trabalho, pois não checou fontes e não tentou ouvir outras partes. E mais uma prova de que esses serviços de mensagem, que é aquilo que a maior parte da população conhece como internet, assim como algumas redes sociais cujos aplicativos podem ser baixados no celular, não configuram uma esfera pública.

No plano federal, a CPI da Pandemia prosseguiu seus trabalhos, encontrando indícios de tentativa de corrupção bilionária Ministério da Saúde militarizado, o que gerou uma nota corporativista do Ministério da Defesa atacando o Senado Federal. Celso Rocha de Barros ironizou o episódio assim:


Era o que dizíamos que ocorreria com a volta explícita dos militares ao poder. No Twitter, veio sem nenhum impedimento da rede social nova onda de ataques à CPI e seus membros e, especialmente, ao Senador Omar Aziz, alvo da nota dos militares. 

Em 7 de setembro, irrompeu a tentativa de golpe via apoiadores do governo federal, que felizmente falhou de forma grotesca. Porém, simultaneamente ele deu certo, pois o governo prossegue. A direita tem um habeas-corpus informal para ameaçar a democracia.

Desde junho eu lia tuítes que conseguiam usar a transfobia como poética de mensagens contra a vacinação. Alguns vídeos chegaram a combinar essas duas linhas execráveis, que a direita tomou para combate contra os brasileiros. Em 26 de setembro, um vereador mineiro resolveu pegar carona na palavra-insulto "transvacinado":


Nesse momento de pequeneza ética e política, além da campanha contra a saúde pública (que fere o decoro mínimo que se deveria esperar de um "homem público"), nota-se a "transfobia recreativa" (faço uma analogia ao "Racismo recreativo", de Adilson José Moreira). Esses tuítes, assim como outros que vi que juntavam campanha contra a vacinação com transfobia, não foram apagados pela rede social.

O tuíte ocorreu depois de a pessoa em questão ter sido barrada no Trem do Corcovado, o que gerou estes, com bom humor e mau português (nota: parece que as pessoas não suportam a voz passiva sintética do "vacinou-se', "vacinei-me", com os efeitos de apagar o trabalho do profissional de saúde e de colocar-se sempre como o sujeito ativo da ação; exemplo típico, bem neoliberal, dos nefastos usos da língua em redes sociais, a charanga propagandística de chamar os holofotes para si):

Outro alvo da direita na campanha contra a saúde pública foi o controle de vacinação. A única espécie (quase viva) que a direita resolveu proteger, em meio a campanhas, projetos de lei, propagandas em prol da devastação ambiental, da invasão de terras indígenas e quilombolas, da destruição de rios e cavernas, foi o vírus. Transforma-se o amador na cousa amada, ou a cousa foi amada por ser o reflexo de si mesmo no lago? Difícil determinar o que gerou o amor da direita pelo vírus.

O tratamento precoce (os remédios para malária, para piolho etc.) continuou sendo advogado pelos defensores do governo durante os trabalhos da CPI da Pandemia. Neste tweet do senador filho do ocupante da presidência, em 29 de setembro, vemos esta tentativa de didatismo:

Outro tweet que foi mantido, e sem sinalização. 
Em 6 de outubro, foi publicado talvez o tweet mais grave (em termos de ética política) destes que escolhi. A CPI da Pandemia ouviu, a partir de 26 de setembro, representantes, parentes de mortos e sobreviventes de covid-19 que se trataram nos hospitais do plano de saúde Prevent Senior, cujos dirigentes têm acesso às autoridades federais e foram por elas elogiados por seus protocolos de atendimento. 
Os depoimentos afirmaram que o plano de saúde diminuía o oxigênio disponível para os pacientes, que considerava que "óbito também é alta", além de ministrar o "kit covid".
O relatório da CPI, publicado em 26 de outubro de 2021, teceu estas considerações sobre o caso:
Em alguma medida, esse Mal em um nível intelectual foi visto aqui. Brasileiros e brasileiras formados em excelentes universidades, muitos com estudos realizados em outros países.
É preciso procurar muito na história do Brasil para encontrar algo similar ao que aconteceu nos corredores da Prevent Senior. Talvez apenas seja comparável aquilo que se deu no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, episódio tenebroso da história Brasileira.
É preciso distinguir entre a empresa e os seus dirigentes. Isso me parece importante em razão da quantidade de beneficiários que são atendidos. Milhares, milhões, de brasileiros dependem dos serviços privados de saúde.
Além disso, parece fundamental que os Conselho Regionais de Medicina, Ministérios Públicos Estaduais e ANS façam uma grande devassa, pois outras operadoras de planos de saúde e hospitais públicos e privados podem ter abraçado a insânia comandada pelo Presidente da República.
Olhamos com mais atenção o caso da Prevent Senior, empresa que fez parte do Pacto, a associação sinistra na cúpula do governo brasileiro que, sob o lema “O Brasil não pode parar”, resultou na morte de milhares de brasileiros. (p. 986)
No entanto, houve quem defendesse os procedimentos, que não tinham aprovação em nenhum Conselho de Pesquisa, e que o relatório compara ao "Holocausto brasileiro", o título do livro de Daniela Arbex sobre o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena:


Trata-se de uma deputada estadual de São Paulo (a mais votada desse Estado, aliás), professora da USP e uma das advogadas do golpe contra Dilma Rousseff. Não imaginemos que se trata de ignorância. A USP, naturalmente, também possui conselhos de ética em pesquisa, que são órgãos interdisciplinares que incluem até profissionais do Direito (eu mesmo já fui membro de um). A Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012,  do Conselho Nacional de Saúde, regula esses conselhos. A eticidade de uma pesquisa envolvendo seres humanos envolve diversas exigências; cito algumas, que não são compatíveis com deixar os pacientes abandonados "à própria sorte", como diz o Relatório da CPI:

III.1 - A eticidade da pesquisa implica em:
a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados; e
d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária.

A dignidade humana, valor básico dos direitos humanos, passou muito longe. O Relatório lembra muito oportunamente do Código de Nuremberg, uma das referências da Resolução, criado em 1947 justamente por causa das experiências dos médicos nazistas em campos de concentração. O primeiro princípio do Código guia a legislação de bioética:
O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão.
Dispensar a exigência do consentimento voluntário livre e esclarecido em nome da retórica da guerra, como fez a deputada estadual, equivale a justificar os experimentos nazistas em campos de concentração.
Ficamos surpresos com esse tipo de apreço que os bolsonaristas dão à vida humana? Óbvio que não, tudo estava bem avisado durante a campanha. Um dos momentos mais inesperados foi esta manifestação de Mike Godwin, autor da célebre "Lei de Godwin", crítica da banalização da acusação de nazismo: 


Foi o especialista que falou. 
De volta a 2021 e procedimentos científicos duvidosos, a campanha presidencial contra a vacinação incluiu a fala ao vivo sobre HIV "propiciado" por vacina. O filho deputado federal defendeu a declaração presidencial, que usava relatórios falsos do governo do Reino Unido, com uma reportagem de um ano atrás neste tweet de 26 de outubro:

Ademais, aquela notícia de 2020 não corrobora a afirmação do ocupante da presidência da república... O presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, explicou que a afirmação era falsa. A pedido da CPI, abriu-se investigação no Supremo Tribunal Federal contra o ocupante da presidência por mais esse passo da campanha oficial contra a saúde pública. O YouTube, o Facebook e o Instagram retiraram do ar o vídeo. Mas tweets como este continuam no ar.

A campanha governamental contra a vacinação foi secundada pelos perfis bolsonaristas, que espalhavam notícias/boatos de que as vacinas causavam de bursite a lúpus, passando por enfarto e herpes. Este tweet do perfil de assuntos de defesa, de 4 de dezembro, é um exemplo:
Desta vez, os apoiadores do governo pretendem que o presidente "liberal na economia" adotaria um discurso contra o grande capital (as empresas farmacêuticas), enquanto a oposição, "comunista" segundo eles, "ama" essas empresas. Entre esses comunistas, estaria até o jornal O Globo. Essas torções  cotidianas do pensamento parecem ter o efeito não de propriamente contar algo falso, mas o de fazer a noção de verdade perder o sentido, como diria Hannah Arendt.

Em 10 de dezembro, destacou-se o tópico #SomosTodosNãoVacinados, uma espécie de grito de orgulho antivacinação. O Ministério da Saúde havia sido invadido no dia anterior por um "hacker interno", com login e senha do próprio ministério, o que gerou este tipo de comentário debochado, uma vez que os dados federais de vacinação ficariam dias fora do ar, inviabilizando em muitos Estados (não em São Paulo, que tem seu aplicativo próprio) a possibilidade de efetivar o controle da vacinação na entrada de locais e eventos;

Chama a atenção como a extrema-direita, em mais um nível de deboche (metalinguístico), apropria-se ou inspira-se em um slogan da esquerda (como o "somos todos judeus alemães", de 1968).

O hacker veio impedir o acesso aos dados do Ministério, que coincidentemente o governo não queria realmente divulgar. O apagão das informações compromete seriamente a saúde pública e corresponde a mais um capítulo da destruição do Estado brasileiro operada pelos bolsonaristas. Quatro deputados federais do PT (Alexandre Padilha, Bohn Gass, Gleisi Hoffmann e Reginaldo Lopes) propuseram ação no Supremo Tribunal Federal denunciando o Ministro Marcelo Queiroga por prevaricação. A incúria do governo brasileiro tem impacto global. Cito a matéria de Jamil Chade sobre as preocupações da Organização Mundial da Saúde: "sem um mapeamento eficaz da pandemia no Brasil, o temor é de que países da região possam ficar ainda mais vulneráveis".

Em 11 de dezembro, esta deputada federal governista, que censura os discursos dos colegas que caracterizam o ocupante da presidência de "genocida", foi bastante franca:

Este tweet, evidentemente, deve ser preservado. Serviria como um elemento a ser discutido em um improvável julgamento sobre crimes de lesa-humanidade do atual governo.

A deputada insistiu na posição, em 30 de dezembro, ao afirmar que os passes sanitários são "inúteis", elogiando o ministro da educação por sua participação na campanha oficial contra a vacinação:


A medida do ministro caiu no Supremo Tribunal Federal, mas a informação da "inutilidade" dos passes continua no Twitter, sem sinalização alguma.

Esse trabalho conjunto continua: no primeiro mês de 2022, tanto a Ministra Damares Alves, de Direitos Humanos, quanto o Ministro Marcelo Queiroga, que continua à frente da Saúde (e que contraiu, memoravelmente, covid-19 durante a estadia em Nova Iorque durante a abertura dos trabalhos da Assembleia-Geral da ONU), espalharam desinformação sobre covid-19. Aqui abaixo, a propósito da vacinação infantil, combatida pelos ministros, copio um desmentido do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo que várias pessoas postaram, algumas em resposta a tweets da Ministra; destaco o tweet deste médico, Gerson Salvador, para destacar que mensagens como esta também foram bastante veiculadas, e não apenas as de desinformação:




A propósito, a Câmara Técnica Assessora de Vacinação Covid-19, criada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), manifestou-se em 17 de dezembro de 2021 a favor da vacinação infantil, e contrária à consulta popular pela internet sem método e com prazo reduzidíssimo que o Ministério da Saúde acabou fazendo:
A Câmara Técnica também recomenda a vacinação contra covid para crianças e faz sugestões de que as tratativas para essa recomendação e aquisição de vacinas pelo Ministério da Saúde sejam implementadas. A maioria não concorda com a realização de fóruns que envolvam não especialistas em imunizações, uma vez que esse grupo consultivo já é formado amplamente por especialistas, cientistas, representantes de entidades médicas, CONASS e CONASEMS. Reforçam que a CTAI é contra consulta pública sobre o assunto em questão.
Para terminar esta breve nota (curtíssima para o assunto que resolvi abordar, mesmo ligeiramente, mas cumpre a finalidade de externar o que consegui observar), lembro que estas campanhas de desinformação possuem um efeito real: provocar mais mortes. Deisy Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, em "Crimes against humanity in Brazil's covid response - a lesson to us all", fizeram notar que o ocupante da presidência da república continuou espalhando desinformação mesmo após o Relatório da CPI, e que o tratamento da pandemia no Brasil ameaça a saúde global. A responsabilidade das redes que participam deste ecossistema da desinformação, à revelia dos próprios critérios de uso, creio que também deva ser apurada.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Desarquivando o Brasil CLXXXI: Eny Moreira, direito, ditadura e política

Morreu Eny Moreira em 4 de janeiro de 2022, com 74 anos. Dilma Rousseff lembrou do papel da advogada na articulação do Brasil: Nunca Mais. Lula homenageou-a mencionando também a fundação e presidência do Comitê Brasileiro pela Anistia em 1978, bem como sua participação na Comissão da Verdade do Rio, que apresentou um relatório final em 2015. Outra advogada de presos políticos, que havia sido membro da Comissão Nacional da Verdade, foi sua colega nessa comissão estadual: Rosa Cardoso.

Bernardo Mello Franco, em O Globo, destacou a coincidência de ela ter morrido dias depois de um nome da ditadura militar, general Nilton Cerqueira (um dos arrolados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 autores de graves violações de direitos humanos).

Que o caso do Riocentro (onde se planejava um massacre por bombas cuja autoria seria atribuída a um grupo extinto da esquerda armada, o que poderia levar ao fim a abertura política) tenha sido trancado sem que Cerqueira, entre outros militares, tenha sido processado, é uma das vergonhas históricas de um país sem justiça de transição.

Escrevo, porém, esta pequena nota para lembrar de outra questão. Deve-se lembrar que ela fazia parte de um reduzido grupo. O relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" contém um capítulo sobre a atuação dos advogados de presos políticos, que eram poucos. Eny Moreira, que trabalhou no escritório de Sobral Pinto na época da ditadura, é citada justamente a respeito da concepção do Brasil: Nunca Mais, que reuniu e analisou processos de presos políticos na Justiça Militar. Sobre o tema, pode-se assistir ao depoimento concedido ao portal Armazém Memória

O depoimento revela o papel da articulação internacional para a realização do Brasil: Nunca Mais, bem como para a assistência aos exilados e banidos brasileiros no exterior. Nesta ficha do DEOPS/SP, é justamente a preocupação com o retorno dos exilados que é destacada:


A ficha está no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Eny Moreira viajou por onze países para tratar da questão dos exilados brasileiros. Esta Informação da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, de agosto de 1978, trata de entrevista que ela deu a uma rádio sueca:


O documento, assim, como seguinte, está no Arquivo Nacional. A análise oficial era típica da época: "os contatos mantidos pela dra. ENY MOREIRA no exterior com entidades e pessoas engajadas em movimentos de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, repercutirão negativamente, mostrando um quadro distorcido da realidade brasileira, proporcionando, em consequência, um clima de hostilidade ao regime de governo vigente no BRASIL.". 

Ademias, previa-se que viriam milhares de pessoas; este é trecho de informação do Ministério da Justiça, do mesmo mês:


A preocupação da ditadura com a imagem internacional revela-se nesse documento, bem como em diversos outros: a tentativa de impor uma imagem internacional democrática, ao mesmo tempo em que evitava os instrumentos do direito internacional dos direitos humanos. Analisando esse material, chamei essa estratégia de isolacionismo deceptivo. A articulação com organizações estrangeiras era, portanto, uma saída importante para os advogados de presos políticos para denunciar o governo.

O que nos leva a outro ponto: não só os opositores eram tratados como inimigos do Estado, mas também seus advogados. Paula Spieler e Rafael Mafei organizaram um livro que contém depoimentos de advogados de presos políticos, Advocacia em tempos difíceis: Ditadura militar 1964-1985, publicado em 2013, que pode ser baixado nesta ligação. Ela diz: "O que eu posso te dizer, sem receio de errar, é que raríssimos foram os advogados que não foram presos. Eu fui presa duas vezes. Sobral Pinto foi sequestrado. Heleno Fragoso, Sussekind Morais Rego, George Tavares foram sequestrados. Evaristo de Morais foi preso."

Afinal, era uma ditadura. A luta pelo exercício das prerrogativas profissionais, nesse contexto, integrava o contexto maior da luta pela democracia. Eny Moreira viu bem esse quadro e nele se inseriu com uma atuação importantíssima no cruzamento entre direito e política.

Em 2020, Liora Israël publicou À la gauche du droit: Mobilisations politiques du droit et de la justice en France (1968-1981) (Paris: Éditions EHESS). O notável livro trata das relações entre direito e política na França no período mencionado, incluindo as articulações dos juristas identificados com a esquerda com movimentos sociais e outros juristas.

Uma das questões colocadas em xeque nessa época foram as prerrogativas profissionais dos advogados e o direito de defesa. Um dos casos analisados é o de Klaus Croissant, advogado de extremistas de esquerda, que fugiu da Alemanha Ocidental em 1977 e requereu asilo político ao governo francês; a França, no entanto, extraditou-o para essa Alemanha.

O caso de Croissant é bem diferente dos advogados de presos políticos no Brasil. Dito isso, é importante pensar como o anticomunismo nas democracias burguesas, nessa época de Guerra Fria, levou a alguns problemas jurídicos parecidos com o que gerava o anticomunismo de uma ditadura na América Latina. Posso destacar, entre vários outros, este trecho do livro de Israël, em tradução minha:


Questões aparentemente abstratas ou internas da profissão, como a deontologia jurídica, a relação entre o cliente e o sigilo profissional, adquiriram uma dimensão simultaneamente dramática, política, concreta e eminentemente sensível. As múltiplas facetas da atividade de advogado e a polissemia por demais negligenciada do termo "defesa" foram então reveladas e colocadas no cerne do debate público e político, ultrapassando o caso particular do advogado do inimigo público número um de um país vizinho.


Até que ponto as democracias ocidentais estavam a ponto de levar a sério o seu próprio Direito? Ou, o que é também interessante, até que ponto as mobilizações do direito pela esquerda não significavam levar a sério o Direito, e que ele não pode ser confundido com a ordem no campo dos direitos humanos (sobre isso, Liora Israël resgata Foucault)?

Pensar nessas questões e no exemplo e no legado de Eny Moreira é uma das tarefas teóricas e políticas de hoje. Não à toa, a extrema-direita no poder no Brasil ataca não só defensores de direitos humanos (categoria muito maior do que a dos bacharéis em Direito aprovados no exame da Ordem dos Advogados), bem como a própria OAB.


domingo, 2 de janeiro de 2022

O genocídio, memória e o indeterminável: Fé no inferno, de Santiago Nazarian

O inumerável, o infinito e as quantidades de difícil determinação aparecem em diferentes níveis em Fé no inferno (Companhia das Letras, 2020), de Santiago Nazarian, impressionante romance. Um deles é a idade de um dos personagens, Domingos Arakian, o senhor de etnia armênia. A exata quantificação tem um caráter eminentemente qualitativo: a depender disso, sua própria identidade nacional (ele se identifica como nascido no Brasil) e seu caráter de sobrevivente do genocídio armênio pelos turcos.

Outro desses níveis aparece na bela imagem, a lembrar Borges, da biblioteca com diferentes versões do mesmo livro, sem título e atribuição de autor, e inéditas. As histórias que são transcritas no romance sempre tratam de um personagem armênio que tenta escapar do genocídio, e que pode ser ou não o próprio personagem-autor, o velho senhor (este é outro dos mistérios do romance).

Essas histórias trazem diferentes contrastes e paralelos com a narrativa que se passa na segunda década do século XXI. O personagem, ademais, sobrevive ou morre segundo as diferentes versões do livro, o que atende a sua natureza lendária (como ocorre, por exemplo, com Macunaíma no romance de Mário de Andrade, construído com base em pesquisa etnológica; Nazarian, por seu turno, teve de estudar o folclore armênio), revelando a opressão pelos turcos: "recebi a bala na cabeça no momento em que verbalizei: 'Alá é Gordo'.". 

O personagem também é vário e indeterminável, o que lhe permite, por ultrapassar a dimensão do indivíduo e chegar ao coletivo, simbolizar um povo, cujos restos mortais, eles mesmos, podem ser confundidos aos elementos da natureza:

Às margens do açude, eu tentava me soltar das folhas e algas que haviam me prendido. E logo percebia o que eram: tranças, cachos, mechas de cabelo. Era esse o propósito do açude. Para isso ele ainda tinha serventia. Meus pés estavam amarrados pelos cabelos dos armênios afogados naquelas águas.

Essa introdução do indeterminável na ficção corresponde à matéria do livro, que inclui principalmente o genocídio armênio no início do século XX (a epígrafe do romance lembra como ele foi exemplar para aquele outro grande criminoso, Hitler). Esse crime é de difícil quantificação em relação às vítimas, tanto por seu grande número, quanto pelo esforço dos criminosos em apagar a memória dos ilícitos e das vítimas, incluindo o desaparecimento forçado, a ocultação e destruição dos corpos e dos nomes.  

Ademais, por se tratar de um crime que lida diretamente com o conceito de humanidade - Hannah Arendt afirma que a questão subjacente é modificar a natureza humana, excluindo dela determinados grupos e coletividades - sua dimensão é tão inaudita que alguns juristas falam (lembro aqui do título de um livro de Antoine Garapon sobre o direito penal internacional) "crimes que não se podem punir nem perdoar".

No entanto, devem ser punidos. Para isso, devem ser lembrados. Um romance como este, embora seja completamente ficcional, logra o feito de constituir-se em um ato de memória sobre um crime que continua a ser negado oficialmente pela Turquia.

O padre meneou a cabeça de maneira etérea e imperturbada. "Nosso destino é apenas permanecer de pé, de olhos abertos, seguir caminhando, até que deus olhe para cá e perceba que não desistimos. Que ele não desista de nós. Nossa morte é uma injustiça que não podemos aceitar. Seguiremos caminhando até sermos salvos. Sem a vontade de deus, nem as folhas das árvores se movem."

O único livro anterior de Nazarian que li até hoje, infelizmente, foi Pornofantasma, uma reunião de contos. Nele, aparecem os elementos do fantástico e do lendário; os personagens jovens que tentam se descobrir; sexo; massacres (especialmente o último conto: um príncipe tem uma espada mágica que provoca chacinas; sem nenhuma matéria histórica, ele fica heroicizado no mito). No entanto, em nenhum dos contos esses elementos conseguem amalgamar-se tão bem e encontrar uma matéria tão adequada quanto neste último romance. 

É interessante também que o outro personagem principal, Cláudio Reis, o jovem cuidador, homossexual, seja transformado por aquelas histórias armênias e isso o leve a mudar de vida. As questões da memória, da discriminação e da violência (e do homicídio, mas não vou contar nada aqui) estão presentes na vida dele, que passa a compreender-se melhor a partir da tragédia coletiva do povo armênio. Ele também viveu seu inferno, que incluiu remoção forçada e assassinato (não vou revelá-lo aqui, mas apenas lembrar que o personagem é um caso, cada vez menos raro fora das páginas dos livros, de descendente de indígena que decide estudar Antropologia), e pode sentir o do outro. O romance trata do poder da literatura de resgatar e produzir memórias, bem como constituir desejos de justiça.

Outra virtude de Fé no inferno está no fato de que nele a sociedade brasileira do passado recente não irrompe como intromissão na narrativa. Outros romances brasileiros, mais badalados do que este (ah!, os mistérios do marketing), não foram tão felizes em tratar do tempo presente a partir de uma narrativa histórica. A dimensão do inumerável permite a Nazarian transitar entre o individual e o coletivo sem os reduzir, bem como articular os tempos das narrativas na Armênia com as do Brasil e a do mito.

Num dos capítulos mais interessantes, Domingos, à noite, começa a falar em armênio com uma adaga na mão, aparentemente sonâmbulo. Cláudio consegue fazê-lo regressar ao tempo presente, pulando de um século e de um continente a outro, ligando um videogame. O velho armênio quer saber o que está acontecendo, o cuidador explica que ele parecia sonâmbulo, e pede para que ele largue a "faca"; é corrigido, trata-se de uma adaga que guarda debaixo do colchão para proteção. Temos então este diálogo:

“Proteção contra o quê, seu Domingos? O senhor está a salvo. Estamos no Brasil, em 2017.”

O velho o encarou, confuso por um tempo, então vociferou:

“Você está louco, Cláudio?”.

Cláudio abriu os braços, sem entender.

“Escutou o que você acabou de dizer? Quem está a salvo? Estamos no Brasil! Em 2017!”

A indeterminação entre 1915 e 2017 não era despropositada, e não só é verossímil em relação ao personagem como atende ao jogo de tempos do livro. O cuidador ali não era a voz da lucidez, o que se confirma no capítulo em que ele Domingos se refere ao candidato à presidência da república que queria "fazer um massacre no Brasil"; ele o chama de "turco", o que leva Cláudio a pensar que se trata de Maluf, mas o senhor corrige-o: trata-se do "militar". Era Bolsonaro, que provocou pesadelos: "Sonhei com esse asno nazista que o Brasil conseguiu gerar…"

Nada mais apropriado que um sobrevivente de um genocídio fosse tão lúcido para bem detectar os prenúncios de outro; no último capítulo, confirmamos a razão: "Quando se está no Inferno, o fogo serve de bússola." O fogo ilumina, de fato, embora ainda haja tantos que se recusem a ver (e por isso, tantos desses tenham se queimado). Nazarian deu-nos a ver, uma das tarefas mais importantes dos poetas.