O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

"No dia do seu passamento/ não só os nazistas choraram"


I. A leitura em branco



No dia do seu passamento
não só os nazistas choraram,
mas todos eles o fizeram
no dia do seu passamento.

Também os fascistas choraram,
não só eles, mas eles todos
no dia do seu passamento.

Quanto pranto dos homofóbicos,
dos racistas e dos misóginos
seco derramado sob máscaras
no dia do seu passamento

enquanto o corpo alimentava
mais vermes, também iletrados
agora totalmente em branco.



II. Fala da garganta inflamada ao vírus


– o vírus, que não existe,
não me atinge, pois só
pertence à ordem do letal
o que existe, e somente
pode atingir o existente
aquilo que também o seja,
por conseguinte teu cu
também não me atinge,
após as estocadas
das minhas aulas
ele não mais existe,
virou falha geológica,
e não há nenhuma
onde habito, uma região
do maior país do mundo,
não no cu de terra onde inventam
um vírus, portanto
as vacinas inoculam
a inexistência, destruindo
a ordem, a propriedade, a fé
e o bom gosto, claro,
porém, assim como descobri
que a terra é plana
porque minha bunda não é curva,
sei que o vírus não existe,
é o que dizem os números,
só morreram pessoas com órgãos,
portanto foram eles que falharam,
morreram pessoas sufocadas,
ou seja, falhou a atmosfera
que fugiu momentaneamente do espaço,
comprovando o erro da lei da gravitação universal
do imbecil do Newton ou do Einstein,
comunistas que queriam negar
o voo dos anjos,
a falha é da atmosfera, não
do corpo, e o vírus é somente
quase um corpo
ou um cu, que é feito de oco
e por isso quase inexistente.


III. Luta oficial


a principal diferença entre um pangaré de carroça e um puro sangue não é a cor
o direito racial é racismo
fiquem eles com os rituais com galináceos pretos
eu fico com n. s. jesus cristo
e a uma higiênica distância em caso de mau cheiro
dos cantores negros que vendem 5 milhões de discos
dos gays e das lésbicas

a contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo
a contribuição cultural das religiões africanas no mundo é perfeitamente dispensável
o normal é ter uma oligarquia no poder
é falso que a ditadura impeça o exercício da atividade intelectual
aliás não fez mais do que duzentas vítimas
mas
o Estado prende na armadilha da pior das tiranias uma imensa rede de serviços públicos
até de saúde

até de saúde
o pensamento de um filósofo não se deduz das crenças gerais da comunidade
eu fico com n. s. jesus cristo
a religião é um valor universal uma condição sine qua non das culturas
colocá-la abaixo do vírus é monstruoso

é verdade que
tendo matado o gigante do comunismo a dentadas
o herói descobriu que o falecido era aidético

uma verdadeira cultura literária pode corrigir essas distorções
introduzindo na vivência da obra o senso das proporções e da conveniência

um puro sangue


IV. Resposta do vírus à garganta inflamada


Embora tente,
não logro ouvir
que não existo
enquanto roo
o fio do fôlego;
enquanto piso
no seu pescoço
não ouço a voz
que rouca explica
que não existo
para a doutrina
que administra
o genocídio,
não posso assim
saber-me nada,
sumo nihilo,
não logro ouvir
por que a língua
contrai-se em ricto,
vermelho verme
agora inerte,
soa tão mínima
quanto as bactérias
que se alimentam
de sua matéria, a
filosofia
talvez provenha
agora delas,
como a que explica
que não existo
segundo toda a
economia,
ela jamais
contabiliza
corpos caídos
caso não possam
ser revendidos;
também segundo
a teologia
pois ninguém sofre
do inexistente,
morrer do vírus
trairia a fé
em deus pela
ímpia crença
no genocídio,
e quem morreu
não paga dízimo,
o que comprova a
falta de fé
dos que caíram;
mas tudo isso
é o que ensinam,
e nada aprendo:
infesto o sangue
de meu silêncio;
como eu, o vírus
não tenho ouvido,
continuo sendo,
não ouço aqueles
que me revelam
inexistente,
nem mesmo quando
alto ressoam
tosses, gritos
e os estertores,
e aos pulmões juntam
respiradores,
eu não consigo
saber enfim
que não existo,
e assim prefiro,
pois o inaudível
é bem mais vivo
do que a teoria.


V.  Luto antioficial


Os que cairiam
por tua causa
saudamos
a queda
que entre ti
e nós
escolheu
o que lhe era semelhante

Um comentário:

  1. Ahora (febrero de 2022) he leído por vez primera a Pimenta. Una traducción de su Discurso sobre o filho da puta. ¡Qué gran descubrimiento! Y buscando información sobre el autor he encontrado este artículo, muy ilustrativo. Gracias.

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