O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 2 de janeiro de 2022

O genocídio, memória e o indeterminável: Fé no inferno, de Santiago Nazarian

O inumerável, o infinito e as quantidades de difícil determinação aparecem em diferentes níveis em Fé no inferno (Companhia das Letras, 2020), de Santiago Nazarian, impressionante romance. Um deles é a idade de um dos personagens, Domingos Arakian, o senhor de etnia armênia. A exata quantificação tem um caráter eminentemente qualitativo: a depender disso, sua própria identidade nacional (ele se identifica como nascido no Brasil) e seu caráter de sobrevivente do genocídio armênio pelos turcos.

Outro desses níveis aparece na bela imagem, a lembrar Borges, da biblioteca com diferentes versões do mesmo livro, sem título e atribuição de autor, e inéditas. As histórias que são transcritas no romance sempre tratam de um personagem armênio que tenta escapar do genocídio, e que pode ser ou não o próprio personagem-autor, o velho senhor (este é outro dos mistérios do romance).

Essas histórias trazem diferentes contrastes e paralelos com a narrativa que se passa na segunda década do século XXI. O personagem, ademais, sobrevive ou morre segundo as diferentes versões do livro, o que atende a sua natureza lendária (como ocorre, por exemplo, com Macunaíma no romance de Mário de Andrade, construído com base em pesquisa etnológica; Nazarian, por seu turno, teve de estudar o folclore armênio), revelando a opressão pelos turcos: "recebi a bala na cabeça no momento em que verbalizei: 'Alá é Gordo'.". 

O personagem também é vário e indeterminável, o que lhe permite, por ultrapassar a dimensão do indivíduo e chegar ao coletivo, simbolizar um povo, cujos restos mortais, eles mesmos, podem ser confundidos aos elementos da natureza:

Às margens do açude, eu tentava me soltar das folhas e algas que haviam me prendido. E logo percebia o que eram: tranças, cachos, mechas de cabelo. Era esse o propósito do açude. Para isso ele ainda tinha serventia. Meus pés estavam amarrados pelos cabelos dos armênios afogados naquelas águas.

Essa introdução do indeterminável na ficção corresponde à matéria do livro, que inclui principalmente o genocídio armênio no início do século XX (a epígrafe do romance lembra como ele foi exemplar para aquele outro grande criminoso, Hitler). Esse crime é de difícil quantificação em relação às vítimas, tanto por seu grande número, quanto pelo esforço dos criminosos em apagar a memória dos ilícitos e das vítimas, incluindo o desaparecimento forçado, a ocultação e destruição dos corpos e dos nomes.  

Ademais, por se tratar de um crime que lida diretamente com o conceito de humanidade - Hannah Arendt afirma que a questão subjacente é modificar a natureza humana, excluindo dela determinados grupos e coletividades - sua dimensão é tão inaudita que alguns juristas falam (lembro aqui do título de um livro de Antoine Garapon sobre o direito penal internacional) "crimes que não se podem punir nem perdoar".

No entanto, devem ser punidos. Para isso, devem ser lembrados. Um romance como este, embora seja completamente ficcional, logra o feito de constituir-se em um ato de memória sobre um crime que continua a ser negado oficialmente pela Turquia.

O padre meneou a cabeça de maneira etérea e imperturbada. "Nosso destino é apenas permanecer de pé, de olhos abertos, seguir caminhando, até que deus olhe para cá e perceba que não desistimos. Que ele não desista de nós. Nossa morte é uma injustiça que não podemos aceitar. Seguiremos caminhando até sermos salvos. Sem a vontade de deus, nem as folhas das árvores se movem."

O único livro anterior de Nazarian que li até hoje, infelizmente, foi Pornofantasma, uma reunião de contos. Nele, aparecem os elementos do fantástico e do lendário; os personagens jovens que tentam se descobrir; sexo; massacres (especialmente o último conto: um príncipe tem uma espada mágica que provoca chacinas; sem nenhuma matéria histórica, ele fica heroicizado no mito). No entanto, em nenhum dos contos esses elementos conseguem amalgamar-se tão bem e encontrar uma matéria tão adequada quanto neste último romance. 

É interessante também que o outro personagem principal, Cláudio Reis, o jovem cuidador, homossexual, seja transformado por aquelas histórias armênias e isso o leve a mudar de vida. As questões da memória, da discriminação e da violência (e do homicídio, mas não vou contar nada aqui) estão presentes na vida dele, que passa a compreender-se melhor a partir da tragédia coletiva do povo armênio. Ele também viveu seu inferno, que incluiu remoção forçada e assassinato (não vou revelá-lo aqui, mas apenas lembrar que o personagem é um caso, cada vez menos raro fora das páginas dos livros, de descendente de indígena que decide estudar Antropologia), e pode sentir o do outro. O romance trata do poder da literatura de resgatar e produzir memórias, bem como constituir desejos de justiça.

Outra virtude de Fé no inferno está no fato de que nele a sociedade brasileira do passado recente não irrompe como intromissão na narrativa. Outros romances brasileiros, mais badalados do que este (ah!, os mistérios do marketing), não foram tão felizes em tratar do tempo presente a partir de uma narrativa histórica. A dimensão do inumerável permite a Nazarian transitar entre o individual e o coletivo sem os reduzir, bem como articular os tempos das narrativas na Armênia com as do Brasil e a do mito.

Num dos capítulos mais interessantes, Domingos, à noite, começa a falar em armênio com uma adaga na mão, aparentemente sonâmbulo. Cláudio consegue fazê-lo regressar ao tempo presente, pulando de um século e de um continente a outro, ligando um videogame. O velho armênio quer saber o que está acontecendo, o cuidador explica que ele parecia sonâmbulo, e pede para que ele largue a "faca"; é corrigido, trata-se de uma adaga que guarda debaixo do colchão para proteção. Temos então este diálogo:

“Proteção contra o quê, seu Domingos? O senhor está a salvo. Estamos no Brasil, em 2017.”

O velho o encarou, confuso por um tempo, então vociferou:

“Você está louco, Cláudio?”.

Cláudio abriu os braços, sem entender.

“Escutou o que você acabou de dizer? Quem está a salvo? Estamos no Brasil! Em 2017!”

A indeterminação entre 1915 e 2017 não era despropositada, e não só é verossímil em relação ao personagem como atende ao jogo de tempos do livro. O cuidador ali não era a voz da lucidez, o que se confirma no capítulo em que ele Domingos se refere ao candidato à presidência da república que queria "fazer um massacre no Brasil"; ele o chama de "turco", o que leva Cláudio a pensar que se trata de Maluf, mas o senhor corrige-o: trata-se do "militar". Era Bolsonaro, que provocou pesadelos: "Sonhei com esse asno nazista que o Brasil conseguiu gerar…"

Nada mais apropriado que um sobrevivente de um genocídio fosse tão lúcido para bem detectar os prenúncios de outro; no último capítulo, confirmamos a razão: "Quando se está no Inferno, o fogo serve de bússola." O fogo ilumina, de fato, embora ainda haja tantos que se recusem a ver (e por isso, tantos desses tenham se queimado). Nazarian deu-nos a ver, uma das tarefas mais importantes dos poetas.

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